O resultado do julgamento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações contra as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, foi considerado insuficiente pelas populações locais. Mais de 100 quilombos da região estão sob ataque e risco há mais de quatro décadas, por causa dos planos da Força Aérea Brasileira para ampliar o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).
O projeto levou a remoções compulsórias que afetaram diretamente os modos de vida e a subsistência das populações. Na audiência, o governo brasileiro pediu desculpas pelos anos de violações.
De acordo com nota emitida pelo Ministério de Relações Exteriores, "o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade internacional na matéria e realizou pedido formal de desculpas às comunidades por violações de direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos".
O gesto, no entanto, está "cercado de incertezas", na avaliação de movimentos populares que representam os povos tradicionais da área. Também em nota, organizações ressaltaram que a postura do governo sinaliza uma mudança, mas não traz nenhuma garantia.
"Estes anúncios foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional."
:: A luta dos remanescentes de quilombos em Alcântara (MA) ::
Segundo o texto, o Estado reconheceu as violações do direito à propriedade e do direito à proteção judicial, mas não se expressou diretamente sobre as consequências associadas ao deslocamento forçado das comunidades na década de 1980.
"Certamente, levar notas às páginas dos jornais anunciando que fará um pedido antes mesmo de fazê-lo já foi o indício de que, ao Estado, talvez interesse mais fazer da desculpa um fato político, e não uma medida efetiva de satisfação."
Além disso, os movimentos criticaram a falta de propostas concretas para a titulação do território étnico de Alcântara, já considerada pelo próprio governo como um direito das comunidades. "A fórmula do Estado consiste em afirmar que haverá uma 'titulação progressiva no prazo de dois anos', sem, contudo, precisar qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, e qual a forma jurídica de tais títulos", critica a nota.
As organizações afirmam ainda que a titulação progressiva gerou estranhamento até mesmo entre os juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos. "Diante de tamanha incerteza sobre os termos apresentados pelo Estado Brasileiro, a solução encontrada pelo Juiz Presidente Ricardo Pérez Manrique foi determinar ao Brasil que apresente suas propostas por escrito, para que possam ser avaliadas pelos representantes das comunidades quilombolas, e pela própria Corte Interamericana."
Grupo de trabalho
No julgamento, o governo informou que deve anunciar uma série de medidas de reparação, mas sem detalhar a proposta. O Estado confirmou criação do Grupo de Trabalho Interministerial que formulará "propostas para titulação territorial e efetivação do direito à consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas de Alcântara".
Os movimentos que representam as populações também não ficaram satisfeitos com essa definição, formulada, segundo eles, "sem qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas". O alerta é de que o caminho sugerido pelo governo, na melhor das hipóteses, aponta para soluções mediadas, o que já foi feito nas últimas quatro décadas sem resultado efetivo.
"Causa, ainda, grande preocupação que a arena conciliatória proposta pelo Estado seja um Grupo de Trabalho cuja composição não confere paridade às representantes das comunidades de Alcântara, ou respeita suas formas associativas."
Pedido de desculpas do Estado às comunidades quilombolas de Alcântara não é o que pedimos no Caso e está muiito aquém do que merecemos! Por isso nós o rejeitamos na nossa sustentação oral. Não se pode reduzir isso a uma fala publica do Estado. Não concordamos com isso.
— Danilo Serejo (@Serejano) April 28, 2023
Pelas redes sociais o jurista, cientista político e pesquisador, Danilo Serejo, que é quilombola de Alcântara criticou fortemente a postura do governo. "Pedido de desculpas do Estado às comunidades quilombolas de Alcântara não é o que pedimos no Caso e está muito aquém do que merecemos!", disse ele.
O julgamento na corte internacional foi convocado em resposta a uma denúncia de 2001, feita pelas comunidades atingidas. A audiência aconteceu presencialmente no Chile e o Brasil foi representado pelo embaixador Paulo Pacheco, o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, e a secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Rita Cristina de Oliveira.
Entenda o caso
O histórico da contenda remonta a 1983, quando 312 famílias de quilombolas foram expulsas de seu território, em Alcântara, município de 22 mil habitantes, e transferidas para agrovilas mais ao sul do estado. Lá, ganharam lotes de 16 hectares.
Três anos antes, o então governador do estado, Ivar Saldanha (PSD), havia desapropriado 52 mil hectares do território ocupado pelos quilombolas e os entregou para a União. A medida fazia parte do projeto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), encampado pelo ditador João Batista Figueiredo (1979-1985) e administrado pela Força Aérea Brasileira (FAB).
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Em 2008, um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Incra, garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades quilombolas e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.
Já em 2010, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estado reivindicou outros 12 mil hectares na área costeira de Alcântara. A nova aquisição nunca foi confirmada, mas as 792 famílias de quilombolas da região vivem, desde então, com medo dessa possibilidade.
Em março de 2019, Brasil e Estados Unidos firmam um contrato que garante aos estadounidenses o direito de explorar a base de Alcântara. A possibilidade de ampliação da área do CLA, — que hoje é de 8 mil hectares — está prevista no documento.
Edição: Thalita Pires