A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai investigar as ONGs que atuam na região amazônica aprovou nesta terça-feira (27) requerimentos para obrigar todos governadores e prefeitos de capitais da região Norte do país, além de Maranhão e Mato Grosso, a prestarem informações sobre contratos e parcerias feitas com organizações não-governamentais entre 2002 e 2023.
Também foram aprovados convites para o ex-ministro do Meio Ambiente do governo de Jair Bolsonaro (PL) Joaquim Leite e o diretor da Associação dos Moradores do Alto Tapajós (Amot), José Altino Machado.
Apresentados pelo relator da comissão, senador Marcio Bittar (União-AC), os requerimentos se somam a outros 37 aprovados na sessão do dia 20 de junho. Na ocasião, também foi definido o plano de trabalho da CPI, pautado pela cúpula da comissão no Senado Federal, formada por parlamentares conservadores da região Norte.
No primeiro momento, serão convidados a depor autoridades dos governos Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL), como a atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o ex-ministro da pasta, Ricardo Salles (PL-SP). Também estão previstas as convocações de lideranças indígenas de matizes opostas e pesquisadores críticos às iniciativas das organizações não governamentais (ONGs).
Nos requerimentos, ainda não constam representantes das principais ONGs do setor ambiental, que nem foram mencionadas nominalmente durante as duas horas de reunião, mas que devem se tornar alvo nas próximas fases. De acordo Pedro Kelson, coordenador de articulação do Pacto Pela Democracia, que representa algumas das principais entidades ambientais que atuam no país, as justificativas para a criação da CPI "apresentam graves fragilidades" e fazem "citações genéricas a supostas denúncias".
A CPI das ONGs é relatada pelo acreano Marcio Bittar, do União Brasil, e presidida pelo senador Plínio Valério (PSDB-AM), que sinalizou a estratégia de chamar as entidades quando suas teses estiverem mais reforçadas.
"Vamos buscar responder às perguntas daquelas ONGs que recebem dinheiro público ou dinheiro privado, dinheiro estrangeiro, estão na Floresta Amazônica só para denegrir a imagem da Amazônia e do Brasil, dizendo que aqui é um caos. E muitas delas trabalham para ajudar na demarcação de terras, espalhando grupos indígenas, isso há décadas atrás, para depois dizer que são terras indígenas", disse Valério, em entrevista à TV Senado no dia 19.
Governo tenta evitar caça às bruxas
Para fortalecer as denúncias, também foram solicitadas informações da Receita Federal, do BNDES e de tribunais de contas estaduais e federal. A tentativa é demonstrar irregularidades e desvios de conduta a partir de movimentações financeiras das ONGs e do Fundo Amazônia, desviando de assuntos incômodos à oposição, como o enfraquecimento das estruturas de fiscalização e combate a práticas antiambientais durante o governo passado.
Por sua vez, parlamentares governistas ou ligados à preservação do meio ambiente exaltam a atuação das entidades e alertam para os riscos da generalização. Esse é o caso da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que durante audiência de instalação da CPI, no dia 14, pediu "tranquilidade, serenidade e sabedoria" para que injustiças não sejam cometidas ao longo do processo.
"A gente sabe que, hoje, a política ambiental brasileira está se reposicionando, sendo recolocada. Nós tivemos por anos a fio a negação, eu diria até a exclusão de recursos internacionais que vieram para o país, como do Fundo Amazônia, e que passa a ser retomado", pontuou.
Já a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) vê a necessidade de separar o joio do trigo em termos de organizações que "querem nosso bem e que querem nossos bens", mas ressalta os trabalhos fundamentais que exercem em diferentes áreas.
"O que eu percebo é que falhas de uma minoria tem sido utilizadas pela extrema direita para criminalizar o trabalho de todas as outras ONGs. Há que se separar, mas acho que não há necessidade de uma CPI para tocar esse tipo de investigação. Na verdade, há outros mecanismos. A CPI, penso eu, objetiva criminalizar as ONGs, endossando a postura do ex-presidente Bolsonaro que fazia críticas a essas ONGs que investigavam o trabalho criminoso que ele fazia", aponta.
Entidades veem ataque a quem defende Amazônia e seus povos
Algumas das principais ONGs socioambientais que atuam na Amazônia, como o Instituto Socioambiental, a WWF e o Greenpeace, ainda preferem aguardar serem nomeadas para se posicionar individualmente. Enquanto ainda não são nomeadas, observam o desenrolar dos acontecimentos e concentram suas defesas na plataforma Pacto Pela Democracia, que atua em diversas frentes em defesa de direitos constitucionais.
Segundo Pedro Kelson, representante da organização, as afirmações sobre a aplicação de recursos públicos pelas organizações da sociedade civil são falaciosas e equivocadas. "Esta Comissão Parlamentar de Inquérito é absolutamente vaga em seus objetivos e não parece ter qualquer propósito que não atacar quem defende a Amazônia e seus povos", defende.
Kelson calcula a existência de mais de 820 mil organizações não governamentais no Brasil, sendo que 98 mil atuam diretamente na região da Amazônia Legal. Ele relembra que, nos últimos 20 anos, houve outras duas CPIs das ONGs, uma em 2001 e outra em 2007, "sem que nenhuma irregularidade relevante tenha sido encontrada".
"O que se viu, no entanto, foi a utilização de centenas de milhares de reais de recursos públicos usados nesses procedimentos e um desgaste reputacional para a sociedade civil organizada como um todo a troco de nada", reitera Kelson, que complementa: "Em um universo de quase 100 mil entidades, a primeira CPI apontou 'ilícitos em tese', indícios de irregularidades, em apenas 10 organizações, que nunca foram comprovados".
Por outro lado, o cientista social descreve avanços no período em termos de marcos jurídicos e transparência na regulação de parcerias entre o setor social e o poder público. "Dentre elas, destaca-se a Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Esta lei estabeleceu uma regulamentação nova, mais clara e mais rigorosa para parcerias e transferências de recursos", pontua.
Em 2008, o então relator da segunda CPI sobre o caso, Tasso Jereissati (PSDB), promoveu uma alteração na lei que rege as licitações públicas do terceiro setor, tornando-as obrigatoriamente públicas. Também houve o progressivo aprimoramento dos portais de gestão e prestação de contas, como o Sistema de Convênios, Plataforma +Brasil e o Transferegov, que se somam a outras regras implementadas para conferir transparência em movimentações bancárias de projetos com uso de recursos da União.
Segundo Juliano Araújo, diretor do Instituto Arayara, cuja atuação é focada na justiça climática, há uma tentativa histórica de carimbar ambientalistas como criminosos e parte de uma conspiração internacional mais elaborada. Nesse sentido, a comissão seria uma criação de conteúdos novos para atacar o terceiro setor, de forma geral, o qual ele diz ser cumpridor das legislações vigentes, incluindo fiscais, tributárias e trabalhistas.
"Eventualmente, pode ter organizações da sociedade civil que não cumprem os seus papéis e que têm seus desvios de conduta. Nós temos que combater isso em todos os setores, inclusive estados e municípios, prefeitos, secretários, ou até mesmo deputados estão envolvidos com denúncia. É para isso que nós temos o direito, o Judiciário, os tribunais de contas etc.", afirma.
Ofensiva teria objetivo de encobrir problemas mais profundos
Com exceção do senador Beto Faro (PT-PA), a comissão é toda dominada pela oposição, que recebe grande influência de setores da economia fortes na região amazônica e historicamente contrários à atuação de organizações da sociedade civil. Uma lógica que estaria na contramão do desenvolvimento sustentável, defendido por entidades e pelas novas orientações dos órgãos ambientais ligados ao governo federal.
"O que há é uma tentativa de um pedaço pequeno do Congresso de criar fumaça, problemas para associar o não desenvolvimento econômico de uma região em detrimento de que o não desenvolvimento é culpa das ONGs, quando a culpa de décadas de mau uso de recursos públicos, de gestores públicos desses estados, municípios, e obviamente querem apenas se servir", acusa Araújo.
De acordo com o ambientalista, a desconfiança em relação às ONGs com essa nova CPI tem potencial de ser ampliada com o auxílio da circulação de notícias falsas. "A desinformação no nosso país, hoje, gera efeitos colaterais que eu realmente não sei onde vamos chegar. E, obviamente, usam dessa estratégia de desinformação, são donos de comunicação regionais e locais de rádio e da pressão política dos seus cabos eleitorais e comissionados, a fim de criar ondas de inverdades", diz.
Embora tenha proferido um voto de confiança nas intenções da cúpula da comissão, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), se disse desprovido de "ingenuidade" sobre o governo se tornar alvo no decorrer do processo. As afirmações também foram feitas na abertura da CPI, no dia 14.
"Infelizmente se criou esse debate: desenvolvimento versus preservação. Eu acho que é uma coisa totalmente equivocada, eu acho que preservação e desenvolvimento são demandas atuais, todo mundo precisa gerar emprego, precisa gerar renda e todo mundo sabe que precisa preservar o planeta sob pena de muitas coisas", avalia.
Edição: Rodrigo Durão Coelho