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Deputada do Chile quer exportar sucesso eleitoral de feministas a parlamentos de outros países

Para Karol Cariola, Internacional Feminista pode ser reforço na luta para barrar extrema direita

Carol Kariola foi a deputada mais votada do Chile nas últimas eleições - Google Creative Communs
Trabalhadores e trabalhadoras não trabalham para viver, pelo contrário, vivem para trabalhar

Dona de grande capital político, Karol Cariola, a deputada chilena mais votada em todo o país nas últimas eleições, acredita que agora é preciso dar um passo além.

Para ela, que participou do ato de fundação da Internacional Feminista no último dia dois de abril, no México, é hora de construir um "espaço de coordenação e organização política que se projete de forma permanente no tempo, que permita contribuir com os processos de mobilização (...) do movimento feminista em suas diversas expressões no mundo."

A nova organização conta com expoentes feministas como Manuela D'Ávila e Irací Hessler - a última prefeita de Santiago do Chile -, mulheres que tornaram-se figuras públicas amplamente conhecidas em seus países e bem sucedidas em número de votos.

Karol conta que um dos objetivos da nova Internacional é organizar, ao lado de feministas de mais de 30 países das Américas, da Europa e da Ásia, equipes de "trabalho de mulheres parlamentares para levantar bancadas feministas em todos os parlamentos do mundo", sobretudo para fazer frente à ascensão da extrema direita e sua agenda.

A ex-liderança estudantil participou da onda de protestos em defesa da educação pública em 2011 no Chile, ao lado de Camilla Vallejo, que hoje é ministra da Secretaria-Geral de Governo e do atual presidente do país, Gabriel Boric.

Karol usa a experiência de sua geração para inspirar o avanço de mulheres nos espaços de decisão política. Ela diz que "o governo do Chile (...) se declarou feminista" e tem "ministras hoje que ocupam lugares de poder" na alta administração de seu país.

A deputada também militou pela redução da jornada de 40 horas semanais de trabalho, aprovada recentemente pelo Congresso do Chile e que coloca o país ao lado do Equador como as duas nações com a menor carga horária de labor da América Latina.


Carol Kariola em campanha pela redução para 40 horas semanais de trabalho, ao lado de Camila Vallejo, atual ministra de Boric e antiga colega de movimento estudantil / Arquivo pessoal - Twitter

Antes de se tornar parlamentar, Kariola foi a segunda mulher a liderar as Juventudes Comunistas do Chile (JJCC) e também presidiu a Federação de Estudantes da Universidade de Concepción (Fec), além de manter grande protagonismo no Distrito 9, seu reduto eleitoral, onde apoiou mobilizações para socorrer as vítimas de terremotos.

A integrante da Internacional Feminista acredita que vivemos uma nova "onda progressista na América Latina", mas que esse processo construiu "uma correlação de forças extremamente masculinizada". Ela afirma que o motivo de fundar a organização global é assumir a condução de políticas públicas e de alternativas ao atual modelo patriarcal para que as decisões não ocorram, como ela diz, nunca mais "sem nós".

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: como surgiu a ideia de fundar uma nova Internacional Feminista?

Karol Cariola: É uma ideia que surge a partir de várias conversas com companheiras líderes em diferentes lugares do mundo, e fundamentalmente da América Latina, mas também da Europa, Ásia, principalmente Índia. Viemos dialogando sobre a necessidade de criar um vínculo maior entre nós.

É um longo caminho que começou a ser percorrido há mais de um ano e meio. Começamos a conversar sobre as diferentes problemáticas que afetavam nossos países e principalmente as mulheres. Me refiro a mulheres que sofreram violência política, mulheres que se desempenham em diferentes espaços institucionais e tiveram que enfrentar diversos tipos de dificuldades. E, de alguma forma, ao conversar percebíamos que havia coincidências naquilo que estávamos enfrentando.

Portanto, frente a essa situação, decidimos criar um espaço de coordenação transfronteiriço. Começou a ser pensado, inicialmente, como uma rede, um espaço de coordenação, mas chegamos à conclusão de que deveríamos transformá-lo em uma organização política.

Uma organização política internacional, feminista, com alguns princípios básicos, como a construção de um feminismo anticapitalista, anti-imperialista, ecologista, pela paz, interseccional, com perspectiva de classe também, um feminismo popular, e que de alguma maneira nos permitisse construir, a partir de uma lógica e orientação, linhas de trabalho dirigidas às organizações sociais, às mulheres em espaços institucionais, parlamentos, governos e outros.

Mundialmente, os movimentos feministas sempre superaram fronteiras e são entendidos como ondas, uma diferente da outra. Vocês se consideram uma nova onda feminista?

Acho que as ondas feministas estiveram mais ligadas a processos de efervescência da mobilização. Esta também é uma forma de mobilização. Mas é uma forma diferente. Porque não responde a uma conjuntura nem a uma mobilização de massas tão explícita, e sim a uma necessidade de organização e de coordenação, que permita, inclusive, ser sustentada no tempo.

A fundação da Internacional Feminista busca estabelecer um espaço de coordenação e organização política que se projete de forma permanente no tempo, que permita contribuir com os processos de mobilização inorgânicos e orgânicos também do movimento feminista em suas diversas expressões no mundo, e que também permita entregar consistência do ponto de vista das ideias, das políticas públicas.

Do nosso encontro, saíram algumas resoluções. Além das equipes de trabalho, equipes de organização e dirigentes sociais, fizemos uma equipe de trabalho de mulheres parlamentares para levantar [eleger] as bancadas feministas em todos os parlamentos do mundo.

Foi uma das nossas resoluções. Criamos um espaço de organização e coordenação de governos, ou seja, governos que tenham como vocação a ideia e a necessidade de implementar políticas de gênero, incluindo políticas feministas.

São várias as linhas em que a Internacional pode contribuir para melhorar os processos de organização que existem nos países, entregando mais e melhores ferramentas e gerando também um processo de articulação e coordenação entre todas nós que estamos empurrando, a partir do feminismo, processos de transformação e democratização em nossos países.

Muitas das mulheres que estiveram na fundação da Internacional Feminista são parte de uma nova geração de feministas que também têm muito sucesso eleitoral.  Existe um plano, uma campanha, algo mais específico para eleger mais mulheres jovens?

É um ponto de discussão para nós. Principalmente sob a perspectiva de que um dos grandes riscos da nossa democracia é o surgimento dos neofascismos.

E neofascismos que vêm se fortalecendo, que têm uma expressão muito clara antimulheres, que propõem uma linha antigênero também no sentido de desconhecer o conceito de gênero como parte das identidades das pessoas, que vêm sendo extremamente agressivos em seu posicionamento público contra o feminismo, particularmente.

Para nós, é muito importante, fazer frente a essa realidade nos diferentes espaços de organização que temos. Esses espaços são os movimentos sociais, sem dúvida, é um elemento fundamental, mas também os espaços de disputa de poder político. Nós, feministas, não podemos abrir mão dessa disputa. Isso é algo que dizemos e reafirmamos firmemente.

Porque, do contrário, acreditamos que estaremos deixando espaços para que outros definam sobre nossas vidas, nossos corpos, nossas identidades e nosso futuro. Por muitos anos foi assim. Foram dois séculos de outros tomando decisões sobre nós. Aquilo que dissemos nas ruas: "Nunca mais sem nós" não pode ser materializado somente com uma palavra de ordem. Temos que propor isso com muita força e convicção também em ações de disputa concreta do ponto de vista eleitoral.

Existe aqui [na Internacional] uma força de mulheres que tiveram papéis em diferentes espaços de representação política, enfrentando processos eleitorais, e queremos incentivar que essa força, essa irrupção no espaço de poder político, onde as decisões são tomadas, perdure no tempo.

Hoje vivemos uma onda, já que o assunto é esse, progressista na América Latina. Conseguimos reverter, de certo modo, a situação em que nos encontrávamos alguns anos atrás, quando havia uma grande força conservadora que nos fez retroceder muito em relação à integração e outros temas.

E, hoje, surgem governos como o do Lula, no Brasil, como o do presidente Boric, no Chile, como o do presidente [Alberto] Fernández, na Argentina, Luis [Arce], na Bolívia, o presidente AMLO, no México, na Colômbia, o presidente [Gustavo] Petro, a presidenta Xiomara [Castro], em Honduras... Temos uma nova correlação de forças na América Latina. No entanto, se parar para pensar, é uma correlação de forças extremamente masculinizada. Este também é um fator a ser problematizado. 

Como então fazer com que as mulheres, em nível mundial, se tornem deputadas e autoridades nos movimentos sociais?

Para fazer isso, temos que gerar as condições, construir correlações de forças, e acreditamos que o feminismo é um espaço... é uma ferramenta que, em sua vocação democratizadora, permite construir mais e melhores alianças.

Estamos aqui para construir alianças. Não só entre nós, mulheres feministas, não só nos espaços institucionais e de organização social e política, mas também alianças com forças democratizadoras de esquerda, de centro-esquerda, que se coloquem na luta pela superação do modelo neoliberal.

Nós temos uma definição política, que é o feminismo popular, partindo, portanto, de uma concepção de esquerda, progressista. Essa construção não parte de qualquer feminismo. Não queremos um feminismo light, identificado só por um slogan, uma camiseta ou por defender o bem-estar das mulheres. Queremos um feminismo que aponte à transformação da sociedade.

Porque entendemos que as mudanças que existem hoje e que precisam ser incentivadas em nossos países para poder gerar melhores condições de vida para as mulheres não têm a ver com a resolução de questões superficialmente ou com soluções cosméticas.

São mudanças que envolvem as estruturas de um modelo social de dominação, que gerou lógicas de dominação dos trabalhadores e trabalhadoras, mas também, particularmente, das mulheres, apropriando-se de sua força de trabalho, sem remunerar nem reconhecer seu trabalho doméstico ou os trabalhos de cuidado, que são alguns elementos que surgem da nossa perspectiva de luta.

Por isso, esse é um fator fundamental, que nos motiva a gerar esses espaços de aliança com outros setores de organização, com os movimentos indígenas, com o movimento negro, sem dúvida.

Há muitas mulheres negras feministas que vêm lutando há muitos anos pela perspectiva da interseccionalidade. Angela Davis é, provavelmente, uma das referências mais relevantes.

Hoje temos também Francia Márquez, que é um grande exemplo de uma mulher negra, guerreira, que vem dos movimentos sociais e que chega à vice-presidência de um país.

Então, de uma forma ou de outra, temos um desafio muito importante em relação a romper a institucionalidade, estabelecer parcerias para que mais companheiras feministas tenham papéis em espaços de poder político e sejam parte das decisões, e isso para nós será uma garantia de estar representadas nos espaços onde se tomam decisões sobre nós.

Se não tivessem existido nos nossos países mulheres que lutaram e que o fizeram institucionalmente para democratizar nossa vida, nosso corpo, para assumir, por exemplo, que o aborto, seja como opção em qualquer circunstância ou dentro das exceções em que é permitido em alguns países... Se não fosse por nós, nunca teria virado lei.

Você fala sobre uma agenda que vai além dos direitos das mulheres. Fala sobre a importância de olhar para a democracia e as questões do trabalho. Que tipo de democracia vocês defendem?

Essa é uma conversa que, evidentemente, requer muitos olhares. Nós fizemos algumas definições que consideramos relevantes no sentido de ir entendendo a democracia e, portanto, de construir a partir do feminismo uma projeção de um processo de democratização mais inclusivo, onde exista uma ligação maior com as diferentes realidades vividas em nossas sociedades.

Ou seja, uma democracia antirracista, anti-imperialista, onde não exista a tutela de outros países economicamente mais poderosos frente às decisões autônomas de nossos povos. Uma democracia que valorize os recursos próprios de cada povo e, é claro, sua autonomia.

De uma forma ou de outra, a construção de uma democracia que não se baseie em um sistema ou modelo econômico extrativista como o que temos. Acreditamos que a democracia não é só o processo eleitoral ou ter a possibilidade de escolher representantes de tempos em tempos. A lógica da democratização, que é um conceito muito mais relevante e profundo, tem a ver com a construção de um novo modelo de sociedade.

Acreditamos que o feminismo pode fazer uma enorme contribuição. Porque o feminismo é um projeto democratizador em si mesmo, que tem diferentes perspectivas e busca eliminar todas as lógicas de dominação. O machismo é a expressão mais pura e dura do patriarcado. E o patriarcado teve um papel extremamente danoso em nossas sociedades.

No Chile, vocês aprovaram recentemente a proposta de redução de 45 para 40 horas de trabalho semanal - uma bandeira muito importante para a geração de vocês, que ocupa agora o Parlamento e o governo do Boric. É prevista inclusive duas horas de flexibilidade para mães e pais na proposta. A Internacional Feminista vai defender essa bandeira em nível continental?

Infelizmente nossas sociedades, sob a lógica da exploração implementada pelo capitalismo e, é claro, sua expressão neoliberal, geraram uma estrutura em que trabalhadores e trabalhadoras não trabalham para viver, pelo contrário, vivem para trabalhar.

Essa é uma realidade que precisa ser confrontada, precisamente como parte da busca por uma melhor qualidade de vida, para melhorar as condições de vida de trabalhadores e trabalhadoras e também, particularmente, das mulheres. As mulheres fazem dupla jornada.

Fazemos a jornada de trabalho remunerada e a jornada de trabalho não remunerada, no trabalho doméstico e de cuidados. E isso não é menor quando consideramos o que significa a redução da jornada como possibilidade de ter mais tempo livre, em primeiro lugar, tempo para dedicar ao que cada um e cada uma quiser, mas também mais tempo de cuidado das crianças, de acompanhamento ao processo de formação delas.

Esperamos, obviamente, que essas medidas sejam replicadas em todos os lugares possíveis. Há muitos países da América Latina que ainda não têm redução de jornada, há muitos anos, que trabalham muito mais do que 40 horas e, com certeza, é uma medida digna de ser replicada.

Foi muito comemorada pela Internacional Feminista, aliás, minhas companheiras da organização do mundo todo me escreveram, estavam muito felizes, comemoraram a medida.

Essa é também uma reivindicação que deve ser colocada no centro da mesa entre as lutas que, como Internacional Feminista, decidimos levar adiante. 

Edição: Thales Schmidt