“Devia ter acontecido lá em 1888. A abolição tinha que ter vindo acompanhada de terra. Não veio – até hoje se nega terra para o povo. Reforma agrária para a população negra é reparação histórica”, afirma Jaqueline Franco, ativista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde 1999.
Viajou de Gurinhatã (MG), onde vive com sua companheira no Assentamento Nova Piedade Barreiro, até a capital paulista para participar da Feira Nacional da Reforma Agrária. O evento do MST juntou 500 toneladas de alimentos de todas as regiões do país e dura até domingo (14), no Parque da Água Branca.
A afirmação de Jaqueline é feita neste 13 de maio, quando completam 135 anos da abolição formal da escravidão no Brasil. “Para que a abolição se complete, é preciso distribuir a terra no Brasil”, resume.
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Açoite sob outra roupagem
Ali perto do “Café Literário Maria Carolina de Jesus” onde Jaqueline estava com outras assentadas, Fernando Alves, professor de atualidades da Uneafro, chegava à feira. Vinha de uma aula aberta sobre o 13 de maio organizada com todos os núcleos de cursinhos populares da Uneafro em São Paulo.
“Quando a gente fala que foi uma falsa abolição, a gente se refere, em primeiro lugar, ao Estado, que deixou nossos antepassados ao léu: não nos deu condições de sair desse processo de miserabilidade”, expõe Fernando. “Mas também à própria sociedade”, complementa, “de compreender que o que aconteceu até 1888 sob a ótica do açoite, ainda está acontecendo nos dias de hoje. Com outra roupagem, outros significados, mas continua”.
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É essa avaliação, impulsionada em especial pelo Movimento Negro Unificado (MNU) a partir da década de 1970, que busca questionar tanto a visão de que a Lei Áurea foi concedida pela princesa Isabel por bondade, perspectiva que lhe rendeu o título de “redentora” em livros de história, quanto a ideia de que, de 1888 para cá, as raças no Brasil vivem em harmonia.
“O movimento negro, então, busca pautar o 13 de maio como uma data de luta, não de comemoração. E o 20 de novembro é uma data em que celebramos Zumbi dos Palmares, mas é também uma data de luta. Como são, na verdade, todos os dias do ano”, diz Alves.
O latifúndio é formalizado para impedir a abolição completa
O termo “falsa abolição” não é consensual dentro do movimento negro. Alguns setores, conta Rosa Negra, integrante do Grupo de Estudo Terra, Raça e Classe do MST, acham que a expressão pode levar a uma interpretação que desconsidera a luta abolicionista dos séculos escravagistas. “A abolição não acontece só porque tem a assinatura da Lei Áurea, tem todo um processo de resistência anterior”, diz. A avaliação de que a abolição não se completou, no entanto, é unânime.
A relação entre as lutas antirracista e pela reforma agrária pode ser estabelecida, inclusive, na própria origem da regularização do latifúndio no Brasil. A Lei de Terras foi promulgada em 1850, menos de duas semanas depois da proibição do tráfico de pessoas escravizadas para o país. Até então, sesmeiros e posseiros se apropriavam de áreas aproveitando a falta de critérios definidos para a posse de terra.
O contexto da aprovação da lei que reafirmou a estrutura latifundiária no Brasil, regularizando escrituras de grandes propriedades e impondo dificuldades para pequenos produtores, foi aquele em que, por pressões nacionais e internacionais, a elite e a monarquia já anteviam que o fim formal da escravidão não demoraria a acontecer.
“Alguns historiadores, como o Luiz Felipe de Alencastro, tratam isso com uma visão bem interessante de que se não houvesse a Lei de Terras, haveria ali uma reforma agrária, naquele dado momento”, diz o professor da Uneafro.
Para Rosa Negra, que integra também a coordenação político-pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes, “não dá para discutir reforma agrária popular sem discutir a questão racial”. Citando o Censo Agropecuário de 2017, o último que foi realizado, Rosa reforça que “todos os dados apontam que o latifúndio no nosso país é branco”.
De acordo com esse Censo do IBGE, das grandes propriedades com áreas equivalentes a cerca de 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos. Os proprietários pardos são 17,4% e os pretos, 1,6%.
Reforma agrária como ruptura da hierarquia de humanidade
Joaquim Neto, integrante do Coletivo Nacional de Cultura do MST e da Trupe dxs Encantadxs, vive no Assentamento Maria Aparecida, na cidade de São Miguel do Gostoso (RN). Ele define a abolição de 13 de maio como “a retirada das correntes dos pés para colocar outra corrente, menos visível, no povo preto. Que é uma corrente muito difícil de quebrar”.
Isso que Joaquim chama de menos visível é o que Liu Durães, da direção nacional do MST, descreve como a “naturalização de uma escala de violência” a partir da criação cotidiana de “uma hierarquia de humanidade”. Que tem no topo os homens brancos e, na base, as mulheres negras. “É sobre isso que a gente quer falar nesses 135 anos de uma abolição que não aboliu”, pontua.
A ocupação de terras, diz Liu, “é uma organização do conflito. Para que o estado brasileiro faça cumprir o que está na Constituição Federal. Portanto, é uma luta dentro dos marcos da nossa democracia – por que não dizer? Da nossa democracia burguesa”.
“Então questionar a propriedade da terra é uma missão para nós que tem como objetivo lutar pela reforma agrária - que é mais que só distribuir a terra. É garantir as condições objetivas e subjetivas para existir com dignidade”, ressalta Durães. Na fala que fez sobre esse tema na Feira da Reforma Agrária, Liu terminou citando a música 14 de maio, de Lazzo Matumbi.
“No dia 14 de maio, eu saí por aí / Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir / Levando a senzala na alma, subi a favela / Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”, diz a canção: “Mas minha alma resiste, o meu corpo é de luta / Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu / A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa / Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu”.
Edição: Rodrigo Chagas