O meio do futebol odeia as mulheres e todo e qualquer ser que ameace essa ordem estabelecida
*Luiz Ferreira
Cuca é um grande treinador. Daqueles vencedores, de leitura tática apurada e que conseguem montar bons times e fazê-los competir em altíssimo nível. Também é devoto de Nossa Senhora, como já demonstrou mais de uma vez.
No entanto, as qualidades de Cuca à beira do gramado não estão em discussão neste momento. É algo muito mais grave e que tem relação com um passado sombrio que o agora técnico do Corinthians apenas afirmou “ter vaga lembrança” durante sua apresentação oficial na última sexta-feira (21).
Deixo claro o aviso de que os próximos parágrafos vão tratar de temas sensíveis e que podem despertar gatilhos. A história é a seguinte.
Em julho de 1987, o Grêmio desembarcava em Berna (capital da Suíça), para a primeira parada de uma excursão pela Europa. Nessa época, Cuca era jogador do Tricolor Gaúcho e depois da vitória sobre o Benfica, ele, o goleiro Eduardo, o zagueiro Henrique e o atacante Fernando encontraram uma menina de 13 anos e mais dois amigos que haviam entrado na concentração gremista em busca de camisas e alguns souvenirs da equipe. Os atletas disseram que dariam os presentes, mas apenas no quarto.
Quando chegaram ao quarto, os jogadores demonstraram que não queriam saber de dar a prometida camiseta do Grêmio e começaram a assediar diretamente a criança. Segundo os relatos das testemunhas, davam beijos faziam carícias. Os dois rapazes que acompanhavam a menina foram expulsos e um deles chegou a ver os atletas a jogando na cama antes da porta ser trancada.
Os dois saem desesperadamente em busca de ajuda, mas acabaram ignorados. Meia hora depois, a porta do quarto é aberta e a menina sai vestindo calça e camisa do Grêmio, visivelmente abalada e desorientada. Ela relata o que houve para os amigos e vai para a delegacia. Na mesma noite, Cuca, Eduardo, Fernando e Henrique foram presos.
No primeiro interrogatório, os quatro negaram todas as acusações. Dias depois, com a exceção de Fernando, os jogadores assumiram a relação, mas disseram que houve consentimento da menina.
Todos permaneceram presos e incomunicáveis por um mês em Berna, mas foram liberados depois de um acordo mediado pelo Itamaraty.
Com isso, os atletas puderam retornar ao Brasil e responder o processo em liberdade. Aqui no Brasil, os jogadores foram recebidos como “heróis” enquanto a imprensa esportiva da época classificava a violência sexual como “travessura”. Até mesmo as namoradas e esposas dos quatro insinuavam que a vítima é que teria sido culpada pelo estupro. A menina, por sua vez, desenvolveu graves transtornos mentais depois do ocorrido e tentou o suicídio em 1988.
Mas a justiça suíça seguiu com o processo mesmo sem a presença dos acusados. Em 1989, dois anos depois do ocorrido, Cuca, Henrique e Eduardo foram condenados a 15 meses de prisão mais pagamento de multa. Já Fernando foi condenado a três meses de prisão mais pagamento de multa por ter sido considerado cúmplice do ato de violência sexual. Como os quatro já estavam no Brasil na época da sentença e não podiam ser extraditados para a Suíça por força da nossa legislação, nenhum deles cumpriu a pena. Quinze anos depois, a pena prescreveu.
As informações relatadas acima foram publicadas pelo jornal suíço “Der Bund” no dia 16 de agosto de 1989, um dia depois do anúncio da sentença. Aqui no Brasil, esse caso voltou a ser comentado na época em que Cuca estava no Santos e defendeu a contratação de Robinho em 2020. Nesse mesmo ano, o jogador havia sido condenado em primeira instância por crime de violência sexual na Itália.
Cuca já deu duas versões sobre o caso.
Primeiro disse ter ficado com “a impressão de ela [a vítima] tinha 18 anos”, fato que foi usado como argumento da defesa. Depois, passou a negar veementemente o crime chegando a dizer que houve apenas um “ato sexual a vulnerável”. Vale lembrar que, ao contrário do que o agora treinador do Corinthians diz, o caso teve acompanhamento do departamento jurídico do Grêmio.
Independente do que se fala nas redes sociais e na imprensa, é fato que Cuca teve sim relação com a menina de 13 anos, que usou o direito constitucional de não extradição de um cidadão brasileiro por parte do governo e que nunca cumpriu a pena que recebeu. O processo segue em segredo de justiça até hoje e o que se tem é o apresentado no tribunal, testemunhos e as provas periciais. Exatamente como noticiado pelo “Der Bund” no dia 16 de agosto de 1989.
Na sua apresentação no Corinthians, Cuca afirmou que “respeitou e respeita todas as mulheres” e que “nunca encostou o dedo indevidamente em uma mulher”. A fala, no entanto, teve ares de ato falho quando o treinador simplesmente esqueceu qual era a hastag “Respeita as Minas” usada pelo Timão foi lembrado por alguém que estava na sala de imprensa acompanhando a entrevista coletiva.
É difícil imaginar qualquer outra reação que não fosse a rejeição quase que completa de boa parte da torcida. Ainda mais sabendo do engajamento do clube em causas sociais desde a “Democracia Corintiana” no início dos anos 1980, a campanha pelas Diretas e o trabalho realizado com o time feminino, talvez o mais vitorioso do continente.
Aliás, vale lembrar que todas as jogadoras e comissão técnica (incluindo o técnico Arthur Elias) se manifestaram no minuto número 87 da derrota por três um do Corinthians para o Goiás neste domingo (23) contra a chegada de Cuca com o seguinte texto publicado nas suas redes sociais:
“Estar em um clube democrático significa que podemos usar a nossa voz, por vezes de forma pública, por vezes nos bastidores. ‘Respeita as Minas’ não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado. Ser Corinthians significa viver e lutar por direitos todos os dias.”
Infelizmente, o futebol nos traz o melhor e o pior de uma sociedade. E esse caso é um bom exemplo disso.
Muita gente protestou contra a chegada de Cuca ao Corinthians por entender que a atitude da diretoria joga no lixo todos os valores defendidos pelo clube. Mas teve muita gente passando pano, apontando o trabalho do treinador em emissoras de TV e em outros clubes. Até mesmo dizendo que “só se fala disso porque Cuca acertou com o Corinthians”. Teve gente pedindo o fim do time feminino por conta do posicionamento claro mencionado anteriormente.
A vida me mostrou muita coisa. Uma delas foi admirar e valorizar quem tem forças para admitir um erro (por mais terrível que seja), mudar de atitude e fazer de tudo para que ele não se repita. Se tornar exemplo de mudança total de caráter, de virada de chave e de conduta, sabe? E com toda a sinceridade da minha alma, eu gostaria muito de ver Cuca (do alto dos seus quase 60 anos como o mesmo disse) admitindo o erro. “Assumindo o BO” de verdade e buscando melhorar, compensar de algum jeito o crime cometido em 1987. Seja servindo de porta-voz para campanhas e abordando o assunto. Mas sempre admitindo que errou.
No entanto, o que se viu na sua apresentação oficial no Corinthians é mais um pouco da atmosfera hostil do futebol. Aquela que se admite que se contrate profissionais envolvidos em casos hediondos desde que as vitórias, gols e títulos apareçam.
É muito difícil admitir isso. Mas o meio do futebol odeia as mulheres e todo e qualquer ser que ameace essa ordem estabelecida.
Sobre a diretoria do Corinthians, fica difícil entender qual é o nexo dessa escolha e quem achou que seria uma “ótima ideia” trazer um técnico com um passado desses para um clube completamente envolvido em causas sociais. É algo que vai contra o bom senso.
Na prática, os dirigentes conseguiram piorar uns 2000% todo o clima que já estava bem ruim depois da saída de Fernando Lázaro da equipe. Fora que a escolha por Cuca (principalmente por negar seu envolvimento no caso de 1987 apesar de todas as provas já conhecidas do público) é um verdadeiro tapa na cara de quem se orgulhava do engajamento do Corinthians nas causas sociais, de quem se orgulhava disso.
Infelizmente, é bem possível que todos os detalhes revelados nos últimos dias sejam varridos pra debaixo do tapete caso do Corinthians conquiste três vitórias seguidas e recupere a boa fase dentro de campo.
A verdade, meus amigos, é que o brasileiro não gosta de futebol. O brasileiro não gosta de esporte. O brasileiro gosta é de ganhar. E que se danem os meios pra se chegar às vitórias.
Ninguém quer que Cuca seja condenado à morte ou à prisão perpétua. A justiça seguiu seu caminho e a pena já prescreveu. O que a gente quer é um mínimo de humanidade e de empatia diante de um caso hediondo ocorrido em 1987 e que até agora não foi explicado totalmente.
Admitir a culpa e “assumir o BO” seria um ótimo início para a redenção de Cuca. Só que ele prefere se agarrar ao discurso do “não tive nada a ver com isso” mesmo com as provas e relatos dizendo exatamente o contrário.
Não chega a surpreender. Mas não deixa de ser decepcionante.
*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse