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Artigo | Os segredos ocultos de Dom Casmurro: o que Machado deixou de fora do romance

Dom Casmurro foi um dos romances mais aguardados e se tornou também um dos mais complexos do autor

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Dom Casmurro retrata a sociedade burguesa brasileira do século XIX - Reprodução

No dia 15 de novembro de 1896, Machado de Assis surpreendeu os leitores com uma publicação intrigante no número de estreia do periódico República, do Rio de Janeiro. O texto, “Um agregado”, era simplesmente um “capítulo de um livro inédito”, como o autor fez questão de esclarecer nos parênteses que acompanhavam o título. 

Aquela publicação tão peculiar não se limitava a adiantar trechos do Dom Casmurro, icônico romance que seria lançado apenas quase quatro anos depois. Na verdade, apresentava uma série de diferenças significativas, com cortes e acréscimos cuidadosamente aplicados. A ordem dos fragmentos extraídos dos capítulos 3, 4, 5 e 7 do futuro romance foi minuciosamente rearranjada naquela versão preliminar, produzindo uma narrativa parcialmente nova e envolvente.

Dom Casmurro, o oitavo romance escrito por Machado de Assis (1839-1908).

Foi um dos mais aguardados e se tornou também um dos mais complexos do autor. Lançado em 14 de março de 1900, pela livraria Garnier, na travessa do Ouvidor, 13, no centro do Rio de Janeiro, o romance teve sua tiragem inicial de 2000 exemplares rapidamente esgotada, resultando no lançamento de uma nova edição ainda no mesmo ano. 

Parte da trilogia realista de Machado, juntamente com Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891), Dom Casmurro retrata a sociedade burguesa brasileira do século XIX, mesclando ironia e ambiguidade, enquanto narra a desditosa história do casal Bento e Capitu Santiago, apresentada exclusivamente sob o ponto de vista do marido, de maneira reticente, desde o namoro adolescente até o casamento atormentado pelo ciúme e pela dúvida que virou polêmica literária: Capitu teria traído Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar?

Dom Casmurro

Na carta de 24 de dezembro de 1908 ao crítico José Veríssimo, o escritor Mário de Alencar (1872-1925) revela um manuscrito perdido do Dom Casmurro e compartilha detalhes sobre o processo de composição do livro. Segundo Mário, Machado de Assis teria lhe segredado uma folha de rosto de Dom Casmurro, encontrada ainda em forma manuscrita, que continha uma epígrafe de Diderot, a mesma utilizada na coletânea de contos "Várias histórias", de 1896. 

Essa descoberta sugere que a ideia inicial de Machado era escrever um conto e a transformação em romance aconteceu durante a composição. A epígrafe mencionada por Mário é uma citação do escritor francês, tirada de seu livro Salão de 1767, que aborda a crítica da arte de forma extensa, extravagante e inventiva. 

As palavras de Diderot, traduzidas para o português, expressam a ideia de contar histórias como uma constante na vida: “Vamos sempre contar histórias (...) o tempo passa e o conto da vida chega ao fim, sem que percebamos”. Denis Diderot foi cofundador, editor-chefe e contribuidor da Encyclopédie, uma das primeiras enciclopédias da história.

O novo romance de Machado de Assis, que viria a se chamar Dom Casmurro, já era mencionado em suas correspondências desde 1895.

Em uma carta de abril daquele ano, Machado revelou que estava trabalhando em “algumas páginas” nas horas livres que lhe sobravam do “trabalho administrativo”. 

Com grande curiosidade, o amigo Magalhães de Azeredo ansiava por mais detalhes e, de forma surpreendente, Machado respondeu-lhe em maio, revelando que se tratava de um romance no estilo de Quincas Borba. Machado raramente abordava projetos inacabados, o que torna essa resposta incomum. 

O livro não foi publicado naquele ano. Somente em julho de 1899, Machado confirmaria a Azeredo que o romance se chamaria Dom Casmurro e que já havia lido as segundas provas. No entanto, a publicação seria adiada novamente e só ocorreria no ano seguinte.

Entre o rascunho e a edição final

Quase quatro anos antes do lançamento do romance, Machado de Assis publicou o texto “Um agregado” no periódico República. Essa publicação incomum de excertos de um romance inédito apresentava algumas diferenças em relação à versão final. Capitu, por exemplo, é apresentada com 13 anos na versão de 1896 e 14 anos na final, mesmo com o avanço de dois anos na narrativa (de 1855, para 1857).

Seu pai, Pádua, ainda se chamava Fialho. O “coronel Cosme” depois se transformará em advogado e a localização da famosa casa da rua de Matacavalos era, inicialmente, na rua do Resende. Além dessas diferenças, Cantagalo é substituída por Itaguaí no romance final, embora tenha sobrado uma referência à primeira cidade no capítulo 31. Esse “cochilo” do autor permaneceu no texto final e ainda segue persistindo, há mais de um século, em edições mais recentes do romance.

A arte do silêncio e o enigma de Dom Casmurro

A composição do romance Dom Casmurro foi considerada “o evento mais significativo” na vida de Machado de Assis, de acordo com o crítico Agripino Grieco (1888-1973). Wilson Martins (1921-2010), outro crítico literário, destaca que Machado se tornou “um desafio constante e crucial” para a literatura brasileira. E isso se deve, em grande parte, ao famoso “enigma de Capitu”, que, na década de 1960, até virou título de um livro famoso do crítico baiano Eugênio Gomes. 

A comparação entre trechos da edição preliminar de 1896 e da versão final do Dom Casmurro publicada em 1900 revela as mudanças feitas pelo autor, evidenciando a manipulação da narrativa. Podemos notar como Machado modificou a história ao excluir trechos, especialmente aqueles que poderiam ser relacionados ao enigma do adultério. A supressão dessas partes visou, certamente, dificultar ao leitor a descoberta e a revelação do mistério que envolve a trama.

Machado de Assis demonstra sua grandiosidade não apenas nas palavras escritas, mas também na habilidade de suprimir informações em suas obras. Em Dom Casmurro, o autor usa o poder do silêncio para construir a narrativa, principalmente ao explorar a relação entre Capitu e uma suposta traição. 

Ao comparar as duas versões, percebe-se que Machado intencionalmente modificou o enredo, deixando de fora trechos reveladores.

Essas exclusões sugerem que tais fragmentos poderiam ter dado pistas, desde o início, permitindo aos leitores mais perspicazes associarem o comportamento de Capitu ao de seu pai e anteciparem o desfecho trágico de uma trama de adultério. 

Dom Casmurro destaca-se como um exemplo da maestria de Machado em criar curiosidade e suspense, convidando os leitores a explorar nas entrelinhas em busca da verdade oculta. Adentrar esse intrigante universo é embarcar em um desafiador jogo em que cada sutil silêncio se torna uma peça crucial para decifrar a complexidade dessa obra-prima da literatura brasileira.

*Cláudio Soares é editor, escritor e jornalista. Atualmente, está escrevendo a biografia de Machado de Assis.

Edição: Mariana Pitasse