Nenhum governo que pretende empreender "mudanças mais aprofundadas" e "quebrar privilégios históricos" o fará olhando somente para sua composição nos espaços institucionais, isto é, cadeiras no parlamento ou cargos de seu gabinete.
É assim que Pietro Alarcón, membro da coalizão Pacto Histórico, ex-assessor Para a Paz e do Intercâmbio Humanitário da Comissão de Notáveis da República de Colômbia, explica o motivo pelo qual o mandatário pediu, em abril deste ano, a demissão de seus ministros e anunciou um "governo de emergência".
O movimento brusco ocorreu após Petro perder parte de sua base de apoio que, por sua vez, não aderiu às tentativas de aprovação das reformas que compõem o programa que levou o primeiro líder de esquerda da Colômbia ao poder, em 19 de junho de 2022. A radicalização contrasta com governos progressistas de outros países da chamada segunda "onda rosa" na América Latina, que tentam compor com setores de centro.
O atual presidente da Colômbia também carregou consigo outro ineditismo: elegeu-se tendo Francia Márquez como vice, a primeira mulher negra a chegar ao cargo no país. Francia iniciou sua trajetória política defendendo sua comunidade de projetos de extração mineral e tem denunciado sofrer ameaças de morte desde então.
A Colômbia é considerada o país mais perigoso para ativistas do mundo, segundo ONGs como a Global Witness. Somente em 2022, o país registrou 136 homicídios de lideranças de movimentos sociais e defensores de direitos humanos.
Durante sua campanha eleitoral, o atual mandatário disse que realizaria mudanças estruturais em áreas como as da saúde e do trabalho, além de encontrar a paz e a igualdade pela "trilha da vida e do amor."
A frase conciliadora sai da boca do representante que atuou durante 12 anos na guerrilha Movimento 19 de Abril (M-19). Depois de ter empunhado armas - embora alegue nunca ter atirado em alguém - ocupou cargos como vereador, prefeito e senador.
Durante os seus 40 anos de vida pública, o líder manteve certo nível de radicalidade em seus pronunciamentos. No último 1º de Maio, Dia do Trabalhador, ele foi à sacada da sede do governo e disse à população: "Não nos deixe sozinhos nestes palácios enormes e frios. Não nos deixem sozinhos perante esses privilegiados. Este é o momento de mudanças e não devemos retroceder."
Alarcón sustenta que o que se faz agora, na Colômbia, é a tentativa de se gerar "um conjunto de iniciativas cidadãs, de base, oriundas dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos movimentos sociais, com o objetivo de que eles acompanhem e defendam o processo."
Entre os anos de 2018 e 2019, a Colômbia viveu uma intensa onda de protestos, que culminou com diversos conflitos entre manifestantes e forças policiais. Para o professor universitário, a vitória de Gustavo Petro é resultado dessas mobilizações e de uma série de "condições de natureza política."
Em sua avaliação, a Colômbia tem um regime político que foi construído com base na "restrição a qualquer tipo de participação de setores alternativos, de setores democráticos" e que isso tem sido feito "desde a primeira independência em relação à Espanha."
Mais de dois séculos depois, o país que mantém sete base militares dos EUA e é sócio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) - ponto de tensão na guerra entre Rússia e Ucrânia -, formou a coalizão mais à esquerda de sua história, com uma agenda de enfrentamento a interesses de setores privados e da política tradicional.
Para falar sobre as possibilidades reais de manter esse inédito empreendimento político na trajetória da República colombiana de pé leia abaixo, na íntegra, a entrevista de Petro Alarcón.
Brasil de Fato: Por que a Colômbia demorou tanto tempo para eleger um líder de esquerda?
Petro Alarcón: Isso obedece a um conjunto de condições de natureza política. Tem a ver especialmente com um regime político que foi construído ao longo da história da Colômbia cuja caracterização mais relevante, mais importante, é sua restrição a qualquer tipo de participação politica de setores alternativos, democráticos, de esquerda, que pudessem disputar o controle hegemônico da classe dominante.
Isso vem sendo impulsionado praticamente desde a primeira independência com relação à Espanha, em 1819.
Ou seja, a arquitetura do regime politico colombiano, a maneira como se estabeleceu esse regime político, a forma que assumiu esse regime político, foi o de uma hegemonia do partido liberal e do partido conservador, que representam dois grandes núcleos da classe dominante colombiana.
Tudo isso em detrimento da possibilidade de participação política, de deliberação e de consolidação de um processo democrático real, com a possiblidade de que setores de esquerda, democráticos, progressista, pudessem chegar [ao poder]. Felizmente, alguns elementos contribuíram muito para que se quebrasse a hegemonia.
Em primeiro lugar, um fracasso retumbante das políticas neoliberais que foram impulsionadas de maneira selvagem na Colômbia, provocando uma autêntica rebelião popular entre os anos de 2018 e 2019. Por outro lado, uma unidade dos setores políticos democráticos progressistas e naquilo que se denomina no Pacto Histórico e que conseguiu gerar uma condição política que repercutiu em um avanço eleitoral.
Junto a esse dois elementos, sem dúvida nenhuma, o acordo de paz de 2016 potencializou a ação unitária de muitos setores populares e criou uma nova condição, um novo ambiente, que gerou uma participação muito mais efetiva e um aumento da intensidade da reação popular perante esse neoliberalismo.
Petro assume com uma proposta de reformas e, recentemente, ele perdeu parte de sua base de apoio. Por que isso aconteceu?
A proposta do Pacto Histórico que encabeça Gustavo Petro e Francia Márquez é uma proposta que hoje é praticamente uma lei da República, porque ela está moldada em um plano nacional de desenvolvimento chamado Colômbia Potência Mundial para a Vida.
O Pacto Histórico é uma aliança, não é uma organização clássica, digamos que é uma coalizão, uma aliança de organizações que primeiramente eram cinco, depois seis, hoje são doze, mas há também uma grande quantidade de movimentos sociais que estão comprometidos com esse plano de mudanças.
Essas mudanças estão transversalizadas por uma necessidade de solução política para o problema de violência da Colômbia, o que significa a conquista daquilo que temos chamado de Paz Total. Aliado a isso, o plano nacional de desenvolvimento tem uma base cujo eixo são as reformas que devem representar uma mudança, ou seja, uma virada dentro daquilo que nós tínhamos em matéria de direitos sociais.
Nós temos em curso reformas importantíssimas, como a reforma da saúde, do trabalho, da aposentadoria, e já houve uma reforma tributária. Todas essas reformas devem passar pelo Congresso e, dentro do Congresso, há uma série de pressões daqueles setores que não desejam, obviamente, perder seus privilégios.
No caso da reforma da saúde, por exemplo, temos uma pressão enorme das chamadas Empresas Promotoras da Saúde, as EPS. Essas empresas terceirizam, ou seja, elas recebem recursos do Estado, vindos de impostos e elas contratam os hospitais e clínicas - cumprem um papel de intermediação.
Uma das propostas que temos é eliminar essa intermediação para que o Estado assuma o controle dos recursos públicos dirigidos à saúde, priorizando aquilo que é fundamental para atender os setores mais vulneráveis da população. Só que quem propõe, por exemplo, a lei que cria as Empresas Promotoras da Saúde é o ex-presidente da República. E obviamente, dentro do grande esquema mercadológico da saúde está não somente os colombianos, mas também empresas transnacionais que lucram historicamente com essa privatização ou semiprivatização do setor da saúde.
Nós temos uma grande quantidade de inimigos da reforma. Isso apenas para te colocar um exemplo. Se vamos ao setor da aposentadoria nós teremos outras dificuldades, se vamos, por exemplo, à reforma do trabalho nós temos uma dificuldade concreta com os empresários porque 58% dos trabalhadores colombianos estão na informalidade.
Vivemos o que se chama de nova onda rosa, um ciclo de líderes de esquerda governando diversos países na região. E tivemos esse movimento de saída de parte da base de apoio do governo da Colômbia, a demissão de ministros e um chamado do presidente para que a população vá às ruas para impulsionar as reformas. Há condições dessas mobilizações ajudarem a aprovar as reformas ou o prognóstico é de uma nova crise política e institucional, como tem acontecido em outros países da região?
Duas coisas importantes: primeiro, nós não precisamos de aliados pela metade. Quem está dentro do Pacto Histórico são os partidos que nós pretendemos aproximar para uma unidade de ação política que trabalhe dentro do legislativo para definir o curso das reformas, esse processo de ampliação do pacto, aquilo que temos denominado de frente ampla.
O pacto histórico é uma coalizão que não pode ser desfeita. Conforme a legislação eleitoral, ela é uma coalizão que deve trabalhar como bloco dentro do Congresso. Nós queremos ampliar os aliados dentro do Pacto Histórico, mas não precisamos de aliados que nos exijam um toma lá dá cá para aprovar reformas.
Não precisamos de aliados pela metade. Precisamos de aliados que tenham compromisso com um programa concreto de reformas. Na medida que esses aliados não votam conforme os compromissos que foram realizados, obviamente isso tem repercussões na maneira como se efetua a composição do gabinete do Presidente da República. Tem repercussões nos ministérios, repercussão nos cargos de responsabilidade intermediária.
Nenhum governo, nenhum processo que pretenda construir um cenário de reformas capazes de alicerçar uma nova possibilidade de ação para mudanças mais aprofundadas, para construir de fato o poder popular, para gerar uma transformação muito mais elevada, que seja capaz de quebrar de vez com privilégios históricos e atender a uma expectativa social, pode avançar apenas através dessas questões institucionais.
Precisamos gerar concomitantemente a isso um conjunto de iniciativas cidadãs, um conjunto de iniciativas de base, inciativas oriundas dos trabalhadores e trabalhadoras, dos movimentos sociais, com o objetivo de que eles acompanhem o processo, defendam o processo.
Por isso precisamos crescer em grau de organização, de pedagogia, de uma perspectiva de horizonte político que nos favoreça essa conquista diretamente nas ruas. Se não combinarmos as lutas de rua, se nós perdermos o espaço da luta na rua e não combinamos isso com o institucional, nenhum processo na Colômbia e em nenhum lugar se mantém.
O que efetiva as mudanças, gera as condições de mudanças é esse apoio popular, esse apoio participativo, esse apoio deliberativo, essa luta no dia a dia, que é capaz de gerar uma nova condição de protagonismo, através dos diferentes setores: trabalhadores, desempregados, os que estão no setor informal, os estudantes, todos aqueles que tem a expectativa de que as reformas sejam algo que vale a pena lutar dentro de um momento decisivo na Colômbia.
A violência é um tema bastante presente quando falamos da Colômbia. Petro tem se colocado como uma figura pró-ativa nas discussões para que se chegue a um acordo de paz com o Exército de Libertação Nacional [ELN]. Petro é um ex-guerrilheiro que agora chega ao poder. Na sua avaliação, existe condições reais de se avançar nessas negociações?
O momento em que se realiza as negociações com o Exército de Libertação Nacional é completamente diferente do momento em que se realizou as negociações com as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]. Por que no momento das negociações com as Farc o governo era vacilante com relação à solução política.
Era um governo pressionado, que, inclusive tinha consultoria do Comando Sul dos Estados Unidos. Era um governo que exigia a entrega de armas e que colocava toda uma série de pontos com aquilo que se chamava congelador, ou seja, uma série de pontos que parecia intocáveis. Nós colombianos não podíamos tocar [influenciar] no processo de paz.
Não podíamos tocar nas bases do neoliberalismo. Era um processo com muitas bandas vermelhas. O que isso significa? Não havia banda verde. Havia um farol, você não podia avançar, porque ali haviam bandas vermelhas que não permitiam que se tocassem nesses pontos. E sobretudo o governo colombiano não entendeu nunca que o acordo de paz de 2016 é um acordo de Estado. Quando eu te digo Estado colombiano é porque muito embora você tenha toda uma institucionalidade, quem detém o poder dentro do Estado tem que assumir que a negociação de paz é uma política de Estado.
Chegou o governo Duque e como não se assumiu como uma política de Estado, a primeira questão que traz o governo Duque é que o acordo de paz é inviável e que é preciso acabar com ele. Houve desde o começo desse governo um boicote ao acordo de paz.
Obviamente que isso [o acordo de paz] exige uma metodologia, existem várias possiblidades e varias fórmulas metodológicas. Mas há uma questão importante: enquanto a premissa metodológica em 2016 era que nada estava acordado enquanto tudo não estivesse acordado, ou seja, o acordo seria o acordo final que compreenderia tudo. A lógica, a metodologia desse processo [do governo de Gustavo Petro] é diferente. Podemos chegar a pontos de acordo que de imediato se implementam, independentemente que se continue negociando outros pontos.
Recentemente Petro foi para os Estados Unidos e se encontrou com Biden [presidente dos EUA]. Entre os temas que ele tratou estava o de se retirar as sanções que compõem o bloqueio econômico contra a Venezuela. Na sua avaliação, qual papel Gustavo Petro pode cumprir na região?
A política externa colombiana nessa última fase tem alguns elementos que podemos colocar como centrais. Primeiro, a paz e a segurança nas fronteiras. Eu acho que isso é fundamental para nós. A abertura das relações com a venezuelana é fundamental.
Não se trata de uma segurança fronteiriça sem respaldo econômico. É preciso que se crie obras de infraestrutura, é preciso que cesse a falta de aproveitamento da quantidade de recursos que há nas fronteiras e que poderiam ser usados para que se gere emprego, recursos. É preciso estabelecer via de acesso de maneira que a gente possa ter um mercado seguro para os produtos que são comercializados nas fronteiras.
Paz e segurança nas fronteiras é fundamental. Só que o tema da paz do ponto de vista geopolítico tem, também, outras implicações. Com relação à Venezuela, por exemplo, é evidente que o governo de Petro constituí uma mudança com relação à atitude hostil, agressiva, dos governos anteriores com o governo da Venezuela.
Por que isso se dá? Por que obviamente os governos anteriores, particularmente o governo de Duque, tinha uma orientação dos Estados Unidos para agredir, para se tornar um país que procurava uma desestabilização nos governos vizinhos e se prestava para um triste papel dentro do conserto de estados latino americanos. Uma das questões que se modificou foi a atitude do governo colombiano nesse sentido, a política externa colombiana tem uma outra conotação.
Nós temos um problema grave, a Colômbia é sócio global da Otan e isso gera uma inquietação muito forte não só na Colômbia, mas também nos nossos vizinhos. Nós temos sete bases militares, talvez mais um pouco, no território colombiano.
São temas delicados que a política externa colombiana deve tratar com calma, passo a passo, dentro daquilo que poderíamos chamar de uma nova relação bilateral com os Estados Unidos e uma nova possibilidade de relação multilateral com outros países, com outros setores do mundo, ou regiões do mundo com as quais a Colômbia tem todo o interesse de estabelecer relação comercial, com o objetivo de incrementar o investimento equilibrado, com respeito à soberania, com respeito às possibilidades de controle da remessa de lucros ao exterior e investimentos que sejam capazes de contribuir com o desenvolvimento nacional.
Edição: Rodrigo Durão Coelho