Casa Galileia

Análise | O PL das Fake News não penaliza os valores cristãos

As mentiras são parte da estratégia de dominação da extrema direita

Brasil de Fato |
Fake news são feitas de propósito e o produtor busca atingir o público, para mobilizar e gerar emoções - Reprodução

Há poucos dias uma postagem do dep. Deltan Dallagnol chamou atenção por abusar de temas religiosos, ao dizer que o PL 2630/20, em iminente votação na Câmara dos Deputados, iria banir versículos bíblicos das redes sociais. Rechaçado por diversas lideranças políticas e religiosas, várias agências de checagem logo declararam sua postagem como uma campanha desinformativa e falsa, razão pela qual o referido projeto de lei tem adquirido sentido de urgência, depois de 3 anos de discussão em grupos de trabalho e comissões no Senado e na Câmara.

O ex-procurador Deltan Dallagnol, evangélico de tradição batista, não está sozinho. Além de conteúdos desinformativos como este terem sido utilizados pelas próprias plataformas digitais em lobby junto aos parlamentares, fato reconhecido pela Câmara Brasileira de Economia Digital (composto pelo Facebook e outras “big techs”), também orientou o posicionamento oficial da Frente Parlamentar Evangélica, que em nota pública de 29 de abril, declara que o texto do PL 2630/20 “mantém em suas regras diversos dispositivos que penalizam a pluralidade de ideias e sobretudo os valores cristãos”.  

Parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica conhecem bem o texto do PL 2630/20 e têm conhecimento de que não se trata de censurar nenhuma expressão religiosa. Prova disso é que o dep. Cezinha de Madureira (PSD-SP), ex-presidente da FPE ligado às Assembleias de Deus Ministério de Madureira, veio a público ao lado do relator do projeto de lei, dep. Orlando Silva (PCdoB-SP), para negar que o PL 2630 tivesse quaisquer medidas que afetem a liberdade religiosa no país.

É compreensível que a narrativa de ataque aos “valores cristãos” e de “perseguição religiosa” oriente o discurso público de grupos evangélicos quando estão em minoria em países majoritariamente não cristãos. Mas quem tem poder político, midiático e institucional, como uma parte das igrejas evangélicas detêm no Brasil, pode reivindicar o lugar de religião perseguida? Afinal, é bem provável que o próximo Censo aponte que evangélicos perfazem cerca de 30% da população, como pesquisas de opinião já detectam. No entanto, essa retórica de “minoria perseguida” é seguidamente acionada pelas elites políticas evangélicas e por suas lideranças denominacionais. É preciso colocar limites na retórica das elites políticas evangélicas de que sofrem perseguição religiosa.

Especialmente a partir dos anos 1960, as instituições evangélicas só fizeram se multiplicar no país, com a proliferação de centenas de novas denominações, igrejas, organizações missionárias e instituições educacionais e de assistência. Por outro lado, abundantes fatos e pesquisas apontam que quem sofre intolerância e discriminação religiosas há décadas no Brasil, sob a forma de racismo religioso, principalmente por parte de grupos que se denominam evangélicos, são as religiões de matriz africana.

Nos últimos anos, a narrativa do pavor de uma iminente perseguição religiosa ou “cristofobia” foi jogada como uma “carta trunfo” pela direita evangélica como tentativa de barrar avanços na pauta dos direitos humanos ou em qualquer outro debate político em que  sintam uma iminente perda de espaço político suposto ou já conquistado.

Na prática, esse expediente se tornou um dispositivo de poder que chantageia as instituições democráticas e se converte em regimes de cancelamento e exclusão de discordantes das posturas hegemônicas no próprio campo evangélico. As últimas eleições foram o pior exemplo disso. Fiéis se sentiram pressionados a votarem em Jair Bolsonaro e lideranças que tiveram a coragem de assumir outra posição política foram duramente punidas. É um instrumento de pânico moral a que lideranças políticas e influenciadores da direita evangélica recorrem para mobilizar suas bases para sua guerra cultural neoconservadora.

Sem dúvida, as fake news têm sido uma grande aliada na construção dessas narrativas, ao associar informações enganosas ao constante senso de urgência que parte dos crentes vivem sob um regime de pavor apocalíptico. Apesar da estratégia não ser inédita nem recente, com a pulverização e facilitação do acesso às redes sociais o impacto das fake news se tornou imensurável e suas consequências irreparáveis. Por isso agora o alvo virou o PL 2630/20, estratégica e falsamente apelidado de “PL da Censura”.

É fundamental escutar outras vozes entre as lideranças evangélicas. Algumas delas estarão em Brasília no dia 2 de maio, dia da votação do projeto que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, para dialogar com parlamentares e a imprensa sobre a necessidade de sua aprovação. 

 

* Flávio Conrado - é doutor em antropologia pela  UFRJ, com pós-doutorado pela Universidade de Montreal e assessor de campanhas de mobilização social da Casa Galileia

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Rodrigo Durão Coelho