No próximo dia 17, completa um mês do pedido de prisão de Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, dono da Brasil Biofuels (BBF), a maior produtora de óleo de palma da América Latina. As acusações são graves: tortura de 11 pessoas, todos eles membros da comunidade tradicional Vale do Bucaia, no nordeste paraense. O chefe de segurança da empresa na cidade de Acará, Walter Ferrari, também foi denunciado pelos mesmos crimes, que incluem a destruição de casas, carros e caminhões e roubo de celulares de comunitários.
As vítimas teriam sido espancadas com chutes e golpes de cassetete, obrigadas a inalar spray de pimenta, amarradas e mantidas sob tortura por mais de sete horas, segundo a denúncia do Ministério Público do Pará (MPPA). O caso, contudo, já tem mais de um ano e meio, já que ocorreu em outubro de 2021. Desde então, os comunitários vivem reféns do medo de novos ataques.
“Os denunciados se deslocaram para o local dos fatos com aproximadamente 50 (cinquenta) veículos que continham cerca de 50 funcionários da segurança e 350 trabalhadores denominados ‘rurais’, dos quais 50 desses estavam também na função de segurança e armados com tonfas e escudos, tal qual uma polícia tática, comandados pelo denunciados para cometer os crimes”, informa o MPPA.
A denúncia, assinada por Emério Mendes da Costa, promotor titular da Procuradoria de Justiça de Igarapé-Miri, explica que um “grupo com características paramilitares” atua reprimindo comunitários que vivem em terras reivindicadas pela BBF. Esse grupo seria comandado por “Coelho” e “Ferrari”, como o empresário e o segurança são conhecidos na região. E teria recrutado e treinado funcionários que trabalham na colheita do dendê para que atuassem em situações de conflito, fato também investigado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
Em entrevista à Amazônia Real, que acompanha de perto os conflitos agrários na região desde 2018, o promotor Emério Mendes da Costa afirmou que as prisões foram pedidas como medida cautelar, visando conter o grupo criminoso e resguardar as vítimas de novas violências e possíveis coações. Ele contou ainda que, ao longo de sua trajetória, foi a primeira vez que teve de lidar com um caso como este, considerando-o singular.
“Nunca havia me deparado com esse fenômeno. Especialmente porque as comunidades são ancestrais, e os seus direitos territoriais reconhecidos constitucionalmente e em atos internacionais”, afirma Emério, referindo-se a outras comunidades da região, cuja ocupação territorial remonta a pelo menos 150 anos, conforme estudos antropológicos realizados na região.
A reportagem não conseguiu contato com nenhuma das vítimas listadas pela denúncia do MPPA. Fontes ouvidas pela Amazônia Real afirmam que elas temem por suas vidas e que a empresa, preocupada com a repercussão do caso, tem “dado um jeito de calar a boca deles”. Há outros casos de violência e violações de direitos humanos e territoriais por parte de seguranças da BBF, cujas autorias ainda estão sendo investigadas pela Polícia Civil, pelo MPPA e pelo Ministério Público Federal (MPF).
Ao falar das investigações sobre as violações de direitos humanos e territoriais na região, o MPF nomeia os grupos paramilitares de “milícias armadas” e diz atuar em parceria com a Polícia Federal para investigar os casos, que envolvem homicídios. “São investigadas as questões das milícias armadas e atuação de empresas de segurança na região, eventuais crimes e irregularidades cometidas por essas milícias e empresas de segurança”, informa o órgão, referindo-se às empresas que prestam serviços de segurança para a BBF. Por se tratarem de comunidades tradicionais e originárias, o MPF atua também pedindo para que o caso seja federalizado.
O promotor vê um agravante no crime. Como vivem em áreas carentes de saúde, educação, segurança e fiscalização ambiental, sem um Estado atuante e longe de ter títulos de terras, as comunidades se tornam “suscetíveis a todo tipo de pressão”.
“A denúncia do MP foi recebida por nossas comunidades como uma luz no fundo túnel, onde ainda podemos ter a esperança que a justiça começa a agir, após tantos crimes cometidos pela empresa BBF por seus próprios donos e funcionários”, acredita Miriam Tembé, capitoa (cacica) da Aldeia Tenetehara I’xing e presidente da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará (Aitva). Ela é uma das lideranças ameaçadas nos conflitos com a empresa.
Questionada sobre as acusações do MPPA e os pedidos de prisão contra seu proprietário e chefe de segurança, a BBF respondeu que “repudia as calúnias envolvendo seus executivos”. “Trata-se de uma narrativa fantasiosa, baseada em informações falsas relatadas por uma ex-funcionária e seu parceiro, também ex-funcionário, demitidos devido a condutas antiéticas e que buscam afetar a reputação e imagem da empresa”, afirmou a companhia em nota enviada à Amazônia Real.
A empresa afirmou ainda que as acusações feitas pelos ex-funcionários teriam por motivação “extorquir a empresa em busca de um acordo financeiro de alto valor e, sem sucesso, utilizam de métodos para difamar injustamente a empresa”. Ambos, informou a BBF, estão sendo processados pela empresa. Sobre a comunidade Vale do Bucaia, a BBF afirma manter “relação construtiva e de parceria” com os comunitários, afirmando gerar cerca de mil empregos diretos no município de Acará. Na nota enviada à reportagem, a BBF não comentou a atuação das empresas que atuam na sua segurança.
Violência, apagamento e medo
A denúncia do MPPA indica ainda que a BBF teria acesso ao sistema restrito dos órgãos de Segurança Pública do Pará, mostrando o poder e influência da BBF no Estado e a possibilidade de cooptação de agentes públicos locais. “Resta claro indícios de tentativa de influência indevida da empresa BBF nos órgãos de segurança do Estado, tendo inclusive acesso a sistemas públicos fechados como Sisp e Infoseg, utilizados para tentar ludibriar as autoridades públicas, bem como, para forjas situações criminosas para imputar a terceiros falsos cometimentos de crimes”, aponta a denúncia do MPPA. Segundo o promotor Emério Mendes da Costa, mais de 500 boletins de ocorrência foram registrados pela empresa contra comunitários indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Corrigindo a ideia por trás do termo “conflito”, Josias Dias do Santos, mais conhecido como “Jota” e uma das principais lideranças quilombolas da região, afirma que “essa palavra não expressa a realidade porque existem forças desproporcionais em jogo, são pessoas fortemente armadas contra um povo que luta para manter as terras dos seus antepassados”. Para ele, a BBF “escolheu ter a pior relação possível com as comunidades”, optando pelo conflito e pela violência e que as comunidades vivem em um “terrorismo constante”. “Jota” é ameaçado de morte e já fugiu de emboscadas.
“A BBF ignora totalmente a nossa existência enquanto populações tradicionais da Amazônia. Para eles vale tudo pelo lucro, negando nossa existência, nossos direitos e nos criminalizando, dizendo que não somos daqui, que não estávamos quando eles chegaram, e que nós que somos os invasores da terra”, pontua ele, que compõe a Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas Do Alto Acará (Amarqualta).
Para o advogado indígena Jorde Tembé, da TI Turé Mariquita, que defende as associações indígenas e quilombolas na região, ocorre “uma tentativa de apagamento da cultura e história das comunidades, quando há uma negativa, inclusive, de reconhecimento da existência das etnias lá existentes”.
“Nós temos nossa cultura, nossa ancestralidade. Preservamos as estruturas feitas de pedra, os igarapés feitos a mão, os desvios d’água. Enfim, toda a estrutura do engenho, do período da escravidão, ainda está aqui pra todo mundo ver. Quem são os invasores?”, questiona “Jota”, mencionando os vestígios históricos da ocupação dos seus antepassados negros e escravizados.
Recentemente, Josias e Jorde estiveram em São Paulo denunciando as violações de direitos humanos, territoriais e ambientais da BBF em evento promovido pela Global Witness, organização não governamental inglesa que atua em casos de violações de direitos humanos em todo mundo.
No fim de 2022, a Global Witness publicou um relatório com o mapeamento dos conflitos vividos por comunidades tradicionais e originárias do Pará com as indústrias Brasil Biofuels e Agropalma, esta última com sede na cidade de Tailândia, ambas referências mundiais na produção de óleo de palma para o setor alimentício e de biocombustíveis.
Sobre a BBF, além de apontar as violações das empresas, a ONG questionou seus clientes internacionais, conclamando-os a pararem de comprar da indústria, alegando os prejuízos socioambientais por elas causados na Amazônia e contra seus povos. Também recomendou que a União Europeia crie ferramentas de fiscalização sobre as cadeias produtivas que fornecem produtos para empresas sediadas nos países do bloco econômico. Kellogs, Hershey, Mondeléz, Pepsico e Unilever compram óleo de palma da BBF.
“Conclamamos todas as empresas que compram óleo de palma do BBF a rescindir imediatamente – e não apenas suspender – os contratos com a indústria, considerando que eles supostamente continuam realizando uma campanha de intimidação e violência”, diz a ONG em documento (Leia o relatório aqui). A multinacional Nestlé informou à Global Witness que deixou de comprar da BBF.
Agravamento dos conflitos
De acordo com o promotor Emério, os conflitos fundiários da região são antigos, bem como a prática da violência, advinda antes da grilagem de terras, no local de ocupação centenária, sobretudo de indígenas e quilombolas. Cercadas pela monocultura do dendê estão a Terra Indígena Turé Mariquita (a menor em território do Brasil), do povo Tembé, com 13 aldeias; a Terra Indígena Turyuara, que aguarda homologação, e possui três aldeias; 6 comunidades quilombolas, reunidas em torno da Associação (Amarqualta), com cerca de 350 famílias.
“A empresa comprou gato por lebre ao adquirir terras com conflitos fundiários históricos. A empresa se diz possuidora das terras, mas a posse é controversa, sobretudo em razão das comunidades serem ancestrais”, afirma o promotor insistindo no caráter ancestral das comunidades.
Em 2020, a BBF adquiriu a planta industrial e os vastos campos de dendê da então Biopalma, empresa do grupo Vale S.A. E com isso herdou os conflitos existentes com as comunidades pela sobreposição dos dendezais aos territórios indígenas e quilombolas e os litígios na Justiça.
Mas, segundo as lideranças indígenas e quilombolas, ao assumir a operação da Biopalma, a BBF acentuou os conflitos, contratando empresas de segurança que atuam como milícias, muitas vezes com participação de policiais militares.
“Desde que comprou os ativos da antiga Biopalma, a empresa BBF tem sido indiferente com as comunidades sempre mostrando-se insensível às pautas de diminuição de impactos socioambientais sofridos pelas comunidades”, atesta o advogado Jorde Tembé.
A reportagem também questionou a BBF sobre a situação fundiária da empresa, mas não houve resposta sobre este tema.
Crimes socioambientais
O MPPA e o MPF afirmam que a empresa também comete crimes ambientais e há indícios de fraudes em seus licenciamentos junto à Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Semas). A necessária consulta prévia, livre e informada, segundo prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não foi cumprida. A Convenção 169 determina que as comunidades originárias e tradicionais sejam ouvidas e devidamente informadas sobre qualquer impacto causado por empreendimentos em seus territórios.
“O avanço das plantações sobre a mata nativa derrubada e deficiências do processo produtivo gera poluição dos recursos hídricos e de solo, causando infertilidade de solo, mortandade de peixes e disseminando doenças na região”, afirma o promotor Emério da Costa. Segundo ele, os licenciamentos que a BBF possui “são deficientes e pouco fiscalizados”, afirmando ainda que a empresa descumpre as poucas condicionantes ambientais estabelecidas.
Segundo dados oficiais da BBF, a empresa possui no Pará cerca de 56 mil hectares de plantações de dendê e sua planta industrial tem capacidade de processar 285 toneladas de frutos frescos por hora. A reportagem questionou a Secretaria de Meio Ambiente do Pará sobre as. licenças ambientais da empresa, mas ainda não houve resposta.
“Ela prega para o mundo uma energia limpa, mas é mentira. É só vir aqui nos nossos territórios para saber a realidade que vivemos. A gente não pode mais tomar banho, não pode beber e nem cozinhar porque a água está contaminada. Fora as moscas, o glifosato [agrotóxico] e as vespas que comem toda a nossa produção e as tentativas deles de nos matar”, denuncia “Jota”, falando dos desequilíbrios ecológicos, resultante dos impactos da monocultura do dendê e dos ataques às comunidades. Atua em cinco estados da Amazônia: Pará, Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.
Últimos ataques
No início de abril deste ano, a Justiça firmou um acordo entre as comunidades quilombolas e a BBF sobre a posse de uma área em litígio, que compreende parte do plantio de dendê e a sede da indústria. O acordo previa, em linhas gerais, que a empresa está proibida de coletar dendê na área em questão, sob a posse das comunidades quilombolas, bem como permanece na posse da sede da empresa.
Mesmo assim, em 16 de abril, seguranças da BBF invadiram a área para expulsar os quilombolas (vídeo acima), disparando tiros em direção aos comunitários, que resistiram à ação irregular de reintegração de posse. O caso foi denunciado à Justiça. Um quilombola teria sido atingido de raspão na orelha por um dos tiros.
Ainda naquele abril de 2022, conforme mostrou a Amazônia Real, ao tentarem ocupar a sede da BBF em protesto, indígenas e quilombolas foram recebidos a bala por funcionários da empresa e por agentes terceirizados de segurança. Na ocasião, a agência teve acesso a um vídeo que mostra um homem de camisa verde, portando um revólver de calibre 38, junto a outro homem de capuz e camisa preta, armado com um machado, dentro da empresa, cujas identidades não foram confirmadas pela BBF. Na ocasião, conforme denunciaram o advogado Jorde Tembé, uma indígena teria sido coagida pelos seguranças da BBF que a ameaçaram “de atearem fogo nela”.
Em setembro do ano passado, a BBF foi acusada por indígenas do povo Turyuara de tentativa de homicídio no quilômetro 14 da rodovia PA-256. Um gol vermelho com homens armados disparou contra dois veículos ocupados por indígena. O motorista de um deles, Clebson Barra Portilho (não-indígena), morreu no local. No dia seguinte, a casa cultural do povo Turyuara foi incendiada. A empresa negou qualquer participação nos atentados.
“Nós fomos baleados por seguranças da BBF, trajando a farda de segurança, num Gol. Nós abominamos essa tal prática de fazer justiça com as próprias mãos. Nós indígenas Turyuara, quilombolas e ribeirinhos”, disse à época Adenísio dos Santos Portilho, conhecido como “Ad”, um dos feridos durante o ataque na PA-256.