Entidades que reúnem trabalhadores da enfermagem lamentaram os rumos do julgamento do piso da categoria, que foi suspenso por conta de um pedido de vista apresentado pelo ministro Dias Toffoli. O tema voltou a ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na sexta (16), em plenário virtual, e ficaria em debate até a próxima sexta (24), mas a discussão foi suspensa logo nas primeiras horas da madrugada após a solicitação do magistrado.
Pouco antes de Toffoli pedir vista, o relator do caso, Luís Roberto Barroso, apresentou uma complementação de voto assinada em parceria com o ministro Gilmar Mendes, um formato inédito na Corte. O teor de parte da posição dos magistrados também preocupou a categoria. No documento, eles defendem a instituição do piso por parte da União, das autarquias e fundações públicas federais, de acordo com o que manda a Lei nº 14.434/2022, sancionada em agosto do ano passado. A legislação determina valor salarial mínimo de R$ 4.750 para enfermeiros, 70% desse valor para técnicos de enfermagem e 50% para auxiliares e parteiras.
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No entanto, para profissionais celetistas, os ministros apontam que a implementação do piso deve ser precedida de negociação coletiva entre as partes por conta de riscos como "demissões em massa ou prejuízos para os serviços de saúde". "Não havendo acordo, incidirá a Lei nº 14.434/2022, desde que decorrido o prazo de 60 dias contados da data de publicação da ata deste julgamento", afirmam.
Entidades sindicais apontam que medidas como negociações coletivas deixam os trabalhadores mais vulneráveis ao assédio dos empregadores do ramo. "Isso gera uma dificuldade porque a nossa tentativa de criar o piso salarial via legislação é justamente porque, [lidando] com o patronato diretamente, a gente tem mais dificuldade de garantir salários bons, tanto é que a média salarial hoje no país é bem baixa. O sistema capitalista de forma geral trabalha com exército de reserva. O grande índice de desemprego entre a classe trabalhadora faz com que os salários sejam jogados pra baixo", afirma a presidenta do Sindicato dos Enfermeiros de Pernambuco (Seepe), Ludmila Outtes.
Já no que se refere aos servidores públicos dos estados, municípios, Distrito Federal, suas autarquias e fundações, os ministros defendem que haja um crédito suplementar por parte da União para custear os valores, caso a quantia liberada recentemente pelo governo federal não seja suficiente para cobrir toda a despesa. Barroso e Mendes apontaram que, sem esse crédito adicional, o pagamento do piso não pode ser obrigatório nessas instâncias.
Jornada
Na complementação de voto, os dois ministros sustentam ainda que, uma vez disponibilizados os recursos financeiros totais para o custeio, o pagamento do piso deve ser proporcional nos casos em que os trabalhadores tenham carga horária abaixo de oito horas por dia ou 44 horas semanais. Esse foi o ponto que mais preocupou lideranças da categoria. O segmento trava inclusive uma disputa paralela no Congresso Nacional para tentar emplacar o Projeto de Lei (PL) 206/23, que prevê carga horária máxima de seis horas por dia e 30 horas semanais para os trabalhadores da área.
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"Há alguns anos a gente vem num movimento de tentar reduzir a jornada da enfermagem e regulamentar as 30 horas. Então, vincular o piso a uma jornada alta dessa forma, na prática, vai reduzir o valor do piso salarial porque a grande maioria dos locais de trabalho é com 40 ou 30 horas semanais", ressalta a presidenta do Seepe. Para a Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), esse aspecto do voto dos ministros foi um "banho de água fria".
"É uma frustração para a gente, inclusive porque o voto do Gilmar Mendes explicita as intenções do Judiciário brasileiro, que tem apontado a favor dos empresários da saúde, dos donos de hospitais, porque na Lei nº14.434 não tem explícita a vinculação do piso a alguma jornada de trabalho", diz o secretário de formação da FNE, Jorge Henrique.
"O pagamento do piso está vinculado à jornada contratual, ou seja, é a jornada vigente de cada trabalhador. Quando o Gilmar coloca a relação com as 44 horas semanais e que a base de cálculo do piso deve ser a remuneração, isso chega quase como uma afronta a tudo que a gente conquistou até aqui. Na prática, a enfermagem brasileira não vai ganhar com o piso, então, justamente porque a gente queria discutir a proporcionalidade das cargas horárias", acrescenta o dirigente.
Para garantir a fixação do piso nacional da categoria, o Congresso Nacional aprovou em 2022 diferentes dispositivos, entre eles o projeto que deu origem à Lei nº 14.434/2022 e a Emenda Constitucional 127/2022. Esta última prevê que recursos do superávit financeiro de fundos públicos e do Fundo Social sejam utilizados para o custeio do piso no setor público, entidades filantrópicas e unidades prestadoras de serviço que tenham pelo menos 60% dos pacientes atendidos via Sistema Único de Saúde (SUS). Também foi promulgada, antes disso, a Emenda 124/2022, que insere na Constituição Federal a previsão de existência do piso nacional da enfermagem.
"A gente não tinha nenhuma ilusão com o STF, até porque o Supremo já deu aval a diferentes medidas antitrabalhistas, como é o caso do projeto da reforma trabalhista, mas, como a gente tinha avançado na aprovação de uma lei, de duas emendas constitucionais e também na perspectiva de estabelecer um piso pra uma jornada de trabalho conforme contrato, a gente não esperava que eles viriam com essa de jornada de 44 horas semanais. Isso frustra os trabalhadores", afirma Jorge Henrique.
Julgamento
Até o momento, o julgamento do piso da enfermagem no Supremo tem placar de dois votos a um. Os dois primeiros são os dos ministros Barroso e Gilmar Mendes e o voto contrário é do ministro Edson Fachin, que defendeu a imposição do piso nacional conforme determina a Lei nº 14.434/2022. Faltam ainda as manifestações de Dias Toffoli e dos outros sete membros da Corte.
Com a suspensão do julgamento, os autos devem ser devolvidos ao sistema dentro de um período de até 90 dias úteis para que, então, o caso volte a ser analisado pelo plenário virtual. É facultada aos ministros a mudança de posição até que o julgamento se encerre.
Edição: Nicolau Soares