Não houve meias palavras. O vereador Adilson Amadeu (União Brasil) foi direto ao ponto na mensagem que enviou aos diretores do Secovi, entidade patronal que representa as grandes construtoras. Em troca da maioria dos pedidos do mercado imobiliário terem sido incorporados ao texto do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, o vereador questiona: “O que o Secovi fará para ajudar o nosso prefeito em sua reeleição?”.
“Uma política sensível desta merece uma contrapartida à altura”, cobra Amadeu, citando que cultiva “grandes amigos” no Secovi. A mensagem foi revelada pela Folha de S. Paulo e confirmada pelo próprio vereador ao Brasil de Fato. Foi enviada quando, sob críticas de urbanistas e movimentos populares, o Plano Diretor – a principal lei urbanística da cidade – foi aprovado em primeira votação. Agora, um texto alterado terá votação final nesta segunda-feira (26).
A definição das normas que vão reger o desenvolvimento da maior metrópole do país até 2029 acontece sob embates de alta temperatura. Por um lado, movimentos populares, urbanistas, pesquisadores e parlamentares de oposição à prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) fazem manifestações de rua, audiências e declarações para pressionar por mudanças no texto que, segundo eles, não favorece a população urbana mais pobre.
Por outro, atores ligados ao mercado imobiliário - o maior financiador de campanhas eleitorais – querem a aprovação de normas que beneficiem economicamente o setor. A aprovação do Plano Diretor acontece faltando pouco mais de um ano para as eleições municipais, por meio da qual tanto o atual prefeito como vereadores visam garantir mais um round na cadeira onde estão.
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Das doações de pessoas físicas feitas durante a última eleição, 26 dos 55 vereadores que hoje compõem a Câmara Municipal de São Paulo foram financiados por empresários do ramo imobiliário. Dos R$ 6,1 milhões recebidos pelos parlamentares, R$ 2,8 milhões vieram daí.
Amadeu não exagerou quando argumentou às empreiteiras que a primeira versão do texto “recepcionou quase a totalidade dos pleitos desta reconhecida entidade”. De 26 propostas entregues pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) à Câmara, 18 foram incorporadas na versão aprovada em primeira instância.
“Isso expressa que essa revisão do Plano Diretor é de interesse de um setor específico e não do conjunto da população paulistana”, avalia Maria Lúcia Refinetti Martin, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e participante da rede BrCidades.
Procurado, o vereador Adilson Amadeu disse que a mensagem foi “aberta”. “E reitero, quais as contrapartidas o Secovi tem a oferecer, em forma de pagamento das outorgas onerosas, para a cidade de São Paulo?”, disse em nota, como se estivesse repetindo a pergunta enviada por Whatsapp.
Mas o apoio que pediu na mensagem às empresas não foi “para a cidade”. Foi para a reeleição de Ricardo Nunes. Em nota, o vereador procurou dar outro entendimento ao diálogo, afirmando que diante de “praticamente todas as demandas da entidade” terem sido atendidas, ele quer garantias que assegurem “habitação popular”.
Para Débora Lima, coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a mensagem de Amadeu é “a expressão do quanto esses vereadores estão comprometidos com quem financia a campanha deles, não com quem votou neles. Porque com certeza a maioria que votou neles foi gente da periferia, onde esse debate nem chegou.”
“Nunes quer vender São Paulo”, dizia um dos cartazes do ato feito pelo MTST até a Câmara Municipal na última terça (20). Das 10 maiores doações de pessoas físicas para a campanha da chapa de Ricardo Nunes em 2020, sete foram de empresários do setor imobiliário. Eleito vice, Nunes assumiu a prefeitura depois da morte de Bruno Covas (PSDB) em 2021.
Pesquisadora do Cebrap e professora do Insper, Bianca Tavolari considera que, enquanto um ator influente na cidade, o mercado imobiliário precisa ser ouvido na elaboração do Plano Diretor. “Mas nesse nível não faz sentido. Pode parecer revolucionário se tratando dessa gestão, mas tanto a Câmara quanto a prefeitura precisam definir de acordo com o interesse público. Há uma confusão desses interesses”, avalia.
“Pegadinha”
A última versão do texto do Plano Diretor que vai ser votado se tornou pública na noite de quarta-feira (21). Nele, analisa Tavolari, tem uma “pegadinha” em um dos pontos mais criticados, que diz respeito às áreas em torno de estações de transporte público em que se poderá construir prédios sem limite de altura. Da forma como está, diz a professora, parece que houve um recuo diante das críticas mas, na realidade, isso não aconteceu.
Inicialmente, o projeto previa que essa verticalização ilimitada pudesse acontecer em um perímetro de 1km em torno das estações. No texto atual, a distância diminuiu para 700m, mas o cálculo foi alterado. Ao invés de contar apenas as quadras que estejam totalmente dentro do raio, o projeto prevê que se um quarteirão tiver só uma pontinha dentro do perímetro, ele inteiro é contabilizado.
“Os eixos são áreas em que se estimula a densificação, ou seja, que se construa mais para que as pessoas possam morar perto do transporte. Idealmente, era isso, mas o que temos visto desde 2014 aqui não é isso que está acontecendo”, explica Bianca. “Estamos vendo apartamentos de alto padrão, estúdios que são usados para aluguel em plataformas, com muitas vagas de garagem ao lado do metrô. E um preço muito alto, inacessível para a maior parte da população”, descreve.
É essa lógica que será ampliada, se preocupa Tavolari, ressaltando que as empreiteiras não constroem prédios nos eixos de transporte dos bairros periféricos. “Outra questão problemática é que não temos estudo de impacto desse potencial construtivo”, ressalta Bianca, que é também uma das coordenadoras do Observatório do Plano Diretor do Insper.
Outra mudança esperada por ativistas como os do MTST e que não foi acatada diz respeito ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb). O caixa da Prefeitura destinado a políticas como a construção de habitação social e urbanização de favelas poderá ser usado, também, para repavimentação da cidade.
“O que falta na cidade de São Paulo não é dinheiro para recapeamento. Tem recurso próprio para isso”, argumenta Débora. “A gente vê em São Paulo que o número de pessoas em situação de rua e o déficit habitacional aumentaram. Uma cidade que deveria encarar a moradia como prioridade quer esvaziar um dos recursos voltados a isso para recapeamento”, critica.
Recuos
Por outro lado, algumas mudanças foram comemoradas por urbanistas, movimentos de moradia - e até meteorologistas. O texto que tinha sido aprovado em primeira instância por 42 votos a 12 revogava uma lei da década de 1970 que impede a construção de edifícios em volta do Mirante de Santana.
Acontece que ali está a principal estação do Instituto Nacional de Metereologia (Inmet) no município. A possibilidade de um paredão de prédios ser construído no local, alerta Bianca, “faria com que a gente tivesse um apagão de dados sobre o clima em São Paulo”. Esse ponto, no entanto, foi retirado.
Outro item sobre o qual houve um recuo é o da outorga onerosa. Trata-se de uma taxa paga por quem constrói acima do limite estabelecido. Esse recurso é destinado ao Fundurb. Na proposta anterior, ao invés desse pagamento ser feito em dinheiro e investido no Fundurb, como é hoje, as empresas poderiam quitar essa dívida fazendo obras. Seria, na prática, contratações sem licitação e a diminuição dos recursos voltados à habitação social. “Isso voltaram atrás, foi importante”, opina Bianca.
A queda de braço segue e o Plano Diretor será votado nesta segunda-feira (26), ainda diante de uma indefinição da posição de diversos parlamentares. O PT, por exemplo, segue dividido. O diretório municipal indicou posição favorável ao projeto, mas cada parlamentar poderá votar como preferir.
Na primeira votação do projeto, os votos de quatro petistas foram favoráveis e de outros quatro, contrários. Já os vereadores do PSOL, Novo e PSB, votaram contra. Todas as outras siglas aprovaram o texto.
Edição: Rodrigo Durão Coelho