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Ministério dos Povos Indígenas se levanta contra manobra na Câmara para votar Marco Temporal

Pauta da bancada ruralista tenta tornar lei medida que impede novas demarcações, se antecipando à decisão do STF

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Ministra Sônia Guajajara e o Secretário-Executivo Eloy Terena querem mobilizar resistência no Senado - Lula Marques/ Agência Brasil

Toda mobilização feita por diferentes povos indígenas durante o Acampamento Terra Livre, no final de abril, e as iniciativas do governo Lula em prol da proteção dos direitos indígenas parecem ter ajudado a inflamar a base ruralista na Câmara dos Deputados.

Com apoio do presidente da Casa, Arthur Lira, a Frente Parlamentar da Agropecuária decidiu priorizar um projeto que torna lei a tese do Marco Temporal. A pauta, que pode entrar em votação nas próximas semanas, possui o mesmo teor da proposta que está sendo discutida em plenário no Supremo Tribunal Federal (STF), cuja votação será retomada dia 7 de junho.

A pauta ruralista teria o efeito de validar as invasões e violências cometidas contra os indígenas antes da Constituição de 1988 e, na prática, travaria novas demarcações. No texto que ainda é válido, em seu artigo 231, as chamadas “Terras Indígenas” (TIs) são atribuídas aos locais ocupados pelos povos originários antes mesmo da configuração do estado brasileiro.

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A estratégia de atropelar o julgamento do STF, tentando impor uma nova lei, é criticada pelo Ministério dos Povos Indígenas e por organizações da sociedade civil. Para o advogado Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a própria condução do processo seria inconstitucional.

“O PL 490 tem uma situação jurídica que é bastante esdrúxula do ponto de vista regimental, porque eles querem dar uma interpretação à constituição federal por meio de um PL e não por meio de uma emenda à constituição. Estão partindo do pressuposto de que o marco temporal já existe, mas o STF fala que não existe”, aponta. 

Modesto ainda aponta que a manobra demonstra a força da bancada ruralista dentro do Congresso Nacional com o objetivo de ir na contramão do que deve ser decidido pelos magistrados: “É para impedir o julgamento do Supremo, porque imaginamos que a avaliação deles é de que seriam derrotados no STF. Mesmo com 10 ministros hoje, com a aposentadoria do Lewandowski, a perspectiva é votar pela manutenção do texto que está na constituição.”

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Ministério dos Povos Indígenas organiza o contragolpe

À frente do recém criado ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, externou sua indignação com a trama. Durante audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado, no dia 10, a ministra também cobrou apoio e resistência caso a proposta avance na Câmara.  
 
“Quantas teses jurídicas o Supremo Tribunal Federal precisará rechaçar para que a sociedade brasileira entenda que o direito dos povos indígenas não começa em 1988, mas é um direito originário?”, indagou Sônia, que também conclamou: “Aproveito a ocasião para fazer também um apelo a todas as senadores e senadores para que se mostrem sensíveis às pautas relacionadas aos povos indígenas que chegarem à essa Casa.”

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Número dois da pasta, Eloy Terena, Secretário-Executivo do Ministério dos Povos Indígenas, também enfatiza que a orientação do atual governo é em favor da demarcação e contra o marco temporal. 

“Para nós, está muito claro que a Constituição garantiu o direito originário aos seus territórios tradicionais, determinou, inclusive, à União demarcar e proteger esses territórios. E a partir do momento que vem uma proposição que não é nova, já tramita na Casa legislativa desde 2007, mas ganha força agora por conta do julgamento que está agendado lá no Supremo Tribunal Federal, esse PL quer colocar um requisito temporal para se aferir a ocupação tradicional indígena”, contextualiza.

Terena também se queixa de que a interpretação do marco temporal é restritiva e acabará impedindo o questionamento judicial de terras que já estão consolidadas. “O Ministério dos Povos Indígenas está vendo isso com bastante preocupação, nós já nos manifestamos, como Ministério, contrários a essa tese e vamos pedir orientação a nível governamental da base do governo votar contrário ao PL 490”, conclama.

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A pauta só não entrou ainda como prioridade na Câmara por uma restrição do regimento, que impede que uma nova proposta seja apreciada antes que outra com o mesmo status seja debatida no plenário. Mesmo se avançar na Casa, o projeto ainda precisaria passar pelo Senado e pela sanção presidencial, o que poderia estimular rusgas entre Arthur Lira e Lula.

Segundo Modesto, que considera a tese uma “ficção jurídica”, estará na mão dos magistrados o destino das terras indígenas, mesmo em caso de vitória dos ruralistas. “Independente de o Lira institucionalizar a pauta do marco temporal, quem vai ter a última palavra sobre essa tese será o STF, seja no julgamento envolvendo os recursos extraordinários do povo Xokleng, seja numa possível ação de controle de constitucionalidade”, pondera. 

Pressão por terras é regional e orquestrada com governos locais

A tese do Marco Temporal é construída em torno da disputa do povo Xokleng de Santa Catarina para demarcação de suas terras. Historicamente perseguidos e dizimados por capangas contratados pelos colonos da região até os anos 1930, os Xokleng ainda guardam memórias transmitidas oralmente por gerações. 

“A gente sabe que a terra é nossa. Meus pais me criaram aqui e o problema não é nem pelos colonos, é pelo governo do estado que nos deu essa terra. A gente sabe que a história não é de 88 para cá, é muito triste quando dizem que o marco temporal tem que ser fixado desde 88 para cá", protesta Tucun Grakan, cacique do povo Xokleng.

"A gente se sente humilhado porque nós fomos quase exterminados aqui. Algumas famílias estão lutando ainda. O povo do Alto Vale (do Itajaí) sabe que quem entrou aqui foram os descendentes de italianos e alemães que estão ainda hoje oprimindo o povo”, finaliza.

Áreas atribuídas a eles, assim como aos Kaingang e aos Guarani da terra indígena Ibirama La-Klãnõ, são pleiteadas pelo governo estadual e por proprietários rurais do entorno, cuja pressão é constante. “É claro que a gente sabe que os parlamentares de Santa Catarina sempre foram contra os povos indígenas. Desde que começou a luta, não só nas nossas terras, mas lá no oeste e em toda parte do estado, quando houve luta das comunidades indígenas, os parlamentares catarinenses sempre se levantaram contra”, reforça o cacique. 

Tucun também relata o modus operandi do governo estadual, atualmente comandado por Jorginho Mello (PL), para tentar negociar a cessão de áreas sob posse dos indígenas. “Eles estão promovendo audiência sobre o Marco Temporal. (...) Estão tentando negociar conosco para que nós aceitemos ganhar uma terra em outro lugar, uma parte em dinheiro, em recursos, mas nós pertencemos aqui”, reafirma. 

Inversões e narrativas não-indígenas

O secretário Eloy Terena também vê com preocupação os casos de violência e intolerância em algumas regiões onde o conflito por terras é mais latente. “O grande passivo de terras que nós temos são justamente essas regiões conflituosas: Mato Grosso do Sul, sul da Bahia, sul do país. A gente está tendo todo o cuidado também de buscar formas jurídicas para garantir a efetivação do direito territorial e, ao mesmo tempo, que esses processos respeitem o direito adquirido, a segurança jurídica e o devido processo legal”, afirma o advogado sul-mato-grossense.

Lideranças indígenas também criticam argumentos utilizados pelos parlamentares ruralistas, como o de criar novas áreas produtivas e o de apaziguar os conflitos no campo. Destacando o fato de a violência ser sempre maior contra os indígenas, com inúmeros casos de assassinatos e agressões, eles apontam uma tentativa de recontar a história, invertendo as responsabilidades e criando factóides.

“Quando o Brasil foi descoberto, o índio morava em 100% das terras e, hoje, no pouquinho que ele luta para morar, eles sempre dizem que é muita terra. Mas tem muitos empresários e grandes produtores com muitas terras, que poderiam assentar muitas famílias”, justifica Tucun.

Ele também enfatiza uma narrativa que não se aplica à realidade do povo Xokleng em Santa Catarina. “Nós estamos em 10 mil hectares aqui, só que é terreno acidentado, cheio de montanhas, sem lugar para morar. Mas agora o povo está crescendo e nós, que éramos donos de tudo, estamos ameaçados”, encerra.
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho