O percentual de famílias brasileiras com dívidas segue um patamar estabilizado, porém alto de 78,3%. O levantamento da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) de maio deste ano aponta que a cada cinco famílias, uma indica que não conseguirá pagar uma dívida já atrasada.
“Os juros elevados dificultam o pagamento da dívida atrasada, pois acirram as despesas financeiras. Com isso, o volume de consumidores com atrasos por mais de 90 dias segue em tendência de alta. Do total de inadimplentes, 45,7% estão com atrasos por mais de três meses, maior percentual em três anos”, destaca o relatório da Peic.
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Por trás desses números há histórias como a da Mariana Queiroz. A moradora de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ficou desempregada durante a pandemia e em 2020 precisou utilizar o cartão de crédito para a compra de bens de primeira necessidade. Em quase três anos, a dívida da jovem de 24 anos aumentou em mais de 15 vezes se comparada ao valor original.
“Eu fiquei endividada na pandemia, fiquei desempregada, eu trabalhava como operadora de caixa num supermercado. A minha dívida é do cartão de crédito que usei na época para comprar fralda e alimentação, eu estava me divorciando, que foi um processo difícil, eu tinha perdido a minha renda e não podia contar com ele, a dívida era de R$ 1.139 e hoje está R$ 17.342”, contou à reportagem.
Mariana atualmente trabalha como assistente administrativa e recebe cerca de um salário mínimo por mês, ou seja, R$ 1.320. Segundo ela, a tentativa de negociação com a operadora do cartão de crédito não foi bem sucedida.
”Já tentei negociar quando eu consegui o meu novo emprego, mas era sempre para pagar à vista e o valor superior ao meu salário, quando era para parcelar, os juros ficavam altos e eu teria que comprometer parte da renda para pagar, o que não fica viável levando em consideração as despesas do mês”, desabafa.
O caso de Mariana é o tipo de endividamento mais comum entre os brasileiros. De acordo com a Peic, entre as modalidades de dívida, 87,2% dos consumidores chegaram em maio de 2023 endividados no cartão de crédito, esse foi o maior volume em um ano.
Empréstimo consignado
Assim com a assistente administrativa, a professora da rede municipal do Rio de Janeiro Priscila Mendes, de 41 anos, também não consegue quitar a dívida dos empréstimos consignados que contraiu há 15 anos. A modalidade é popular entre aposentados, pensionistas e funcionários públicos, pois tem as parcelas descontadas diretamente da folha de pagamento ou do benefício.
“Eu comecei a fazer esses empréstimos pouco tempo depois que eu entrei para o município. A renda não era compatível com o meu custo de vida. Tenho vários empréstimos. Peguei cerca de R$ 40 mil e estou pagando R$ 100 mil”, explica a professora que conta ter 40% do salário comprometido pelas dívidas.
A remuneração de Priscila é a principal da família. Além das despesas da sua casa, onde moram o marido e a filha mais nova, a professora auxilia a primogênita e o neto. O salário mensal da professora, sem os descontos, totaliza R$ 8 mil.
“Nunca tentei negociar [a dívida], poderia pagar as parcelas de trás pra frente sem juros, mas nunca consigo”, afirma.
O efeito “Selic”
A chamada Selic, cuja sigla significa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, é a taxa básica de juros da economia brasileira. É o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação. Ela influencia todas as taxas de juros do país. Hoje, a taxa está em 13,75%, um valor considerado alto por analistas.
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Quanto mais alto o valor da Selic, maior são os juros cobrados em financiamentos, empréstimos e cartões de crédito e menor é o estimulo ao consumo, pois os preços estão mais elevados para a população, com essa lógica, a inflação é puxada para baixo.
Marieta dos Santos sente no dia a dia o impacto na restrição do consumo causado pela Selic. A senhora de 78 anos tem como única fonte de renda o Benefício de Prestação Continuada (BPC) que recebe do governo. O valor de um salário mínimo acaba exigindo que a moradora da ocupação Habib´s, localizada na zona portuária do Rio de Janeiro, faça uma ginástica no orçamento financeiro.
“É um pouco difícil, mas vendo que não tem jeito a gente tem que aguentar. Sempre vem os netos aqui passar uns dias, mas eles vivem na casa dos pais. Ficam metade da semana aqui e o resto com os pais. Eu vou ao mercado e compro as coisas ‘pouquinhas’ . Eu vou limitando a vida para evitar de ficar devendo para os outros”, conta.
Ela relata à reportagem que prefere comprar à vista. “O dinheiro é pouco e eu não uso cartão de crédito. Eu mesma não gosto de crediário. É tudo à vista. Junta um pouquinho aqui e acolá até conseguir comprar alguma coisa”, detalha.
De acordo com a Peic o risco de inadimplência vem aumentando mais na classe média, já que as famílias de baixa renda estão assistidas pelo Bolsa Família com valores maiores e mais beneficiários e também são o principal foco de renegociações atualmente.
*A Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) é apurada mensalmente pela CNC desde janeiro de 2010. Os dados são coletados em todas as capitais dos estados e no Distrito Federal, com aproximadamente 18 mil consumidores.
Edição: Mariana Pitasse