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Reflexões para um orgulho crítico: é sobre amor, é sobre amar, mas não é só sobre isso

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A explosão das identidades é prova de que esse modelo tradicional de gênero só tende, cada vez mais, a ser superado
A explosão das identidades é prova de que esse modelo tradicional de gênero só tende, cada vez mais, a ser superado - MIGUEL SCHINCARIOL / AFP
Por que o “love is love” é insuficiente para falar sobre os movimentos LGBTI+?

Lembro-me de um ato do Orgulho LGBTI+ a que fui, há alguns anos, em que contei ao menos trinta cartazes com a frase “love is love”. É comum ver esse lema (amor é amor, em tradução direta) não só em manifestações, mas também estampando as redes sociais, camisetas, vitrines de lojas ou propagandas a favor das pautas LGBTI+. Já se sabe que no Brasil nós gostamos de termos em inglês, mas este não é um problema como tal. A pergunta fundamental que realmente merece um aprofundamento aqui é: por que o “love is love” é insuficiente para falar sobre os movimentos LGBTI+?

São muitas letrinhas reunidas, é verdade. E serão mais e mais, porque a vida é múltipla, o sujeito é múltiplo, fraturado, vário, vivo e mutável. Por isso, recomendo que não nos assustemos. Há belos plurais na confusão das identidades, porque o ser humano é radicalmente diverso, porque o modelo hierárquico e binário homo/hétero, homem/mulher, de oposições claras, de antagonismos “naturais” não nos serve mais. E podemos aproveitar a oportunidade para questionarmos: serviu realmente algum dia? A quem pôde ter servido?

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A explosão das identidades é prova de que esse modelo tradicional de gênero só tende, cada vez mais, a ser superado. E as pessoas intersexuais são a demonstração cabal de que a diferença sexual supostamente biológica não é um império com tanto controle assim. Explico.

A diferença sexual como princípio de organização da vida, como epistemologia incorrigível – ou seja, como uma forma de pensar o mundo e os sujeitos que não está sujeita a questionamentos –, está posta em xeque. Já sabemos desde muito tempo que isso tudo não tem muito a ver com a “natureza”, mas com a cultura, com os movimentos das sociedades, com a fluxo e influxo da história. O ponto de vista que assume que determinados genitais correspondem a “macho”, que logo correspondem a “homem”, ou a “fêmea” e que em seguida correspondem a “mulher”, não leva em consideração que esses mesmos genitais (ou mesmo os caracteres sexuais secundários) podem ser ambíguos. Ou seja, podem não ser claramente “masculinos” ou “femininos”. Durante alguns séculos, a medicina se propôs à tarefa de identificar o “sexo verdadeiro” das pessoas intersexuais (antes chamadas “hermafroditas”) para realizar uma correção nessa natureza que mesclava macho e fêmea, que não os separava completamente – como queria o discurso normalizador da diferença sexual. Em outras palavras, biopoder em pleno funcionamento regulador, corretivo e classificatório. É dessa forma que a intersexualidade prova a falência da diferença sexual e é fundamentando-se nesse discurso que as ciências médicas querem, à fina força, decretar uma separação total entre as características sexuais que se encontram fundidas numa pessoa intersexual. E o que é mais curioso: utilizam o discurso da “naturalidade” da diferença sexual.

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Levando em consideração essa complexidade da diversidade, o “love is love” se torna suficiente. As pessoas assexuais marcham também contra a heteroestrutura de pensar (Assexuais são aquelas pessoas que não experimentam uma atração afetivo/sexual tão clara assim; isto é, há vários espectros dentro da orientação assexual: há pessoas que não experimentam desejo sexual nenhum, há as que só o experimentam se houver uma conexão emocional mais forte etc. É importante não as confundir com as “assexuadas”: esta seriam as que não teriam sexo no sentido anatômico-morfológico, ou que não precisariam de outro exemplar da mesma espécie para reproduzir-se – o que até então não se viu na espécie humana).

Como dizia, o “love is love” pode servir como palavra de ordem ou como enunciado performativo, mas não como uma máxima definitiva e absoluta. Por várias razões. Uma delas pode ser, como já falei: porque as pessoas intersex e assexuais estão unidas a esta mesma luta, que é ao mesmo tempo uma luta mais ampla. Outra dessas razões: porque também somos pessoas LGBTs quando não estamos num relacionamento. As pessoas trans sofrem especialmente as sanções da normatividade cisheterossexista estejam fora ou dentro do armário, estejam solteiras ou não. Enquanto escrevo isto lembro da mulher trans que foi queimada há um par de anos, um dia antes do Dia do Orgulho LGBTI+, em Recife. Ela talvez quisesse amar também, mas sem dúvidas queria – acima de qualquer coisa – ter continuado viva. E viva podendo exercer os seus direitos; ou seja, dignamente viva. Por isso, é sobre amar, mas é sobre um monte de outras coisas mais.

No entanto, ao mesmo tempo que dedicamos um tempo para refletir sobre isso, recordo Gabriel, que foi assassinado também no mês de junho do mesmo ano referido com três tiros por ser gay. Então, é também sobre amar, poder amar e ser livre para construir os laços afetivos, familiares ou sexuais que queiramos.

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Assim, as lutas LGBTI+ congregam várias pautas. Não se trata somente de lésbicas, bissexuais e gays cis que desejam amar, ser seres respeitados e percebidos em pé de igualdade em termos de direitos civis. Trata-se também de pessoas que querem ver-se reconhecidas em sua orientação assexual (pessoas assexuais); pessoas que não estão tanto disputando o reconhecimento de sua orientação sexual senão o reconhecimento de seus corpos com caracteres que não indicam exclusivamente nem “macho” nem “fêmea” como corpos possíveis e habitáveis (pessoas intersex); pessoas que querem ser tratadas conforme a sua real identidade de gênero e ter documentos compatíveis com essa identidade, assim como ter acesso digno a tratamentos médico-cirúrgicos em caso de que assim o desejem (pessoas trans). E nós – todas, todos, todes – precisamos que especialmente alguns direitos nos sejam assegurados: não discriminação em qualquer âmbito da vida (familiar, institucional, religioso, educativo, sanitário), acesso ao trabalho e poder manter-se no âmbito laboral sem ser alvo de preconceito ou assédio, garantia de permanência na escola e acesso à educação superior etc. 

Há um debate interessantíssimo tecido por Nancy Fraser e Judith Butler que, em resumo, conclui sobre a imprescindibilidade de conjugar e garantir as políticas de reconhecimento e de distribuição para melhorar as condições de vida das pessoas LGBTI+. E por que são fundamentais as duas coisas? Porque, por exemplo, as pessoas assexuais e intersexuais precisam ser reconhecidas em suas identidades e especificidades (não ser reconhecido é não existir socialmente). Além disso, as políticas de redistribuição não podem ser deixadas em segundo plano porque as pessoas trans, por exemplo, continuam majoritariamente na prostituição ou ocupando postos de trabalho no mercado informal, de maneira que são proibidas de estar num espaço que lhes assegure condições de segurança e dignidade. Outro exemplo é a diferença entre os dados de não exercício de atividades de trabalho entre pessoas heterossexuais e não heterossexuais. Segundo pesquisa apresentada em 2021 no XXIV Encontro de Economia da Região Sul (ANPEC Sul), “os indivíduos brancos, homens e heterossexuais em 2019 apresentaram os menores percentuais de desocupação, 9,21%, 9,65% e 7,13%, respectivamente”. E se formos aos dados da presença de pessoas trans no ensino superior ou de abandono escolar em virtude de LGBTIfobia, os resultados são ainda mais dramáticos; o que gera uma desvantagem óbvia quanto às oportunidades futuras e não precarizadas no mercado de trabalho. Deveríamos, portanto, ter em mente a importância de pautar as políticas de distribuição assim como as políticas de reconhecimento.

O Brasil, dentro de um contexto de estruturas globalizadas, é uma grande festa cisheterossexista repleta de seus horrores típicos. A bolha LGB rica finge não ver, porque talvez seja um pouco menos “persona non grata” nos círculos do poder masculinista, mas por mais que tente assimilar-se ao clube heteroprivilegiado nunca será um deles. O Orgulho LGBTI+ existe para pautar tudo isso. É preciso resgatar a potência crítica da dissidência sexual e de gênero e lembrar que não devemos ser reconhecidos como seres humanos em base à nossa capacidade de consumo; assim como é preciso superar de uma vez por todas o moralismo proto-conservador que vê as Paradas LGBTI+ como uma mera festa que só serve ao modo de produção capitalista. Nunca será uma mera festa, porque todo ato social carrega consigo sua herança histórica. E por mais que não haja tanto a celebrar, estarmos vivos continua sendo glorioso.

 

*Leonam Lucas Nogueira Cunha é poeta, professor, tradutor, advogado, mestre em Estudos de Gênero e Doutor em Estado de Direito pela Universidade de Salamanca.

** A quem tiver interesse, o livro é “¿Redistribución o reconocimiento? Un debate entre marxismo y feminismo”, publicado pela editora Traficante de Sueños, nos anos 2000, em Madri – Espanha.

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo