No final das contas, o objetivo é de novo ganhar dinheiro com compartilhamento dos nossos dados
*Luiz Ferreira
Nós vivemos numa sociedade completamente conectada. E eu não estou falando apenas das redes sociais. Hoje em dia, é muito fácil achar nossos dados vagando por aí no sistema de alguma farmácia, de alguma loja de roupas ou de alguma casa de shows. E essa tendência chegou ao mundo dos esportes meio que de maneira despercebida há alguns meses.
Não são poucas as arenas que possuem algum tipo de sistema de reconhecimento facial. Aqui no Brasil, o Palmeiras já exige o cadastro do rosto de cada torcedor para ingressar no Alllianz Parque e a ideia começa a ganhar defensores em outros estados. Quem mora no Rio de Janeiro, por exemplo, já viu a polícia prender criminosos procurados por meio desse sistema nos jogos realizados nos finais de semana. Principalmente no Maracanã.
Os defensores do reconhecimento facial argumentam que será muito mais fácil identificar possíveis brigões e coibir a violência, já que será muito fácil saber quem estava dentro do estádio num determinado jogo e/ou evento. Ao mesmo tempo, o cambismo seria praticamente extinto. Como todos os torcedores seriam obrigados a usar seus dados biométricos para acessar as arenas, se torna impossível comprar a entrada e repassá-la para outra pessoa.
A grande questão do uso do reconhecimento facial nas arenas esportivas nem é a segurança.
Afinal de contas, eu e você sabemos que existem maneiras muito mais simples e muito mais baratas de se combater a violência dentro e fora dos estádios e também de se coibir a prática dos cambistas. A “pergunta de um milhão de dólares” tem a ver com a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709), aprovada em 14 de agosto de 2018. Dados biométricos são considerados dados sensíveis e estão protegidos pela LGPD. E é aí que começa todo o problema.
De acordo com a legislação, cada instituição precisa deixar bem claro por que está pedindo meus dados (no caso do reconhecimento facial, o cadastro do meu rosto), o que exatamente vai fazer com eles, quais serão as consequências que eu vou ter se eu me recusar a cedê-los (sim, eu posso fazer isso) e quem será o “tutor” de todas as informações que eu vou ceder para esta instituição. Como não sou advogado, vou usar exemplos mais práticos de consumidor de esportes que sou. Assim como todos vocês que estão lendo essa humilde coluna.
Como amante de esportes, eu tenho cadastro num determinado serviço de streaming que transmite os jogos que quero ver. De vez em quando, na página inicial do site em questão, aparece uma janela perguntando se eu quero receber ofertas, promoções e outras coisas e sempre clico no “não” e salvo as informações. O tal site já tem o número dos meus documentos, meu número de cartão de crédito e outros dados para me prestar o serviço. Se eu me recusar a ceder qualquer uma dessas informações, não terei o serviço. Parece simples, mas o buraco é um pouco mais embaixo.
Esse mesmo serviço de streaming me envia e-mails todos os dias com bobagens de todo tipo e ainda usa o número do meu celular cadastrado para me fazer ligações oferecendo as mesmas ofertas e promoções que eu já disse que não queria receber quando acesso a página inicial do site. Ou seja, de nada adiantou eu preencher um formulário, visto que meus dados foram usados de maneira indevida.
O que muita gente se esquece quando se fala em reconhecimento facial é que 99,99% das empresas que possuem nossos dados cadastrados vão usar isso para oferecer produtos de todo tipo. No caso das arenas esportivas, isso seria usado para ter um histórico dos torcedores que vão aos jogos, seus hábitos de consumo e traçar perfis para promoções futuras.
Sim, meus amigos, tudo tem a ver com dinheiro.
O Palmeiras tem uma página de perguntas e respostas sobre o sistema de reconhecimento facial no seu site, mas não deixa claro como trata os dados biométricos dos torcedores. Apenas garante que observa a Lei Geral de Proteção de Dados e deixa um endereço de e-mail para dúvidas adicionais. Tudo aquilo que a LGPD diz que não deve ser feito.
Na prática, é o relacionamento entre empresa e consumidor baseado no “confia que vai dar certo”. Ou vocês acham mesmo que esses perfis não serão massivamente monetizados? Imagine ter toda sua experiência como torcedor pausterizada no meio de uma série de produtos, como se fosse uma daquelas cenas de novela com merchandising no meio do diálogo. Algo frio, sem sentido e completamente contrário a tudo que o esporte nos proporciona.
Eu já falei aqui nesta coluna mais de uma vez que o futebol corre o sério risco de se transformar em “linha de show”. E a desculpa do aumento da segurança nos estádios para a utilização do sistema de reconhecimento facial segue essa linha.
Imagine que você está com o nome sujo na praça e que o Palmeiras ou qualquer outro clube seja pressionado a fornecer seus dados biométricos para uma financeira que deseja cobrar a sua dívida.
E eu nem preciso lembrar que o reconhecimento facial já foi responsável por identificações equivocadas de criminosos apenas pela cor da pele (aqui mesmo no Rio de Janeiro) e até em deportação de imigrantes (no caso dos Estados Unidos).
Esporte também é entretenimento e vende muito.
O que tem de gente que vive disso direta e indiretamente é uma enormidade. Mas o que não se pode fazer é pausterizar tudo em nome de uma “segurança” que deveria ser fornecida pelas autoridades e não pelos clubes que cansam de se fazer de vítimas quando são inquiridos pelas autoridades desportivas para identificar os brigões, os racistas, os homofóbicos e os misóginos.
Por outro lado, confesso que seria engraçadíssimo ver todo um setor de um Allianz Parque ou de um Maracanã sendo processado criminalmente por um cântico homofóbico ou racista. Se existe o reconhecimento facial, é fácil identificar quem estava no setor e participou de tudo, não é?
Mesmo assim, esse Big Brother que querem levantar no meio das arenas esportivas é preocupante. E a única certeza que eu tenho nisso tudo é que ninguém está pensando em segurança ou melhora da experiência dentro dos estádios. O objetivo é ganhar dinheiro em cima dos nossos dados. Nada além disso.
*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse