Gigante da indústria de base durante a ditadura, a Cobrasma (Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários S.A.), carro-chefe do conglomerado gerido pela família Vidigal, teve papel robusto na parceria entre empresários e militares antes e depois do golpe de 1964.
Relatórios aos quais a Agência Pública teve acesso revelam que dirigentes da empresa tiveram participação ativa na conspiração que resultou no golpe e nos episódios que levaram ao endurecimento do regime militar. Mais tarde, já nos anos de chumbo, um de seus conselheiros colaborou com o “caixinha” que bancou a Operação Bandeirantes (Oban), a ação mais forte dos órgãos militares e policiais na repressão que dizimou as organizações da esquerda armada.
Os documentos fazem parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, um trabalho de pesquisa que envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pela Universidade Federal de São Paulo, através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf/Unifesp), em parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.
A pesquisa resgata o papel da Cobrasma na greve dos metalúrgicos de Osasco, em julho de 1968, um movimento contra o arrocho salarial e a favor da democracia. Alinhada aos órgãos de repressão, a empresa deu um caráter de subversão ao movimento, abrindo caminho para que se usasse a Lei de Segurança Nacional na cassação de sindicalistas, prisões arbitrárias, tortura e banimento de líderes da greve. O episódio é considerado um dos ensaios para, cinco meses depois, a adoção das medidas de exceção que viriam com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), emitido em 13 de dezembro de 1968, que deu início ao período mais violento da ditadura.
De acordo com os relatórios da pesquisa, um dos principais acionistas da Cobrasma, Gastão Eduardo de Bueno Vidigal, fundador do Banco Mercantil de São Paulo, membro do Conselho Consultivo da empresa e irmão do então controlador da organização, Luís Eulálio Bueno Vidigal, encabeçou um grupo de banqueiros que financiou a Oban cuja sede, no Paraíso, Zona Sul da capital paulista, se transformou no maior centro de tortura e execução do período.
O levantamento sustenta que o apoio material e financeiro dado ao golpe facilitou os negócios do grupo Cobrasma com o governo federal ao longo da ditadura de 21 anos. Conforme a pesquisa, a empresa, que fornecia 100% de sua produção ao governo, teve acesso a financiamentos públicos altos com juros negativos e a garantia de espaço para crescimento. Em seu auge, a Cobrasma faturou mais de US$ 200 milhões por ano e empregou quase sete mil metalúrgicos.
Repressão na greve dos metalúrgicos
Durante a greve ocorrida entre os dias 16 e 18 de julho de 1968 – quando os órgãos de segurança fecharam a cidade de Osasco, invadiram a empresa, sindicatos e até a Igreja Matriz da cidade para sufocar o movimento —, a Cobrasma criou uma narrativa artificial, classificando a greve como um movimento subversivo que poderia abalar a ditadura.
Segundo os relatórios, houve pesada repressão contra os líderes sindicais, entre eles estava o então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Osasco, José Ibrahim, já falecido. Demitido e vivendo na clandestinidade, Ibrahim seria “empurrado” pelo regime para a luta armada. Preso e torturado, foi banido do país junto com militantes de organizações de esquerda trocados pela libertação do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, sequestrado e libertado em setembro de 1969.
Outro alvo da repressão, o padre francês Pierre Joseph Wauthier, operário metalúrgico da Braseixos, empresa do mesmo grupo, foi expulso do país em agosto de 1968, um mês depois do movimento grevista do qual foi acusado de ter sido um dos líderes. Uma sentença do Conselho Permanente da Justiça Militar, de 22 de dezembro de 1971, informa que outros dois sindicalistas, Roque Aparecido da Silva e Manoel Dias do Nascimento, também foram banidos.
O pesquisador Murilo Leal Pereira Neto, um dos coordenadores da pesquisa que revela relações entre empresas e a ditadura, lembra que uma greve de metalúrgicos com as mesmas reivindicações havia ocorrido em Contagem, Minas Gerais, três meses antes do movimento de Osasco. A mobilização em Minas foi encerrada pacificamente após negociação entre trabalhadores e empresários.
Pereira Neto diz que dirigentes da Cobrasma e da Braseixos se aliaram aos agentes da ditadura com a finalidade de criminalizar o movimento, difundindo uma versão falsa de que os metalúrgicos não teriam apresentado reivindicação salarial, a origem da greve era desconhecida pela maioria de seus participantes e estava “dominada por agentes subversivos com intencionalidades políticas de desestabilização social e governamental”.
Em 1968, Osasco foi o endereço do primeiro núcleo do sindicalismo aguerrido na Grande São Paulo, que se transformou em símbolo de luta e resistência. Nessa época, a Cobrasma aprofundou seu alinhamento repressivo contra organizações de esquerda e o nascente sindicalismo de trabalhadores da metalurgia, que acabou sendo sufocado pelo regime militar. Um dos políticos ligados ao regime, o governador paulista Abreu Sodré, declarou à época que a direção da Cobrasma pediu medidas duras contra os grevistas.
“Evidentemente eles foram ao governo pedindo medidas violentas, e o nosso governo tomou as que devia tomar. E acabou! O direito de pedirem providências é total, mas a forma de atuar quem dita é o governo”, disse Sodré numa das entrevistas dadas na ocasião e resgatada pela pesquisa da Caaf/Unifesp.
O relatório destaca que a narrativa de que a greve dos metalúrgicos em Osasco havia sido dominada por agentes subversivos para causar “desestabilização social e governamental” serviu como justificativa para o uso de força.
“Dois dias após o início da greve, em 18 de junho de 1968, a Cobrasma e Braseixos comunicaram formalmente ao Dops [Departamento de Ordem Política e Social] uma lista que nominava 16 operários envolvidos na greve. A empresa acusou ocupantes grevistas da fábrica de fazerem reféns entre os trabalhadores administrativos e o movimento acabou sendo descrito como uma greve ilegal de ocupação violenta da fábrica com detenção criminosa de reféns, versão contestada à época por autoridades como o cardeal D. Paulo Evaristo Arns e o ministro do Superior Tribunal Militar (STM), general Pery Bevilacqua e pelo movimento sindical em geral”, diz o relatório. A pesquisa sustenta que a criminalização do movimento foi um ato consciente da diretoria da Cobrasma para descolar a luta por direitos do trabalho e de salário.
Em outro trecho, os pesquisadores assinalam que as ações da empresa deixaram claro um arranjo no qual “os limites entre o sistema policial-militar e as funções empresariais produtivas e administrativas foram violados, configurando-se um dispositivo de controle social e repressão política eficaz”. Os pesquisadores resgataram uma declaração de 1968 do ex-presidente Ernesto Geisel, que, à época da greve, era ministro do Superior Tribunal Militar (STM), afirmando durante reunião do Alto Comando do Exército que “Osasco é o Vietnã brasileiro”.
Embora na época tenha sido falado de 600 prisões de grevistas, a pesquisa documentou 92 casos, dos quais 31 foram indiciados e, destes, 22 acabaram denunciados e julgados na Lei de Segurança Nacional, num processo que só se encerrou quatro anos depois no STM. A prisão e expulsão do padre operário Pierre Wauthier, que era também coordenador da “Missão Operária São Pedro e São Paulo”, e o tratamento dado aos grevistas provocaram pesadas críticas da igreja católica.
Os relatos ouvidos pelos pesquisadores apontam que, já nessa época, opositores presos, como o padre e outro dirigente sindical, José do Campos Barreto, foram barbaramente torturados, além de sofrerem pressão psicológica, numa clara violação aos direitos humanos. Outros, como o operário, poeta e ator Inácio Rangel; o então inspetor de qualidade da Cobrasma, João Joaquim da Silva; e Pedro Tintino da Silva foram sumariamente demitidos, amargando anos de dificuldades em decorrência do carimbo de indesejáveis subversivos em suas fichas.
A pesquisa afirma que a empresa não só passou nomes das lideranças à polícia, como também facilitou a invasão da fábrica e incentivou as prisões em massa executadas com arbitrárias invasões no Sindicato dos Metalúrgicos, na Igreja Matriz de Osasco ou nas ruas.
A pesquisa cita seis tipos de condutas violadoras de direitos humanos e trabalhistas por parte da Cobrasma: “colaboração material e financeira com a ditadura”, “controle social e perseguição política aos trabalhadores”, “colaboração da segurança interna com os órgãos da repressão”, “criminalização da greve, demissões injustas e violação de direitos trabalhistas”.
Listas sujas
Os relatórios da Unifesp apontam que a Cobrasma mantinha estreitas relações com os órgãos de informação do regime militar, enviando para o crivo do Dops as chamadas “listas sujas”, através das quais delatava funcionários suspeitos de atividades subversivas, ao mesmo tempo em que submetia nomes de candidatos a emprego ao crivo do órgão policial que, à época, era mero apêndice da polícia política da ditadura.
A empresa também franqueava seus arquivos e dependências à polícia. Em função desse alinhamento, 40 operários foram demitidos e pelo menos 25 metalúrgicos, que eram dirigentes sindicais, tiveram os mandatos cassados — 16 deles estavam listados em comunicado da empresa enviado ao Dops.
Em 1969, por intermédio de seu braço financeiro, o Banco Mercantil de São Paulo, a família Vidigal encabeçaria a lista de empresários que colaboraram com o “caixinha que financiou a Operação Bandeirantes (Oban), a ação articulada de repressão que transformou o quadrilátero onde funciona atualmente o 36º Distrito Policial de São Paulo, entre as ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro Paraiso, num dos maiores centros de tortura e execução de militantes de esquerda presos.
O relatório frisa que Gastão Eduardo de Bueno Vidigal, fundador do Banco Mercantil de São Paulo, e o ex-ministro da Fazenda, Delfim Neto, organizaram reuniões para captação de doações ‘voluntárias’ de empresários, citando como referência bibliográfica os livros "No Centro da Engrenagem. Os interrogatórios na Operação Bandeirantes e no Doi em São Paulo. 1969-1975", da pesquisadora Mariana Joffily, e "Ditadura Escancarada", do jornalista Elio Gaspari.
Criada em junho de 1969, a Oban, que foi dirigida pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e teria sido responsável por cerca de 50 mortes e desaparecimentos, contou com expressiva colaboração financeira da elite industrial paulista reunida em torno da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que deu suporte à ditadura e que, assim como a Cobrasma, obteve vantagens econômicas como contrapartida.
Gaspari relata em seu livro que Gastão Vidigal ajudou a organizar um encontro de 15 banqueiros. Cada um deles aceitou contribuir com US$ 110 mil, o que, somado, representaria U$ 1,650 milhão (algo em torno de R$ 8,5 milhões em valores atuais).
Família Vidigal
Os relatórios apontam também a participação de membros da Família Vidigal em organizações de direita responsáveis por ações de apoio material e financeiro a ditadura: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) da Fiesp, e a American Chamber of Commerce.
Luís Eulálio Bueno Vidigal Filho, que estava na Cobrasma na greve de 1968, assumiria, a partir de 1973, a vice-presidência do GPMI, encarregado de criar formas de colaboração material de empresas ao governo militar na produção específica de insumos para a defesa interna. Uma década depois, se tornaria presidente da Fiesp.
Sob o comando de Luís Eulálio, a Fiesp continuou apoiando a ditadura. “Está chegando a hora da geração de empresários surgidos depois de 64. Nós, jovens empresários, somos todos frutos da Revolução de 64”, disse Luís Eulálio, segundo o relatório, durante a campanha para assumir a entidade. Ele chegou a submeter à apreciação do então presidente da República, general João Batista Figueiredo, o programa da chapa que encabeçava em 1979. “Inimigo se liquida, com o adversário se compete. E os comunistas são todos inimigos”, disse Luís Eulálio.
Os relatórios da Unifesp assinalam que a direção da Cobrasma colaborou também na fabricação de carros blindados de combate para serem usados em manifestações de rua, caso houvesse reação armada contra o golpe que derrubou João Goulart. Como não houve resistência, os veículos, produzidos fora das especificações legais, acabaram sendo destinados à antiga Força Pública, hoje Polícia Militar paulista.
Confraria golpista
O vínculo mais tenebroso da Fiesp com a repressão seria exercido, no entanto, pelo empresário de origem dinamarquesa Henning Albert Boilesen, fundador e presidente do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE), presidente da Ultragaz e também um dos coletores das contribuições financeiras à Oban. Ele frequentava os porões da ditadura e chegou a presentear os órgãos de repressão com um aparelho de tortura importado. Em retaliação, Boilesen foi executado a tiros por um comando guerrilheiro no dia 15 de abril de 1971, em São Paulo.
A intimidade entre o Grupo Vidigal com personagens ligados à repressão, segundo documentos encontrados pelos pesquisadores, aparece também no setor de recursos humanos da Cobrasma. O médico-legista Harry Shibata, acusado de falsificar laudos periciais usados para dar fachada de legalidade a mortes sob tortura, foi funcionário da Cobrasma no mesmo período em que dirigiu o Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, cujo vínculo “empregatício” só se desfez quando ele foi exonerado da função pública. Shibata integrou a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) da Cobrasma, onde permaneceu de 1974 a 1983, acumulando, a partir de 1976, a função de diretor do IML de São Paulo.
A trajetória do legista tem dois fatos intrigantes. O primeiro: é ele quem assina o laudo falso “atestando” que o jornalista Vladimir Herzog, assassinado durante sessão de tortura, se “suicidou” na carceragem da Oban, em 1975, o que significa que já trabalhava para o IML antes de assumir a direção. “Já funcionário da empresa [Cobrasma], (Shibata) se liga ao IML, onde realiza atividades junto aos setores da repressão, e tem sua saída efetivada da empresa junto com a data de exoneração do IML”, diz um dos trechos do relatório.
A pesquisa traz à tona também as histórias de um general da reserva que constava na folha de pagamento da Braseixos, Henrique Osvaldo da Silva Loureiro, e do pesquisador, superintendente e conselheiro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), o engenheiro Alberto Pereira de Castro, ligado à mais famosa eminência parda do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva, o criador do Ipes e ministro da Casa Civil nos governos Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Num informe do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) encontrado pelos pesquisadores, Castro aparece como um informante do Serviço Nacional de Informações (SNI), também criado por Golbery, com funções estratégicas tanto de superintendente da Cobrasma como do Ipes. A pesquisa afirma que o cientista fazia parte do chamado “núcleo duro do golpismo”, no qual a Cobrasma e a família Vidigal, ativa no Ipes, atuariam “irmanados como ponta de lança das articulações para o golpe de 1964”.
A confraria golpista reunia em torno do Ipes outros dois personagens decisivos para os plano empresarial-militar: Luiz Antonio Gama e Silva, ministro da Justiça do governo Costa e Silva; e Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do governo Emílio Garrastazu Médici, ambos com laços estreitos com Luís Eulálio de Bueno Vidigal quando este ainda era superintendente e presidente da Cobrasma.
Entre outros serviços prestados à ditadura, Gama e Silva foi autor da Lei de Segurança Nacional e dos dois mais importantes atos institucionais da ditadura, o AI-1, que abriu a temporada de caça a opositores, e o mais terrível deles, o AI-5.
Relações lucrativas
A via de mão dupla aberta na ditadura, segundo o relatório da pesquisa, rendeu dividendos fabulosos para a Cobrasma. Ao mesmo tempo em que se transformou em desaguadouro natural das pressões do governo para que respondesse ao chamado de aumento da produção, a empresa tinha acesso a fartos recursos governamentais via Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (hoje BNDES).
Segundo os relatórios, a Cobrasma recebeu incentivos fiscais do Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI) para investir na época 60 milhões de cruzeiros na ampliação de sua capacidade produtiva, nas áreas de equipamentos para o setor petroquímico e de vagões siderúrgicos.
O Grupo Vidigal recebeu aporte de recursos de instituições financeiras públicas, dos quais 40% eram originários do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. A Cobrasma ficou com 80% dos recursos. Só na implementação do Complexo Sumaré-Hortolândia, a empresa teria investido cerca de US$ 2 bilhões à época, sendo que 40% desse volume teriam saído do BNDES.
“Quantia tão alta a juros tão baixos significou compromisso perene com o regime civil-militar. Tais ‘amarrações’ geravam compromissos outros, mesmo que alguns nos subterrâneos do regime”, destaca o relatório. A decadência da Cobrasma, não por acaso, tem início com o avanço do processo de redemocratização, que derrota o regime militar em 1985.
“Concretamente o encerramento do período formalmente ditatorial foi péssimo para a empresa, pois perdeu acesso privilegiado ao fundo público e às políticas governamentais direcionadas”, diz o pesquisador Murilo Leal Pereira Neto. Embora sua razão social continue ativa, a Cobrasma encerrou atividades em 1998, com uma dívida de R$ 600 milhões.
Procurado, o empresário Luís Eulálio Bueno Vidigal Filho não retornou o pedido de entrevista. Numa das últimas ocasiões em que apareceu em público, em 2014, ele prestou depoimento à Comissão da Verdade de Osasco, no qual negou que tenha colaborado com a polícia durante a greve ou na repressão à esquerda armada.