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Dark Kitchens e iFood: entenda os riscos do avanço de mais uma precarização

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Estudo aponta que 35% das cozinhas atendidas pelo aplicativo iFood, na cidade de São Paulo, são 'dark kitchens' - Guillermo Arias / AFP
Novo modelo de negócio pretende diminuir custos fixos, padronizar produtos e agilizar entregas

Felipe Petri*

Um estudo publicado pela Unicamp recentemente nos diz que 35% das cozinhas atendidas pelo aplicativo iFood, na cidade de São Paulo, são voltadas exclusivamente para o delivery, as chamadas Dark Kitchens. Isso quer dizer que os pedidos saem de lugares sem atendimento presencial e fazem parte, muitas vezes, de conglomerados de cozinhas industriais. Tudo isso para diminuir custos fixos, padronizar produtos e agilizar entregas. Em tese, seria só o movimento natural da gestão destes ativos e estaria tudo bem, mas não está. 

O modelo, que se consolidou após a pandemia, não deve se confundir com a entrega regular feita por restaurantes com loja física e atendimento ao público. Estas cozinhas, também conhecidas como ghost kitchens, trabalham especificamente para entregas via aplicativo, e com o monopólio prático do iFood no Brasil, é seguro dizer que, basicamente, surgiram para atender a demanda e o crescimento progressivo do aplicativo no mercado nacional. 

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Como dito anteriormente, estaríamos tratando de um movimento natural, se não fossem as distorções causadas pela precarização de funções e do próprio mercado, trazidas por estes intermediadores canibalescos, como o iFood. Estas cozinhas, conseguem, através de brechas ou anomias legislativas, atuarem com outros CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) que não seriam entendidos como restaurantes regulares, ainda que ofertados como tal pelos aplicativos de entrega. Ou seja, às brechas da legislação, o cliente está comprando de uma marca que conhece ou de um aplicativo em que confia e está recebendo um produto produzido sob uma égide diversa de fiscalização sanitária, concessão de alvará, e etc. 

Não é só a parte legal e de responsabilidades sanitárias que podem estar em risco, restaurantes seguem rígidas leis urbanas para sua instalação geográfica, ao passo que, as operação “dark” distribuem-se por densidade demográfica, terminando muitas vezes cravadas em meio a áreas residenciais, que da noite pro dia se vêem lidando com o barulho de exaustores industriais, fuligem e gorduras sendo dispersas das chaminés destas cozinhas, sem consideração feita acerca do seu impacto urbano e ambiental. Isto sem contar que, com a diminuição dos custos fixos, estes restaurantes estariam implicando uma condição competitiva muito desigual a seus concorrentes regulares, pois, por estarem corretamente classificados como restaurantes, têm que arcar com uma celeuma completamente diferente de custos. 

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Portanto, a conhecida precarização das relações de trabalho, que atingiam majoritariamente aos entregadores, alastra-se tentacularmente até os modelos de negócios. Como se já não bastasse às críticas a que está submetido o iFood, relacionadas aos descontos oferecidos que achatam a margem dos restaurantes, agora, para competir, as cozinhas devem se adaptar às brechas da lei e da convivência urbana para atender a plataforma. Deve-se manter sempre em conta que, o sucesso do iFood se dá também pelas captações milionárias feitas durante os últimos dez anos, empurrando, à base de muito dinheiro, outros grandes das entregas, como o Uber eats, para fora do Brasil e consolidando-se como monopólio prático, com mais de 80% do mercado em suas mãos. 

Há outro fator, e este triste, com relação ao sucesso do iFood no Brasil. A vitória narrativa do “empresário de si mesmo” que arrasta muitos para dentro da plataforma como prestador, somente é admissível num ambiente de devastação de direitos e desemprego latente. Só é possível convencer alguém de perder seus direitos e ganhar uma remuneração miserável, quando a opção é remuneração nenhuma. É a partir da mesma lógica que o setor gastronômico se vê pressionado pelo monopólio: há de se fazer o que é demandado pelo aplicativo, ou não haverá mais remuneração satisfatória, quiçá nenhuma. 

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O que se falha perceber é a concentração de renda que este mecanismo perverso acaba acentuando. Na medida em que se torne necessário investir numa dark kitchen para ter preços competitivos, os pequenos e médios (maioria absoluta no setor gastronômico) vão paulatinamente fechar as suas portas, e o faturamento do mercado vai fluir tão somente para aqueles que tiveram dinheiro para investir, em primeiro lugar. Em última instância, o monopólio vai sugando riquezas para seu bolso e canibalizando a própria economia,  já que mais e mais pessoas se verão sem negócio, emprego e perspectiva. 

A solução para este imbróglio está longe de depender somente da regulamentação das dark kitchens, elas são só o desenrolar inevitável de um país esvaziado de oferta de trabalho decente, direitos fortes e poder de compra protegido. Não há uma só democracia no mundo que tenha feito uma economia pungente a partir do esvaziamento de salários da sua população. O Brasil, como tantos outros países em eterno desenvolvimento, falha miseravelmente quando compra discursos de um “mercado” interessado em acumular riquezas para si próprio. 

O governo Lula foi eleito com a promessa de investir na reindustrialização do país, mas por enquanto sua atuação foi bem tímida neste sentido. O vice-presidente e ministro Geraldo Alckmin anunciou na semana passada um programa de subsídio à indústria automobilística para fomentar a venda de carros populares. Esta datada estratégia está muito longe de conjunturalmente aumentar a barganha do trabalhador brasileiro frente às precarizações eletrônicas. Qual seria a solução quando a frota estiver atualizada? Um novo subsídio para comprar SUVs? 

Há de se entender que o mecanismo em vigor é canibalesco. Ainda que vendido como independência e desenvolvimento, centraliza o fluxo de capital na mão de poucos, que não gastam pulverizadamente, como faz a massa de trabalhadores brasileiros. Em outros tempos, com o dinheiro circulando, o número de empregos aumentava na mesma proporção em que os bolsos se enchiam. É uma conta bastante simples, mas infelizmente, bem sucedidamente escondida por narrativas que buscam o monopólio sobre as fontes de renda do trabalhador. 

O Governo do Brasil e também sua população, devem acordar para o fato de que a precarização dos serviços é como um sumidouro que vai arrastando tudo para um único buraco. Os fatos apontam para serviços em “uberização” constante de pessoas e agora empreendimentos. Se políticas fortes de fomento ao poder de compra e geração de emprego não forem implementadas com urgência, o cenário não será nada animador para o trabalhador nacional.

* Felipe Petri é engenheiro de produção, empresário, chef de cozinha e ativista.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo