A disputa por terras entre o Estado brasileiro e a população quilombola de Alcântara, uma península do Maranhão, é alvo de denúncias que começaram a ser analisadas nesta quarta-feira (26), pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com o Brasil no banco dos réus.
Segundo a denúncia, a base de lançamento de foguetes causou desapropriações e remoções compulsórias. A perda dos territórios teve impacto no acesso a direitos básicos dos quilombolas, como saúde, educação, saneamento básico, alimentação adequada, livre circulação e acesso à cultura. O impacto pode ter chegado a cerca de cem comunidades.
O histórico da contenda remonta a 1983, quando 312 famílias de quilombolas foram expulsas de seu território, em Alcântara, município de 22 mil habitantes, e transferidas para agrovilas mais ao sul do estado. Lá, ganharam lotes de 16 hectares.
Três anos antes, o então governador do estado, Ivar Saldanha (PSD), havia desapropriado 52 mil hectares do território ocupado pelos quilombolas e os entregou para a União. A medida fazia parte do projeto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), encampado pelo ditador João Batista Figueiredo (1979-1985) e administrado pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Os quilombolas expulsos de seus territórios foram transportados para agrovilas localizadas no interior do estado, em uma região coberta por areia e de solo estéril. Nos quilombos, a pesca garantia o sustento da comunidade e ditava a dinâmica de organização do local.
“Não sei nem porque chama ‘agrovila’, de agro não tem nada. É um projeto que deu errado. Eu moro em uma das agrovilas, nunca deu certo, nos colocaram em um lugar onde não temos como nos sustentar”, explica Antônio Marcos Pinho Diniz, presidente do sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara, em entrevista ao Brasil de Fato, em 2022.
Em 1991, o ex-presidente Fernando Collor desapropriou mais 10 mil hectares de Alcântara para a construção do CLA, totalizando 62 mil hectares. Já no ano de 2008, o jogo virou em favor das famílias quilombolas. Um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Incra, garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades quilombolas e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.
Em 2010, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estado reivindicou outros 12 mil hectares na área costeira de Alcântara. A nova aquisição nunca foi confirmada, mas as 792 famílias de quilombolas da região vivem, desde então, com medo dessa possibilidade.
Em março de 2019, Brasil e Estados Unidos firmam um contrato que garante aos estadounidenses o direito de explorar a base de Alcântara. O acordo prevê salvaguardas tecnológicas e permite o lançamento de foguetes e satélites na região.
A possibilidade de ampliação da área do CLA, — que hoje é de 8 mil hectares — está prevista no documento. Isso fez com que os quilombolas se mobilizassem para conseguir definitivamente a titulação de suas terras, o que lhes garantiria estabilidade na região e poder em uma futura negociação com o Estado.
Conflitos permanecem
No dia 29 de março deste ano, militares da Força Aérea Brasileira (FAB) lotados no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e agentes da Polícia Federal (PF) invadiram uma parte do território de Vista Alegre para cumprir uma determinação de despejo emitida pela 3ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Maranhão, pedida pelo governo brasileiro em 2020.
A ação, no entanto, não deveria alcançar toda a comunidade, apenas a Pousada Vista Del Mar, administrada pelo quilombola Moisés Costa, morador do Quilombo Vista Alegre, que protestou contra a remoção.
“Não funcionamos há quase um ano aqui, nunca houve negociação, chegaram com bombas e nos atacaram, teve criança que levou tiro, um idoso foi atingido na perna, foi uma cena horrorosa”, explicou Costa.
Em nota divulgada na época, a FAB se defendeu. “A comunidade situa-se no centro de uma disputa histórica com os militares da Força Aérea Brasileira lotados no CLA, que ilegalmente sustentam serem proprietários da área, na contramão da Constituição Federal de 1988 e decisões e sentenças judiciais que reconhecem essa área como pertencente às comunidades quilombolas e determinam a União regularização e titulação coletiva, o que nunca foi feito.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho