Nessa aliança entre liberais e conservadores a democracia é válida só no ato de votar
“Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de Cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas”.
Estas frases são do Sr. Apolinar Mascote, um conservador, que dá lições esquemáticas a Aureliano Buendía, o qual despertava a curiosidade pelas ideias liberais. O trecho dos personagens de Gabriel Gacia Marquez no livro 'Cem anos de solidão é a síntese histórica destes blocos políticos na América Latina. Mesmo com a diferença entre conservadores e liberais, o contexto latino-americano aproximou estes dois grupos, os quais pactuaram o poder que possuem elaborando as Constituições vindouras a partir de meados do século XIX e articulando as relações políticas na gestão do Estado.
Retornemos ao Brasil do século XXI e do ano de 2023. Ano em que foi eleito um Congresso Nacional que deixaria o Sr. Apolinar Mascote no chinelo, cujo o partido de maior bancada usa o nome de “Liberal”, para inflar as suas pautas conservadoras.
Nesta mesma semana eles se organizam para:
1) aprovar um projeto de lei (490/07) que visa restringir a demarcação de terras indígenas àquelas que comprovarem ocupação datada de 5 de outubro de 1988, ou seja, ignorando a pistolagem, a retirada de indígenas dos seus territórios e reforçando a história de violência contra os povos no Brasil desde 1500;
2) parte da bancada demonstrou repúdio do Estado brasileiro em receber o presidente do Estado Venezuelano no restabelecimento de relações diplomáticas e de atividades político-econômicas;
3) o início dos trabalhos da quinta CPI, dos últimos anos, contra o MST, sem motivação específica para fundamentar a criação dela e cujo relator já possui posições afrontosas ao movimento e à legislação ambiental do país.
Estes temas permitiram o realinhamento de pautas de grupos, que se constroem com uma narrativa liberal, mas não conseguiram emplacar candidaturas presidenciais em 2022, a partir da desmoralização da Lava Jato, e tiveram que aceitar Lula.
A frente deles estão os grandes meios de comunicação, os quais noticiaram diversas ocupações de terra como sendo ato de vandalismo, ignorando as razões políticas; propagandearam o “agro como pop”, os tendo como grandes financiadores, mas ignorando os mesmos como os maiores interessados em retirar os indígenas das terras; noticiaram como ditadura e a violência contra os direitos humanos em países da América Latina, mas só continuam vendo violações nesses países, nunca nos Estados Unidos, nem na Europa, claro.
Até porque nessa aliança entre liberais e conservadores a democracia é válida só no ato de votar, configurada no mero ato de cidadania passiva. Participação popular ativa, já seria demais para essa turma. Em nenhum momento os veremos questionando a propriedade privada diante dos maiores latifúndios, inconstitucionais, do mundo ou da, também, maior concentração midiática do mundo. Para eles, a terra dos latifúndios e os meios de comunicação não precisam ser democratizados.
Essa aliança histórica (liberal + conservadora), retomada nas referidas pautas da conjuntura atual brasileira, foi responsável pela eleição de Bolsonaro em 2018. De forma inconsequente, mas consciente, é retomada por estes grupos.
Não resta dúvida que deve ser enfrentada com articulação política e mobilização pelos setores populares. Depois dos últimos anos, a integração latinoamericana, as pautas agrárias e indígenas não podem ficar reféns de projetos derrotados em 2022.
Se teve alguém que subiu o tom e não está baixando a cabeça para esta articulação, no que tange as pautas citadas, porque está ciente que, apesar de negociar, não pertence e nem foi eleito por estes grupos, é o presidente Lula. Resta saber quantos estarão com ele para enfrentar uma articulação no poder que ainda faz o povo de reféns.
*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo