Coluna

O guerrilheiro da justiça

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O juiz do Trabalho Theodomiro Romeiro Santos, falecido no dia 14 de maio - Projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
A grande homenagem a Théo deve dirigir-se a celebrar-lhe a vida, a trajetória, o compromisso

José Carlos Garcia*

No dia 27 de outubro de 1970, uma terça-feira, cinco pessoas à paisana, dentro de um jipe civil, sem qualquer identificação de que fossem pessoas ligadas a forças de segurança, sequestram dois militantes de esquerda. Um deles, o jovem estudante Theodomiro Romeiro dos Santos, então com 17 anos, reage ao sequestro e efetua três disparos dentro do jipe. Dois ferem um agente da Polícia Federal, que sobrevive sem grandes ferimentos, mas o primeiro tiro fere letalmente um sargento da Aeronáutica.

Desde o primeiro dia, iniciam-se as sessões de tortura, seguindo o farto cardápio utilizado pela repressão brasileira, mas concebido pela CIA e ensinado a torturadores de todos os países latino-americanos pela tristemente célebre Escola das Américas, no Panamá, formalmente ligada à 193ª Brigada de Infantaria do Exército dos Estados Unidos. Mais tarde, diria o próprio Théo que tão angustiante quanto a tortura era a espera por ela: os presos políticos eram mantidos no pátio com esparadrapos nos olhos por tempo indefinido, sabendo que seriam torturados algum tempo depois. A certeza, no entanto, vinha apenas quando os agentes os levavam para subir uma rampa no local de detenção, via de acesso às salas dos torturadores.

O jovem Théo protagonizaria uma das mais heroicas páginas da resistência contra a ditadura civil-militar de 1964. Primeiro brasileiro condenado à morte pela ditadura, com base na Lei de Segurança Nacional, sua condenação foi objeto de intensa campanha nacional e internacional, o que determinou que a pena fosse primeiro comutada para prisão perpétua, depois, finalmente, para 16 anos de reclusão. Em 1979, com a Lei de Anistia, muitos dos presos políticos foram sendo liberados, mas havia dúvida quanto ao seu alcance sobre casos como o de Théo, que teriam praticado "crimes de sangue". A perspectiva de ficar sozinho no presídio, sem a proteção das redes de militantes encarcerados, tornava imenso o risco de uma execução encenada como briga entre presos, o que determinou a opção pela fuga e pelo exílio – primeiro, refugiando-se na Nunciatura Apostólica, a Embaixada do Vaticano em Brasília, mais tarde viajando para Paris, na França. Théo foi o último exilado político a retornar ao Brasil, em 1985.

De volta ao país, Théo decide seguir lutando pela justiça por outros caminhos. O país ia redescobrindo suas trilhas democráticas, havia recém realizado a grande campanha pelas Diretas Já, em breve instalaria a Assembleia Nacional Constituinte e aprovaria a Constituição de 5 de outubro de 1988. E assim o jovem militante potiguar é aprovado em concurso para Juiz do Trabalho em Pernambuco, em 1993, cargo em que se aposentaria 22 anos mais tarde. Foi presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 6ª Região – Amatra VI, entre 2000 e 2004. Filiou-se à Associação dos Juízes para a Democracia – AJD, em 2013. Desde 2019, o núcleo pernambucano desta entidade, da qual tenho a honra de participar, adotou seu nome. 

No dia 14 de maio último, este gigante partiu. Após cinco anos de luta contra as sequelas de um Acidente Vascular Cerebral, sempre apoiado pelos filhos, pela filha e pela companheira Virgínia Bahia, Théo despediu-se da última de suas muitas lutas na vida. Recebeu, recebe e ainda receberá muitas e merecidas homenagens. Mas o mais importante de homenagearmos alguém como Théo não é sublinhar a inegável relevância de seu passado, ou marcar a importância da perda de alguém de sua envergadura política e moral. A grande homenagem a Théo deve dirigir-se a celebrar-lhe a vida, a trajetória, o compromisso, o engajamento, a paixão, não como algo que se vai e se dispersa com suas cinzas, mas como algo que alimenta, oxigena e nutre, e que, portanto, aponta para o futuro.

Os dias turbulentos que vivemos, com instabilidade política, ataques à democracia, tentativa de atentados a bomba, ataques à sede da Polícia Federal, destruição parcial das sedes dos três poderes, tentativa de golpe em 8 de janeiro e sagração da mentira e da truculência como estratégias corriqueiras da antipolítica e da necropolítica, exigem de nós o mesmo compromisso, a mesma paixão, a mesma vontade de lutar que inspirou o menino Théo, o homem Théo, o Juiz Theodomiro. Atravessamos o despertar global de um novo fascismo, rosto político (ou antipolítico) do neoliberalismo, forma institucional da destruição de direitos sociais e humanos, articulação global contra toda forma de diversidade e de dissidência. Estes dias não nos cobram platitudes e truísmos, compromissos formais e blasés com voto e liberdades. Cobram-nos, antes, militância democrática ativa, defesa intransigente das liberdades conquistadas contra o arbítrio, denúncia constante da tortura, da violência e do assassinato, combate às desigualdades sociais, à fome e à precarização do trabalho, condenação permanente da abjeta ditadura de 64 e dos ratos de latrina que a tornaram o que foi, como Brilhante Ustra.

Talvez não seja correto dizer que Théo tenha sido um guerrilheiro, em que pese militante do PCBR, pois que não me consta tenha-se engajado pessoalmente em nenhuma ação de guerrilha, em sentido estrito. A expressão é usada no título com licença poética e como inspiração – a inspiração de que devemos ser "guerrilheiros" da Constituição e da Democracia, combater sem medo e sem cessar o fascismo e todas as formas de opressão e obscurantismo, em todas as frentes possíveis, defendermos sem descanso as liberdades que consagramos e construir ativamente as igualdades que sonhamos. Théo era, por isso, inquestionavelmente um "guerrilheiro da justiça". Sejamos, também nós, "guerrilheiros da justiça". Para que a partida de Théo, no dia 14 de maio, seja não uma despedida, mas um reencontro com este grande brasileiro que viverá em nós para sempre. 

Companheiro Théo, presente!

* José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

** A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares