A Ucrânia tem uma história muito peculiar que impede que ela seja completamente separada da Rússia.
Desde que se instaurou no último fim de semana uma crise interna na Rússia com a rebelião do batalhão paramilitar Wagner liderada pelo seu chefe Yevgueny Prigozhin, todas as atenções estão voltadas para os desdobramentos da intriga entre o líder do batalhão de mercenários e o comando militar russo. Análises mais alarmistas davam conta que Moscou estava sob um processo de golpe de Estado e possível cenário de guerra civil. No entanto, horas depois do anúncio da “marcha para Moscou”, foi anunciado um acordo garantindo o recuo dos mercenários para as suas bases e a situação se normalizou.
Enquanto isso, as Forças Armadas da Ucrânia davam continuidade à sua contraofensiva na guerra, anunciando a retomada da cidade de Rivnopol, na região de Donetsk. De acordo com a vice-ministra da Defesa, Anna Malyar, desde o início da contraofensiva, as Forças Armadas da Ucrânia já recapturaram uma área de mais 130km quadrados no sul da Ucrânia.
As intrigas do comando militar russo durante o fim de semana serviram de prato cheio para que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, visse o desenrolar dos fatos como um diagnóstico de uma fragilidade de Moscou. Segundo ele, o conflito entre uma empresa militar privada e o Ministério da Defesa russo mostra a "fraqueza em grande escala" da Rússia. O presidente Vladimir Putin, por sua vez, exaltou a “união” do povo russo em meio à “chantagem” e “tumulto interno”.
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Em meio a um cenário de guerra, é natural que haja uma disputa de narrativas entre as partes beligerantes. No entanto, o motim do último sábado (24) mostrou que a guerra informacional tem um poder de capilaridade muito grande na mídia e na sociedade em geral, reproduzindo um vácuo de informação sobre a vida política na Rússia. E esse vácuo perpassa tanto as análises sobre o que acontece no teatro de guerra russo-ucraniano, quanto todo o contexto histórico e geopolítico que levou à deflagração da tragédia desse conflito.
Para dar conta dessa lacuna de compreensão que reiteradamente preenche o espaço midiático brasileiro, o Brasil de Fato conversou com o professor de Ciência Política da UFRGS, Fabiano Mielniczuk, que há mais de 20 anos se dedica aos estudos de temas ligados à Rússia e ao Leste Europeu, se destacando como um dos principais especialistas sobre o tema no Brasil.
A entrevista foi gravada antes do motim dos mercenários de Prigozhin, mas lança luz sobre um mesmo problema que afeta as análises relacionadas ao que acontece na Rússia e, particularmente, sobre a forma como a Rússia enxerga a geopolítica no século XXI. Segundo Fabiano Mielniczuk, "se a gente não enxergar o que está acontecendo de fato em termos de problema, a gente nunca vai encontrar uma solução”. E o problema apontado por ele reside, em parte, na irresponsabilidade da diplomacia do Ocidente em usar a Ucrânia como forma de atingir os interesses russos.
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“A estratégia da OTAN é expandir a ponto de poder ameaçar o regime russo, derrubar o regime russo. E obviamente que, por trás disso, a tragédia maior dessa história, é que, por trás disso, tem os interesses do Ocidente de confrontar a China no futuro. Então há um movimento geopolítico muito claro do Ocidente nesse sentido. Então o que a OTAN está fazendo agora é simplesmente assumir que aquela hipocrisia que ela tinha que a expansão da aliança levava a democracia e a economia de mercado para os países do Leste Europeu é, na verdade, uma desculpa para alimentar essa possibilidade de afetar os interesses russos”, argumenta.
Da mesma forma, o analista entende que há uma subestimação nas análises sobre a capacidade russa de resistir à contraofensiva ucraniana, mesmo com todo o aporte militar e financeiro do Ocidente. E para sustentar o argumento, Mielniczuk traça uma linha histórica de acontecimentos que ajudam a compreender a mentalidade geopolítica de Putin após o "vácuo de poder" deixado por Yeltsin nos anos 90. Ao mesmo tempo, ele mostra como a Rússia anteviu os movimentos do Ocidente em relação à Ucrânia e conseguiu se estruturar para uma ofensiva de larga escala, enfrentando toda a pressão diplomática e financeira da comunidade internacional no seu apoio a Kiev.
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De acordo com ele, a dinâmica das relações internacionais nos últimos anos indicava uma certa previsibilidade de que a guerra poderia acontecer. E é justamente nessa dinâmica que implica a posição da Ucrânia numa espécie de "cabo de guerra" de interesses entre a Rússia e o Ocidente que reside a explicação para o desdobramento de um conflito em larga escala.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Tudo indica que a prometida contraofensiva ucraniana na guerra de fato começou, como apontam declarações do comando militar russo e do próprio presidente Vladimir Putin, mas a Ucrânia não reconhece oficialmente o início de uma contraofensiva em larga escala. No entanto, podemos observar incursões militares nas regiões fronteiriças, ataques de drones, inclusive em Moscou. Como você avalia os últimos desdobramentos do conflito? Podemos observar uma transformação no equilíbrio de forças ou a tendência indica um prolongamento da guerra sem significativas mudanças na linha de frente?
Fabiano Mielniczuk: A contraofensiva começou, mas o governo da Ucrânia tem uma postura bastante cuidadosa em não divulgar informações sobre as operações no teatro de guerra. Se você se lembra, um pouco antes da contraofensiva circulou um vídeo publicitário muito bem feito, a equipe do Zelensky é muito boa, ele é um ator, produtor, eles fizeram um vídeo com os soldados ucranianos fazendo "shhhh!" (sinal de silêncio) para não passar informação para os russos. É uma peça publicitária muito boa. Então, assim, não vai haver uma confirmação de que a contraofensiva se iniciou e aí é por dois motivos: o primeiro é por questões estratégicas e o segundo é que, se a contraofensiva der errado, você pode salvar a cara, pode dizer que nunca houve uma contraofensiva. Então se houver um fracasso, você fala que não aconteceu, que é uma estratégia de comunicação também bastante utilizada pelo governo da Ucrânia nesse conflito. A minha avaliação é de que, sim, ela (contraofensiva) começou e a minha avaliação é de que ela tem muita dificuldade de prosperar pela estratégia que os russos implementaram nas regiões fronteiriças de contato com as forças ucranianas. Alguns analistas estão falando que essa guerra é uma "guerra de atrito", semelhante à Primeira Guerra Mundial, que foi a famosa "guerra das trincheiras". Você cria fortificações e espera o seu inimigo atacar. Os russos foram muito felizes em criar fortificações na fronteira com os ucranianos, investiram bastante tempo, durante seis meses eles planejaram essas fortificações, eles minaram os campos pelos quais os ucranianos deveriam passar para poder avançar e retomar territórios. Eles colocaram aquelas estruturas que são triângulos de concreto, os chamados "dentes de dragão", que impedem a passagem de tanques de guerra ou veículos de guerra que carregam capacidade bélica. E eles criaram trincheiras bastante bem estruturadas e com uma estrutura invejável do ponto de vista de guerra, para que os seus soldados fiquem protegidos. Então os russos esperaram os ucranianos virem e os ucranianos estão indo. Quando você tem um cenário desses, de uma força que está lutando, que está esperando a outra, a que ataca está muito mais exposta. E geralmente nesses contextos os analistas militares estimam o número de perdas de 1 pra 3, morrem três ucranianos para cada russo morto. Essas são estimativas conservadoras em termos de uma guerra de atrito que um lado tem que atacar o outro. Recentemente no Fórum Econômico de São Petersburgo, Putin disse que a proporção é de 10 pra 1. Obviamente deve haver uma inflação do lado russo para valorizar o poder russo e amedrontar o lado ucraniano, mas alguns outros analistas sobem essa estimativa para 5 pra 1, ou 6 pra 1. Então, de fato acontece a contraofensiva, o governo ucraniano não reconhece que está acontecendo, porque se a contraofensiva fracassar, o governo ucraniano vai dizer que ela nunca aconteceu. É uma estratégia bastante comum hoje em dia na era da pós-verdade.
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Você abordou a questão da estratégia russa. Esse prolongamento do conflito pode indicar uma nova mobilização na Rússia? Uma mobilização em maior escala em relação à parcial que foi anunciada no ano passado. Como você vê isso em termos de recursos da Rússia na guerra?
Em termos de estratégia do conflito, como os russos se retiraram da Ucrânia e fortificaram as posições tinham controlado, isso caracteriza então essa estrutura de uma "guerra de atrito", isso favorece enormemente a Rússia. Alguns analistas, como o John Mearsheimer, que é um teórico realista das Relações Internacionais, ele fala que nesses casos, em uma guerra de atrito, quem ganha é o país que tem a maior população, o maior poder de artilharia e o maior potencial aéreo. Então você tem as condições dadas para que a Rússia ganhe a guerra. Por isso a temeridade do governo ucraniano em reconhecer uma contraofensiva, porque é uma luta de Davi contra Golias, nesse momento atual. Por mais que o Ocidente arme até os dentes a Ucrânia, a estrutura do teatro que está acontecendo no conflito favorece os russos. Então a possibilidade dos russos fazerem uma mobilização geral e subirem dos 300 mil (homens) engajados militarmente para um milhão - que é o que se estima que os russos possam atingir com facilidade - não é real nesse momento. Pode ser caso a Ucrânia reverta a situação no campo de batalha, mas essa estimativa não é real agora e se ocorrer os russos têm condição de suprir. A população da Rússia é de 145 milhões de habitantes. A Ucrânia tinha 45 milhões antes da guerra e hoje deve ter um pouco mais 30 milhões. Os homens em idade de serviço militar na Ucrânia só estão na Ucrânia porque estão proibidos de deixar o país e todos eles vão ser utilizados em um esforço de guerra. E isso tem um tempo de validade, porque chega um momento em que as pessoas morrem e não são repostas, esse é o lado trágico e horrível da guerra, mas é assim que os comandos militares pensam a guerra em termos de estratégia.
Isso leva à posição do Ocidente em relação ao conflito. Muito se fala da garantia de segurança e soberania territorial da Ucrânia, mas se pegarmos a recente entrevista do ex-secretário-geral da OTAN, Anders Rasmussen, a impressão é que não há uma preocupação com as demandas de segurança da Rússia. Há um discurso pela paz, mas com a condição de mais e mais armas para o conflito. Isso não reforça justamente as justificativas de Moscou para iniciar a sua chamada operação militar especial, de que a intervenção seria uma defesa da ameaça da OTAN? Como você vê esse jogo?
Eu sempre fui muito crítico da OTAN. Acabou a Guerra Fria, o Pacto de Varsóvia se dissolveu, a OTAN deveria ter se dissolvido, e a OTAN deveria ter permitido que os europeus construíssem uma estrutura, uma arquitetura de segurança comum, pertencente à Europa e não aos EUA. O que ocorreu é que a OTAN se expandiu justamente para manter a Europa sob o controle norte-americano. E para haver a expansão de uma aliança militar, você tem que ter uma ameaça. Como não havia ameaça, a ameaça foi sendo alimentada, que é exatamente a Rússia. Então está muito clara para mim a responsabilidade da OTAN nesse conflito. Apesar de alguns analistas terem um olhar muito curto e olharem muito para a situação atual, e aí tem o coro do Ocidente de que a guerra é uma guerra não provocada (unprovoked war, em inglês), e todos os editoriais da grande imprensa internacional, nos EUA, na Europa, você vê essa repetição do 'unprovoked war' como se fosse uma lavagem cerebral para que as pessoas vejam que a Rússia é uma potência agressora. Apesar disso, a guerra foi provocada sim, e tem alguns analistas norte-americanos, inclusive pessoas próximas a tomadores de decisão, que estão tendo coragem de dizer isso. Jeffrey Sachs é um desses, que patrocinou a assinatura de uma carta que foi publicada em órgãos de imprensa dos EUA por vários analistas, dizendo "não, a guerra foi provocada sim", porque a OTAN tem uma estratégia de expandir a aliança militar. A estratégia da OTAN é expandir a ponto de poder ameaçar o regime russo, derrubar o regime russo. E obviamente que, por trás disso, a tragédia maior dessa história, é que, por trás disso, tem os interesses do Ocidente de confrontar a China no futuro. Então há um movimento geopolítico muito claro do Ocidente nesse sentido. Então o que a OTAN está fazendo agora é simplesmente assumir que aquela hipocrisia que ela tinha que a expansão da aliança levava a democracia e a economia de mercado para os países do Leste Europeu é na verdade uma desculpa para alimentar essa possibilidade de afetar os interesses russos.
É óbvio que é trágico para a Ucrânia, porque a Ucrânia está envolvida no conflito, está entre duas potências militares, a OTAN e a Rússia. E a Ucrânia tem uma história muito peculiar que impede que ela seja completamente separada da Rússia. E aqui eu não estou falando em termos de assimilação pela Rússia ou de negação da própria existência da Ucrânia, que é um dos discursos que muitas vezes o governo russo utiliza para justificar a guerra. Eu estou falando de mil anos de história compartilhada, que não é de uma hora para outra que você cria na Ucrânia um sentimento nacional anti-russo, e também não é de uma hora para outra que na Rússia você justifica agressões aos ucranianos. A população russa não acreditava que essa guerra seria possível dada a proximidade entre os russos e os ucranianos. Então a situação é muito complexa e a OTAN é a grande responsável por alimentar esse conflito.
Essa é a minha leitura que eu já venho há 20 estudando isso, e há 20 anos eu vejo muitos analistas internacionais alarmados com as consequências da expansão da OTAN. E o (Anders) Rasmussen, ex-secretário-geral da OTAN, que numa entrevista recente disse que não está nem aí para o que a Rússia vai pensar a respeito da incorporação da aceitação da Ucrânia como membro da OTAN, esse camarada é um diplomata inconsequente e milhares e milhares de pessoas vão perder as suas vidas por conta de uma diplomacia inconsequente da Europa, que foi muito pouco madura ao perceber que uma potência nuclear tem capacidade de, pela força, dobrar os seus adversários, assim como os EUA fazem, assim como a China faz, a França faz, a Inglaterra faz. É um outro jogo que está sendo jogado e me parece que a Europa está um pouco perdida depois desse período todo de dominação norte-americana, está um pouco perdida em entender isso. E os europeus vão sofrer as consequências dessa guerra. E aí, é claro, se eu falo isso, eu ‘faço propaganda pro Putin’, mas não, eu estou falando isso porque eu estudo Relações Internacionais e segurança internacional há 20 anos e a Ucrânia e a Rússia especificamente. Então é muito claro para quem conhece que essas coisas iriam acontecer. Não há surpresa nenhuma o que está acontecendo hoje no mundo.
Eu queria explorar um pouco mais isso, porque com certeza é uma posição controversa se a gente considerar todo o lobby pró-Ucrânia que existe na mídia, na academia. O que me parece é que isso tem um efeito trágico dentro da própria Rússia, se a gente pensar que o discurso anti-Ocidente, anti-OTAN, ele acaba sendo mais inflamado para justificara a guerra. Você relaciona isso com essa inconsequência de não se importar com os efeitos dentro da própria Rússia?
Essa dinâmica é bem conhecida. No começo dos anos 90 vários analistas, russos inclusive, alertaram o Ocidente de que um processo de expansão da OTAN ou um tratamento que não reconhecesse o papel da Rússia como uma grande potência militar e nuclear iria causar problemas, porque alimentaria as forças nacionalistas e extremistas dentro da Rússia. Isso é uma dinâmica conhecida pelo Ocidente. No período do Boris Yeltsin, que era o presidente liberal da Rússia, amigo do Bill Clinton, que apresentava as suas entrevistas após reuniões de cúpula alcoolizado e o Bill Clinton dava risada na cara do Yeltsin na frente de toda a comunidade internacional, nesse período já se sabia que a expansão da OTAN e a expansão das estruturas militares da Europa iria acirrar os ânimos dos extremistas na Rússia. Quem eram os extremistas na Rússia durante esse período dos anos 90 e o começo dos anos 2000? De um lado estava o partido nacionalista russo, do Zhirinovsky, e de outro lado estava o Partido Comunista, do Zhiuganov, que tinha uma perspectiva de retomar um passado nostálgico da URSS. Isso implicaria necessariamente em ter uma projeção para outros Estados que ficaram independentes depois do fim da URSS. Então essas forças, o nacionalismo e o comunismo, cresceram nos anos 90 por conta desses processos de interação com o Ocidente. Quando Putin chega ao poder depois do vácuo de poder do Yeltsin, o que você tem é uma postura pragmática do Putin e uma ideia de um centro político aberto a negociar com o Ocidente para desarmar essa bomba relógio. O problema é que o Ocidente continuou avançando, e aí ao longo dos anos 2000 nós vimos a expansão da OTAN para países da antiga União Soviética e vimos inclusive projetos de construção de escudos antimísseis para impedir que a Rússia pudesse utilizar o seu potencial de dissuasão nuclear caso se sentisse ameaçada. Então esses elementos são elementos que inflamam uma postura anti-ocidental dentro da Rússia. Isso levou os russos a se redefinirem enquanto nação, enquanto identidade, como sendo opositores ao Ocidente. E daí você traz junto com isso o resgate da crença ortodoxa, um certo conservadorismo nos valores. E isso é bastante propalado pela política externa da Rússia, que ela é um país conservador em termos de valores. Então contra o liberalismo identitário, que se projetou no mundo ocidental, e no mundo não ocidental nos anos 90 com o fim da Guerra Fria, isso dá capilaridade para o discurso da Rússia, inclusive em vários países europeus. É curioso que um dos maiores conhecedores de Rússia, Richard Sakwa, que escreve bastante sobre Rússia, e ele fala que aquilo que os bolcheviques não tiveram no período da União Soviética, a Rússia tem hoje, que é a capilaridade das ideias russas que são incorporadas por grupos tanto de extrema-direita quanto de esquerda na sociedade ocidental. E isso de certo modo fortalece a postura da Rússia no mundo. Agora, quem alimenta isso? Quem excluiu a Rússia das principais decisões sobre a segurança europeia no pós-Guerra Fria, que foi o Ocidente. E por que? Porque a Rússia pra eles é coisa pequena. O importante para eles a partir do final dos anos 90 e dos anos 2000 é avançar rumo à Rússia para fragmentar a Rússia e ter um regime liberal amigável, para poder atacar o problema da China. Eu acho que é isso que os chineses estão percebendo agora a partir da guerra da Crimeia, mas mais ainda a partir da guerra da Ucrânia, de como o Ocidente está armando a Ucrânia. Os chineses estão percebendo isso, e isso vai levar um quadro de congelamento das relações internacionais com um bloco China e Rússia e um bloco ocidental. A grande vantagem é que os países que não estão envolvidos diretamente nisso, não estão no eixo euro-atlântico e Rússia-China, vão pode exercer pragmaticamente as suas relações com países desses dois blocos. Isso leva a uma incerteza sobre o que vai acontecer com a humanidade nos próximos anos.
Você tocou em um ponto interessante que é a situação da Ucrânia nesse “cabo de guerra” entre a Rússia e o Ocidente. E recentemente houve a visita de uma delegação africana à Ucrânia e à Rússia para discutir condições de paz para a guerra. E um evento interessante foi a apresentação por parte do presidente Vladimir Putin de um suposto documento de termos para discutir a neutralidade da Ucrânia, que poderia garantir um cessar-fogo ainda em março de 2022, durante as primeiras negociações. Esse acordo revela fatores novos para analisarmos a estratégia da Rússia? O que esse fato diz em relação a essa proposta de neutralidade da Ucrânia?
A ideia da neutralidade da Ucrânia já era uma condição que a Ucrânia tinha oferecido em dezembro de 2021 para os EUA e para a OTAN para fazer um acordo de garantias mútuas de segurança. E lá os russos falam o seguinte: eles aceitam a Ucrânia dentro da União Europeia, mas não aceitam a Ucrânia dentro da OTAN, por conta da capacidade de destruição que a OTAN teria contra o território russo. Isso está muito claro, os russos sempre quiseram a neutralidade ucraniana. Isso é tomado no Ocidente como uma ingerência indevida da Rússia em um Estado soberano. E obviamente que os discursos nacionalistas antirrussos na Ucrânia também apontam para a não aceitação disso, porque impediria que o projeto nacionalista ucraniano se instaurasse, que é justamente um Estado puro ucraniano, e não com a presença de russos. Por mais inviável que isso seja, esse é o discurso que tem em partidos de extrema-direita ou em facções de extrema-direita. E assim como na Rússia você tem a alimentação de uma visão anti-ocidental, na Ucrânia a guerra traz um alimento para os grupos nacionalistas antirrussos. Essa é a postura, eles não ideia esse projeto de neutralidade.
Então quando começa a guerra, em 24 de fevereiro, os russos vão para o território da Ucrânia e em pouco tempo chegam próximo a Kiev. Então quando começa a guerra com esse perfil de uma tomada rápida da Rússia, chegando próximo da capital, começam as negociações para evitar a guerra. E o que Putin apresentou é que naquele momento os ucranianos haviam concordada com a neutralidade da Ucrânia e a não entrada da Ucrânia na OTAN, e a Rússia se comprometeu a retirar as tropas que estavam tão dentro do território da Ucrânia. No momento que os russos começaram a retirada dessas tropas, o mundo inteiro viu isso como a derrota da Rússia, como se a Rússia não tivesse capacidade militar para controlar a Ucrânia. Hoje o que acontece? Os russos divulgam esse documento assinado pelos ucranianos dizendo que havia um acordo pela neutralidade. E os russos se retiraram e os ucranianos não cumpriram com sua parte do acordo. E aí o que os russos indicam é que o Ocidente pressionou, e os EUA e Alemanha, também pressionaram a Ucrânia a não aceitar, ou a pelo menos não cumprir o acordo que tinha sido assinado.
O curioso nesse período todo é que no dia 6 de março foi relatado pela imprensa ocidental, e depois foi abado, o assassinato do principal negociador ucraniano, Denies Kriiev. E ele foi assassinado pelos russos? Não. Ele foi assassinado pelos serviços de inteligência da Ucrânia, durante o processo das negociações. Ele foi acusado pelo Estado ucraniano de traição, de estar aliado à Rússia. E ele foi assassinado teoricamente enquanto estava sendo preso, então ele teria reagido à prisão e foi morto. Foi uma execução sumária. O que me parece é que havia uma negociação dos negociadores para conseguir tirar os russos da Ucrânia e evitar o conflito que nós estamos vendo hoje em larga escala e de que alguns interesses agiram para que isso não acontecesse. Assassinaram os negociadores, e aí o acordo se manteve para que os russos se retirassem e depois não foi honrado. Isso diz muito sobre a possibilidade que nós estamos vendo hoje na Rússia e na Ucrânia que não está acontecendo, que foi uma oportunidade clara na primeira semana do conflito.
E aí retoma o padrão que a Rússia utilizou na Geórgia em 2008. Em 2008, quando a Geórgia atacou soldados russos que faziam parte de uma força de manutenção de paz da Comunidade de Estados Independentes na Ossétia, os russos invadiram a Geórgia, chegaram até as cercanias de Tbilisi, negociaram um armstício, o fim do conflito e se retiraram, usando a força para mostrar que eles têm condições de fazer, mas necessariamente iriam fazer. E muitos analistas falaram que "na Geórgia só foi possível, porque a Geórgia é insignificante em comparação com a Ucrânia". Eu concordo. Agora, muitos de nós tomamos conclusões precipitadas por conta da propaganda ocidental de que os russos não têm condições. E o que está acontecendo hoje é que os russos estão demonstrando uma capacidade militar muito mais elevada do que se imaginava antes. Agora, quem imaginava isso? Quem não acredita que a Rússia é uma potência militar e pode fazer o que está fazendo.
No meu caso, eu sempre tive muito cuidado, sempre fiquei muito triste com esse cenário de guerra, imaginando que o conflito pudesse ser um conflito bastante sangrento, porque os russos estão se preparando para isso há bastante tempo. Os russos tiveram uma experiência militar na Síria, eles conseguiram barrar os EUA na tentativa de derrubar o presidente sírio numa guerra fora de suas fronteiras imediatas. Os russos tinham feito uma intervenção em 2008 na Geórgia, tinha deixado a OTAN sem saber como reagir, porque em 2008 a OTAN tinha se comprometido em incorporar a Geórgia e a Ucrânia na OTAN. E, como resultado disso, o Mikhail Saakashvili, que era um presidente ultranacionalista, acreditou que estava respaldado para atacar os russos nas regiões separatistas da Geórgia. Quando ele fez isso, os russos reagiram e a OTAN não fez nada. Os russos deram um sinal em 2008 e a partir de 2008 os russos começaram a reestruturar todas as suas forças armadas, principalmente nesse setor próximo ao Ocidente e começaram a desenvolver tecnologia militar capaz de sustentar um conflito com o Ocidente. Aí em 2013 tem intervenção na Síria, 2014 tem a anexação da Crimeia, e de 2014 até 2022 os russos se prepararam para essa guerra. Os russos transformaram as reservas internacionais que eles tinham, metade das reservas são em ouro, exatamente porque eles sabiam que aquilo que eles tinham em dólar iria ser confiscado pelo Ocidente, que eles iam sofrer consequências. Então está muito claro que isso está se desenhando há muito tempo. Como as pessoas não perceberam que a guerra iria vir? É óbvio que a guerra viria. E não viria porque Putin é um louco. Viria porque quem estuda um pouco de Relações Internacionais e segurança internacional sabe que essas são as consequências das ações. Um louco não faz coisas que as pessoas sabem o que vai acontecer, um louco faz o que é inesperado. E todo mundo sabia que isso ia acontecer, só que isso foi escondido das pessoas.
E é isso que me deixa mais emotivo em relação à guerra, jovens ucranianos estão morrendo, jovens russos estão morrendo, há uma russofobia no mundo, há obviamente uma estigmatização da Ucrânia por parte das forças russas por conta do passado nazista da Ucrânia, da associação do nacionalismo ucraniano com a nazismo, óbvio que os ucranianos não merecem esse tratamento. Mas é óbvio também que nós precisamos encontrar quem são os responsáveis e a responsabilidade está numa dinâmica entre Ocidente e Rússia que foi completamente desconsiderada pela diplomacia ocidental, que é uma diplomacia amadora. […] São vários fatores, obviamente, e todos os atores envolvidos são responsáveis pelo que está havendo hoje. Agora, o que me deixa mais chocado é a incapacidade que o mundo, para além da academia especializada, poder ver isso e falar para as pessoas o que está acontecendo, que é uma espécie de censura que tem hoje, que expressam uma opinião diferente da opinião aceita pela OTAN. E isso está acontecendo. Isso é muito sério, porque se a gente não enxergar o que está acontecendo de fato em termos de problema, a gente nunca vai encontrar uma solução.
Parece que está muito claro que a guerra está longe de uma solução e deve se prolongar por bastante tempo. Talvez a situação mais complexa hoje seja a questão dos territórios do leste ucraniano anexados pela Rússia. Há um dilema muito claro, porque estes territórios (Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye) já estão na constituição russa e, ao mesmo tempo, é uma demanda imprescindível do lado ucraniano. Se a gente assume que a guerra não vai terminar no curto prazo, é possível vislumbrar como será o futuro a médio e longo prazo nesses territórios?
Essa é uma situação muito complicada, porque os dois atores principais – a Rússia e o Ocidente – estão dobrando as suas apostas em cada rodada do jogo. Quando os russos incorporaram formalmente esses territórios na constituição, qualquer tipo de agressão para tirar esses territórios da Rússia vai ser considerado como uma ameaça à existência da Rússia. E nesses casos o que a doutrina russa é que eles vão usar armas nucleares. Isso torna quase que impraticável que esses territórios retornem à Ucrânia, da mesma forma como a Crimeia. E isso mais uma vez amarra as mãos do Zelensky, que não pode aceitar isso, porque os nacionalistas ucranianos não aceitam esse tipo de coisa, e o Ocidente está sustentando os nacionalistas ucranianos nessa guerra. O Zelensky não tem muita liberdade para fazer negociações com os russos nesse sentido. Aí você pode me dizer “mas a Ucrânia foi invadida pelos russos, que anexaram territórios ucranianos, então temos que aceitar isso?”. Nesse momentos, a gente tem que pensar em termos do que é mais adequado para a segurança internacional. E a segurança internacional depende de uma resolução pacífica desse conflito, porque a escalada termina numa guerra nuclear. Do ponto de vista de um congelamento do conflito, com uma situação não resolvida, de não resolução e devolução de territórios para a Ucrânia, o que provavelmente vai acontecer é que os russos criem uma espécie de “zona tampão” entre o que sobrar da Ucrânia e aqueles territórios que foram incorporados pela Rússia. Essa zona tampão hoje está entre as forças russas e Rio Dnieper, que corta a Ucrânia ao meio.
Do ponto de vista do que pode acontecer em termos de uso de armamentos, os russos têm bombas termobáricas, que tem um pode de destruição altíssimo, que conseguem queimar tudo que está a 6 a 10km do epicentro da explosão. Então antes de escalar para o uso de armas táticas nucleares, que têm um poder nuclear reduzido, os russos provavelmente vão escalara para o uso desse tipo de bomba, que aterroriza completamente os oponentes. E obviamente eles podem recorrer a bombas nucleares táticas. Caso aconteça isso, teremos consequências significativas nesses territórios ucranianos, que seria essa espécie de “zona tampão”. Pode ser também que os russos cheguem ao Dnieper e dividam o país ali. E tentem estender essa zona tampão para o lado ocidental. Para mim, o que seria fundamental para que houvesse o fim do conflito agora? Se a OTAN declara unilateralmente uma moratória na adesão de novos membros, incluindo a Ucrânia especificamente, é possível que se consiga um armstício se comecem negociações de paz, mas isso, como eu falei antes, dificilmente vai acontecer porque a OTAN não vai recuar agora, porque o objetivo maior dela é a China. Então a gente vai viver um impasse e eu acredito que vai haver alguma coisa mais séria ainda nesse conflito, e aí vai haver um congelamento do conflito, redesenhando fronteiras do que sera uma nova Guerra Fria, o que alguns autores chamam de Guerra Fria 2.0.
Edição: Vivian Virissimo