No Sul da Bahia, o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga tem um hotel que se sobrepõe à área delimitada da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença. No Ceará, um empresário espanhol, citado como operador financeiro da máfia italiana nos anos 1990, planeja construir o maior complexo turístico residencial do mundo, o Nova Atlântida, invadindo parte da TI Tremembé da Barra do Mundaú. No Pantanal sul-mato-grossense, um empreendimento de ecoturismo mantém pousadas dentro da TI Cachoeirinha, onde hóspedes eram convidados a interagir com jacarés. Segundo denúncias, os empresários vendiam ilegalmente a carne do animal.
Os dados integram o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas“, publicado pelo De Olho nos Ruralistas. Ao todo, foram identificadas 1.692 sobreposições em 213 terras indígenas demarcadas pela Funai, totalizando 1,18 milhão de hectares — uma área do tamanho do Líbano. O levantamento foi feito com base em dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
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Desse total, 18,6% são atualmente destinados à produção agropecuária, dos quais 55,6% são destinados à pastagem bovina e outros 34,6% para o plantio de soja. Mas o agronegócio não é o único setor da economia a exercer domínio sobre terras indígenas.
Através da Garça Azul Empreendimentos Turísticos, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e sócio-fundador da Gávea Investimentos, mantém o Hotel Fazenda da Lagoa, no município de Una, localizado nas proximidades de Ilhéus, litoral Sul da Bahia.
A propriedade onde se encontra o resort, de aproximadamente 190 hectares, possui 20% de sua área sobreposta à TI Tupinambá de Olivença. Em 2013, o empreendimento de Fraga foi ocupado por cerca de 70 indígenas, em represália à demora na homologação do território, ainda sob análise pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os Tupinambá lembraram o histórico de crimes ambientais do resort, embargado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 2005 por destruir vegetação nativa na área de proteção ambiental. Diferentemente do que indica o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), base de registro de propriedades rurais do Incra, a Funai afirmou, na época, que os limites do hotel não confrontavam com a área delimitada da TI.
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Armínio Fraga é dono de outro empreendimento imobiliário que vem gerando conflitos com povos tradicionais. Por meio da empresa Mangaba Cultivo de Coco, ele pretende construir um complexo residencial e hoteleiro dentro de área de preservação ambiental na Ilha de Boipeba, em Cairu (BA), sem consulta aos pescadores e quilombolas, que se opõem à instalação do resort, conforme noticiou o programa De Olho na Resistência. Entre os sócios do empreendimento está José Roberto Marinho, herdeiro da Rede Globo, e o empresário André Bahia, que também se encontra no quadro societário da Garça Azul Empreendimentos, dona do Hotel Fazenda da Lagoa.
A Gávea Investimentos respondeu à reportagem em nota: “Sobre o Hotel Fazenda da Lagoa, no município de Una (BA), houve em 2013 uma invasão por comunidades tradicionais, que depois reconheceram que erraram”, afirma, sem apresentar evidência do arrependimento. “Não há invasão de terra indígena”, finaliza a nota.
Ainda no Nordeste, em Itapipoca (CE), a imobiliária espanhola Nova Atlântida anunciou, no início dos anos 2000, a construção do maior complexo turístico-residencial do mundo, com orçamento de R$ 15 bilhões. O projeto incluía um consórcio entre oito grupos empresariais, brasileiros e estrangeiros. Segundo a Funai, o empreendimento ocuparia uma área de 3,1 mil hectares, a fim de comportar 27 complexos hoteleiros cinco estrelas, com quase 100 mil leitos. Parte da área destinada ao empreendimento incide sobre a TI Tremembé da Barra do Mundaú, do povo Tremembé.
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Em 2006, indígenas da etnia chegaram a realizar ocupações, impedindo o tráfego de caminhões que iniciavam a construção. Em 2005, o Ministério Público Federal (MPF) no Ceará pediu a anulação da licença da empresa, além da interrupção das obras da Cidade Nova Atlântida. Dois anos depois, em 2007, o presidente da imobiliária espanhola responsável pelo empreendimento foi investigado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), por suspeita de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Radicado no Rio de Janeiro, o espanhol Juan Ripoll Mari, responsável pelo projeto, é uma figura conhecida na Europa. Já foi citado como financista do crime organizado, atendendo a uma gama de clientes que incluía de membros da máfia ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. A história foi abordada pelo extinto jornal sisciliano I Siciliani Nuovi, em 1994. Naquela época, Ripoll Mari já falava sobre seu plano de criar uma megacidade turística em terras brasileiras, com o objetivo de lavar dinheiro do crime organizado. A cidade também se chamaria Nova Atlântida, mas a construção se daria no estado do Mato Grosso.
O projeto jamais saiu do papel. Em 2008, Ripoll Mari deu lugar ao Grupo Afirma Inmobiliaria, também espanhol, no controle do empreendimento. O Afirma é o sucessor do grupo imobiliário Astroc, que alterou seu nome após uma perda de mais de 7 bilhões de euros na bolsa espanhola em 2007. O grupo já foi ligado ao empresário Enrique Bañuelos. Em 2016, mais de uma década depois do pedido do MPF, a Justiça cearense finalmente suspendeu as obras e a licença de operação do megaempreendimento. O representante do Grupo Afirma no Brasil é hoje o espanhol Xavier Mitats.
Longe dali, Beto Pantaneiro, ou Roberto Oliveira Dittmar, é uma figura folclórica nas cavalgadas organizadas por fazendeiros do Mato Grosso do Sul. Em Aquidauana (MS), ele administra a Fazenda Pousada Santa Cruz, voltada para o ecoturismo, onde recebe hóspedes trajado como boiadeiro. Na propriedade registrada no Incra como Fazenda Santa Cruz e Fazenda Conquista, 1.171 dos 5.559 hectares se encontram sobrepostos à TI Cachoeirinha, do povo Terena.
Há 40 anos o processo de demarcação se arrasta: seus limites se encontram em reestudo. Segundo o Conselho Indigenista Misisonário (Cimi), tanto União como Funai apontam como principal empecilho para demarcação as ações judiciais de fazendeiros locais, entre eles Beto e família.
A Fazenda Santa Cruz pertencia ao pai dele, Romeu Oliveira Dittmar. Na divisão entre os herdeiros se estabeleceu uma propriedade separada, a Fazenda 23 de Março, do irmão João Julio Dittmar. Essa propriedade também se sobrepõe aos limites da TI Cachoeirinha. São 1.101 hectares incidentes no território Terena, registrados em nome de um filho do cirurgião. A terceira herdeira, Rosaura Oliveira Dittmar, move ações contra a Funai e, como Beto, investe no ecoturismo. Em Miranda (MS), mantinha ao lado do marido, Gerson Bueno Zahdi, a Pousada Cacimba de Pedra, onde os hóspedes podiam interagir com jacarés.
Zahdi era servidor do Ibama e, por quinze anos, foi o único criador licenciado de jacarés no Mato Grosso do Sul. Em 2019, uma operação do Ibama revelou que o ecoturismo era um subterfúgio para um intenso comércio de carnes do animal. Na ocasião, segundo o Campo Grande News, foram apreendidos 206 animais mortos inteiros e partes congeladas. Cerca de 3.500 jacarés vivos estavam em dois galpões do criadouro. Rosaura foi presa por crime ambiental durante a operação e a pousada perdeu sua licença de operação.
A reportagem entrou em contato com a pousada, mas até o fechamento dessa edição, não houve resposta.
As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo relatório “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Entre os atores dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão algumas das principais empresas do agronegócio brasileiro e global.
Os casos descritos na pesquisa estão sendo explorados também em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.