Nos últimos meses, três aspectos ajudaram a colocar a educação no centro do debate nacional. A começar pelos terríveis casos de violências nas escolas, em Blumenau e em São Paulo, seguidos pelas mobilizações pela revogação do Novo Ensino Médio. Por fim, o mais recente, a disputa para saber se a proposta da nova versão do arcabouço fiscal vai inserir ou não os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no arrocho. Verificamos também algumas movimentações grevistas por direitos dos profissionais da educação, mas estes embates se encontram mais localizados nas esferas estaduais.
Assim, enfatizar as demandas urgentes e necessárias deve ser tarefa de quem luta por uma educação de qualidade. Afinal, são mais de 500 anos de história que a educação por aqui não é tratada de forma favorável as classes e grupos dominados. Parte da população sequer reivindica este direito básico, pois a negação é regra e não exceção.
O grande pano de fundo da conjuntura são os confrontos entre classes sociais distintas, frações de classes, a condensação de forças em torno do Estado e o bloco no poder do governo Lula. As contradições geradas, nesta movimentação política, precisam ser entendidas e ações estratégicas devem ser cirúrgicas.
Após um pouco mais de 5 meses de governo, os trunfos e as dificuldades postas retratam o desdobramento político do cenário pós-golpe de 2016. O Brasil mudou bastante, desde o primeiro governo Lula, em 2003-2010. Aquele ciclo de maior otimismo e prosperidade foi duramente abalado com políticas pesadas de austeridade fiscal, judicialização da política, perdas de direitos sociais e trabalhistas. Para culminar, o Brasil testemunhou a ascensão fascista-bolsonarista, desde as jornadas de junho de 2013.
O retrato disto se revela no desenho do Congresso Nacional atual (principalmente na Câmara dos Deputados). A força do contexto é tamanha que uma abrangente aliança político-eleitoral foi imperativa para derrotar Bolsonaro no pleito de 2022. As bases políticas de negociação do governo estão mais complexas e difíceis agora, o campo conservador adquiriu uma enorme musculatura e a polarização social é contundente.
Deste modo, a transição rumo a um projeto democrático popular de país, está bastante acirrada, demandando empenho e participação política das classes populares para modular outra correlação de forças. Entendendo que o campo progressista se encontra em uma posição desfavorável para construção de reivindicações e mobilizações, sobretudo pela situação econômica que consome a vida e a saúde do pobre, o papel do governo como um agente político privilegiado ganha destaque.
Nos dois espaços, as pautas populares encontram desvantagem, tanto porque os conservadores lidam melhor com as redes e não têm nenhum compromisso com uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade, quanto porque a imprensa abraça o reformismo empresarial na educação. Se a própria Rede Globo, por exemplo, se posicionou contra Bolsonaro, em 2022, e foi um organismo importante na ocasião, agora eles atacam o governo Lula diariamente.
Pedagogia do medo
Traçado este quadro, mergulho na temática educacional propriamente dita, a começar pela questão da violência nas escolas. Inúmeras armadilhas estão sendo construídas, ganhando projeção no senso comum, pois o medo de ameaça aos nossos filhos encontra ampla margem no imaginário social e nas manchetes de jornais. Prontamente, a classe política trata de angariar isto às suas narrativas, apresentando propostas, algumas delas bastante controversas e infundadas. É a pedagogia do medo.
Neste processo, uma convergência se forma: a necessidade de não fazer mais vítimas. O contrassenso se encontra em algumas soluções ventiladas, que podem ser armadilhas para as escolas e para a educação como um todo. Em investigações anteriores que desenvolvo, já era possível perceber a aparição esporádica de projetos de leis, em câmaras municipais, com tom policialesco. Ou seja, não estamos falando de nada novo.
O caso que mais chamava a atenção era a proposta de instalar detector de metais nas escolas. Como era de se imaginar, após escalada da violência nestas instituições, este projeto e mais outros ganharam sobrevida, a exemplo da ideia de fortalecer rondas escolares (da Polícia Militar ou de guardas municipais), instalar botão do pânico, treinar as equipes pedagógicas com táticas de proteção e autodefesa etc. As boatarias que sucederam os dias dos ataques corroboraram para criar um ambiente próspero para estas ideias. Com o passar de alguns dias, a mídia e as redes sociais "esfriaram" um pouco tais iniciativas. Porém, nos bastidores de espaços legislativos, projetos de lei estão sendo disputados com essa tônica.
De olho nas eleições municipais de 2024, o campo conservador certamente deve manter o debate acalorado ou reativá-los. Vai ser bastante desafiador contornar o caráter dissimulado que será produzido.
Setores especialistas na temática, da sociedade civil, também foram escutados, resultando na proposta de governo de injeção de recursos para combater futuras ameaças potenciais. Houve foco também na prevenção, todavia, merece enaltecimento o tom empregado de que não se combate a violência fazendo guerra. O peso na cultura da paz também foi assertivo.
A questão fundamental que está em jogo neste processo é que vivemos no Brasil, recentemente, uma escalada da violência, em múltiplos aspectos, assim como parte significativa da juventude se encontra em condição de falta de perspectiva de vida. Deste modo, setores do campo conservador-autoritário-fascista, que são diretamente responsáveis pelo acirramento dos ânimos no país, aproveitam o clima de tensão para aumentar a dose do discurso da opressão como alternativa inevitável. Cabe aos educadores, subsidiados por políticas públicas consistentes, demonstrar que uma alternativa à ascensão da violência é debater com profundidade as causas destes fenômenos.
Ainda que de forma atravessada, um elemento que se revelou crucial para pensar a temática da violência é o papel das redes sociais na construção da subjetividade da juventude. No dia 1º de maio, o Google elaborou uma espécie de editorial, na sua página principal, destacando que o projeto de lei de combate às fake news (PL 2.630), segundo eles, pioraria a internet.
Com este posicionamento descabido e mentiroso, a gigante da internet demonstrou sua face colaborativa com as fake news. Após a ascensão fascista no Brasil, uma atitude com tal conotação colabora com toda movimentação golpista, autoritária, extremista, antipolítica e pouco preocupada com as verdades dos fatos. Considerando que este campo político vem angariando muitos jovens, o assunto ganha teor de urgência. Preocupa o manejo do conjunto de dados de estudantes e educadores deste país que esta empresa tem, após aproximadamente dois anos de amplas atividades remotas na pandemia da covid-19.
Novo Ensino Médio
Tratando agora de outro tema central da conjuntura, a disputa de hegemonia sobre o Novo Ensino Médio (NEM) tem no bloco no poder do governo Lula um fator chave para o andamento da reforma. O governo apostou no Movimento Todos pela Educação TPE) como um agente de destaque na composição do Ministério da Educação. Tanto este movimento quanto parte considerável dos secretários de educação dos estados, assim como outras frações burguesas, também defendem o NEM.
Frações da burguesia reivindicam o seu espaço, o que é legítimo na disputa política. O Movimento Todos pela Educação tem um peso neste processo, pois representa uma possibilidade de construção de sustentação política do governo frente ao setor econômico. Além do mais, a proximidade deles com o MEC, nas administrações petistas, já vem de longa data.
O TPE é uma das poucas frações burguesas dispostas a bancar o governo no debate público, algo que o PT não vem encontrando tanta facilidade desde o golpe de 2016. Este movimento se posicionou contra o governo Bolsonaro desde o início, o que o credencia como um movimento distinto de parte importante de frações burguesas no Brasil, que aderiram ao bolsonarismo.
É inegável também que o ministro da Educação, Camilo Santana, apresenta uma afinidade com o modus operandi da agenda do TPE. Desta forma, a construção de uma política governamental nestes moldes encontra muitas convergências.
O próprio Lula parece não se opor frontalmente ao desenho político-pedagógico do Novo Ensino Médio. Uma hipótese é que tal proposta se afina, de algum modo, com a trajetória dele, de qualificação profissional seguida de mobilidade social via ensino técnico.
Pensando o contexto de amplos setores sociais, no Brasil, o NEM responde às demandas de ocupações laborais não muito complexas, pois facilita a formação voltada para uma rápida entrada no mercado de trabalho. Desde a reforma trabalhista do governo Temer, foi verificado um aumento do trabalho informal. Logo, o NEM é condizente com este triste ciclo.
O respectivo modelo reforça a concepção dualista educacional (que dicotomiza a educação para filhos de trabalhadores e as elites). Isto não é inédito no Brasil, ao contrário: há mais de noventa anos, o Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (de 1932) já criticava este viés existente por aqui.
Uma alternativa a esta política seria a concepção de Ensino Médio Integrado, que tem uma ampla e bem fundamentada produção do conhecimento no Brasil. Algumas escolas, como os Institutos Federais, tentam fazer valer esta perspectiva, porém tal modelo exige investimento financeiro e estrutura adequada.
Participando de fóruns e fazendo pesquisas, notei que esta perspectiva é ainda de difícil compreensão para a população brasileira menos escolarizada, assim como é também para parte dos profissionais da educação. Nem mesmo dentro do PT há uma ampla compreensão. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por sua, vez desenvolve iniciativas importantes com esta tônica, mas as condições que os respectivos movimentos encontram para a consolidação pedagógica não são similares e replicáveis às escolas básicas em geral.
E ato é necessário, uma vez que a respectiva reforma já se apresenta fracassada desde a origem devido as dificuldades estruturais para sua consolidação nas redes de ensino, assim como também pela fragilidade pedagógica etc. São grandes os relatos e as pesquisas que sustentam o posicionamento pela revogação. A árdua tarefa está na passagem deste tipo de diagnóstico, para uma ação política bem sucedida.
No início do governo, parecia ser uma pauta consolidada o fortalecimento da implementação do NEM. Contudo, a movimentação de setores que compõem as lutas populares de educadores, como a UNE, a CNTE e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, conseguiram colocar no centro da discussão nacional a necessidade de rever a política. Este fato, por si só, já é um grande acontecimento. Some-se também a iniciativa da Campanha de costurar um projeto de lei alternativo ao NEM (PL 2.601/23). Isso fez com que o MEC se reposicionasse. Por outro lado, tanto a imprensa quanto as frações burguesas da educação estão se movimentando para tentar convencer de que o NEM é fundamental para a melhoria da vida escolar brasileira.
No atual cenário, a disputa está dada e acirrada. Se a revogação do NEM e redefinição de rumos é difícil, por conta da força do bloco no poder do MEC, experiências recentes, como a luta pelo Novo Fundeb, que entrou na Constituição em pleno governo Bolsonaro, em 2020, apontam um sinal de que sim, é possível avançar rumo a uma proposta digna para a educação. As mobilizações feitas na ocasião foram desenvolvidas na base de muita pressão, mobilização e força argumentativa junto ao Congresso Nacional.
Outro fator complexificou ainda mais as lutas populares. A proposta de atualizar o arcabouço fiscal ganhou uma emenda de última hora que pode atingir o Fundeb, a principal política de financiamento da nossa educação.
Formação da juventude
O conjunto destas movimentações podem ser interpretados à luz da nossa história. Há sinais claros de que as frações burguesas não abrem mão com facilidade das derrotas sofridas no passado, reivindicando posições e recursos assim que a conjuntura for favorável novamente. A disputa em torno do orçamento público brasileiro é uma das grandes marcas do modus operandi da burguesia do país. No caso da educação, está em jogo também o viés ideológico da formação da juventude.
Outro prisma vital é que o direito à educação de qualidade não é uma prioridade das nossas elites políticas, desde quando o país se forjou como nação. A formulação de Darcy Ribeiro de que o fracasso da nossa educação é um projeto se mantém atual. Isto rende votos, a perpetuação de uma forma de fazer política, assim como dificulta o aprimoramento de um dos pilares da mobilidade social, que é a educação.
Estamos pagando este preço. Examinar a história a contrapelo também permite visualizar que o Brasil consegue apresentar saltos qualitativos até mesmo em espaços curtos de tempo, a depender dos contextos conjunturais, a exemplo do ocorreu na constituinte e depois na promulgação da Carta Magna.
As lutas populares estão fervilhando, a exemplo das greves de profissionais da educação. No Rio de Janeiro, o embate ocorre em resposta ao ataque do governador Cláudio Castro sobre o plano de carreira. A categoria, em geral, vem demonstrando uma importante coesão. Até agora, responsáveis dos alunos parecem entender a legitimidade do movimento. Alguns perigos, no entanto, acendem alertas, como a preocupação destes mesmos responsáveis com a educação dos filhos que ficaram com as aulas comprometidas durante a pandemia.
Consultando alguns interlocutores do movimento grevista, nota-se que as ações caminham numa linha tênue entre a conquista de direitos, a luta contra o NEM e, ao mesmo tempo, atenta à situação dos alunos. Faz-se necessário muita habilidade política.
No mesmo Rio de Janeiro, verificamos, no mês de abril, uma operação policial no Complexo da Maré, onde uma escola estadual foi palco de confrontos. Este tipo de atitude transparece a forma brutal que o governador e o aparato repressivo lidam com a população mais pobre. Esta cena de violência não mobilizou a opinião pública ou os conservadores da mesma forma que os ataques em São Paulo e Santa Catarina. É um indício de que é difícil o sofrimento dos mais pobres ganhar adesão, até mesmo em contexto de barbárie.
Caminhando para fechar este texto, muitos movimentos sociais tendem a fazer pressões em cima dos governos e do empresariado, buscando melhorias nas condições de vida e avanços nas suas pautas tão reprimidas durante os últimos difíceis sete anos. Quando há democracia, há possibilidade maior de luta, assim a história da vida democrática ensina. É neste sentido que a coesão dos movimentos e o foco certeiro nas pautas devem ser desenhados.
Faz-se necessária à assimilação de que o governo Lula precisa de sustentação política e, ao mesmo tempo, deve ser o palco central da movimentação em torno do avanço das lutas populares. Esta dialética deve estar no nosso horizonte, sem titubear. Do outro lado da moeda, o fascismo segue vivo e pronto para avançar ainda mais e em posição mais favorável, no Brasil. Lembremos todos os dias que a derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula foi muito vital em todos os sentidos, mas foi extremamente difícil.
Teremos, em breve, também uma ampla articulação em torno da construção do próximo Plano Nacional de Educação (2024-2034). Certamente toda pauta dos costumes, a questão da violência nas escolas e embates sobre a privatização da educação estarão no centro do processo. Foi assim nas conferências preparatórias do PNE 2014-2024. Agora, no entanto, os extremistas se encontram mais articulados e fortes em todos os sentidos. A unidade do campo progressista será tarefa urgente, a possibilidade está dada. Tiremos as lições das vitórias do PNE que está em vigor, assim como as derrotas.
Se o governo se vê pressionado hoje nos pontos abordados neste texto, que a gente relembre que um caminho potencial positivo já foi feito por esta mesma gestão, logo no início de 2023, por exemplo, com a ampliação de verbas para a ciência e a revalorização das universidades, que são imprescindíveis para um projeto de país com melhor tecnologia.
O legado lulista anterior também tem bastante a nos ensinar, pois caminhos que estão ajudando a sustentar a democracia agora, foram plantados há quase 20 anos, como as políticas de cotas nas universidades, ampliação destas, aprovação de concursos públicos, sem falar na consolidação da magistral rede dos Institutos Federais.
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Laboratório de Políticas Públicas.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse