Isaías, de 11 anos, não anda, não fala e é carregado no colo pelo pai, que esculpiu em madeira uma poltrona para suprir a falta de cadeira de rodas. Os irmãos Hélio, 12, Vandir, 8, e Juliana, 5, também não andam, nem falam. Seus braços e pernas são atrofiados, e os joelhos estão inchados e com arranhões de tanto se arrastarem no chão.
Médicos, agentes de saúde e familiares buscam há anos explicação para um fenômeno que faz das aldeias habitadas pelos indígenas do povo Munduruku, na divisa entre Pará e Mato Grosso, as que mais solicitam cadeira de rodas na comparação com outras terras indígenas. Além de crianças nascidas com malformações e atrasos no desenvolvimento, adultos estão cegos e relatam tremores e fraqueza.
A principal suspeita é que eles estejam sofrendo as consequências da contaminação pelo mercúrio. Com população estimada em 14 mil pessoas, os Munduruku vivem em um território invadido ilegalmente pelo garimpo de ouro desde a década de 1980. A sanha pelo minério explodiu a partir de 2016 e não encontrou resistência do governo federal na gestão de Jair Bolsonaro. Com isso, aumentou também o consumo de mercúrio, que é usado para separar o ouro de impurezas, mas descartado sem qualquer preocupação ambiental.
“A cabeça das crianças está ficando mole e as mãos assim [retorcidas]”, afirma o cacique José Edilson Akay, da aldeia Nova Trairão, dobrando os dedos da mão direita. “Cabeça mole é criança doente por mercúrio. A gente fica com medo”, explica outro cacique, Luciano Saw, da aldeia Patawazal.
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A contaminação por mercúrio ocorre principalmente pelo consumo de peixes, base da alimentação do povo Munduruku. O metal é despejado em rios e no solo pelo garimpo, ou então é queimado e evaporado durante o processo de separação do ouro, retornando por meio de chuvas. Nas mulheres grávidas, o mercúrio ultrapassa a placenta e contamina o feto em desenvolvimento até sete vezes mais do que as outras pessoas, causando danos irreversíveis.
“Por que esse fenômeno está acontecendo com tanta intensidade e frequência aqui na região do rio Tapajós?”, questiona o médico e pesquisador da Fiocruz Paulo Basta. “Está mais evidente do que nunca que a presença do garimpo no território tem provocado alterações importantes na saúde da população”, diz ele, que coordena um estudo sobre os efeitos do mercúrio em mulheres Munduruku grávidas e em seus filhos. A equipe vai monitorar gestantes e bebês por três anos, acompanhando ao todo 250 recém-nascidos de dez aldeias diferentes.
O tempo dos Munduruku, contudo, é mais urgente que o tempo da ciência. Eles não podem esperar enquanto suas crianças adoecem com a exploração de ouro. O território é o segundo mais afetado pelo garimpo ilegal no Brasil, atrás apenas da Terra Indígena Kayapó e à frente do território Yanomami.
A Repórter Brasil recebeu autorização de lideranças Munduruku, durante encontro da Associação de Mulheres Wakaborun, em março, para visitar cinco aldeias do Alto Tapajós e entrevistar indígenas adoecidos e seus familiares. O nome das crianças foi alterado para preservar suas identidades.
Por uma semana, a reportagem percorreu os rios Kabitutu, Kadiriri e Tapajós acompanhada de caciques e guerreiros do povo Munduruku – ameaçados de morte pelos garimpeiros por resistirem à exploração. A cada desembarque, chamou atenção o número de pessoas com problemas motoras ou neurológicas em pequenas aldeias, como Karo Muybu, Jardim Kaburuá, Curimã, Pombal e Saw Bimuybu.
“É a primeira vez que uma equipe de reportagem vem aqui”, disse o agente indígena de saúde Amarildo Kaba, da aldeia Jardim Kaburuá. O próprio Amarildo sente dores que se assemelham às características da contaminação por mercúrio. “Muita cãibra nas pernas, fui ficando sem força, passou um tempo comecei a amolecer. Não descobri o que é até hoje”.
Os sintomas são semelhantes aos narrados por Josiel Poxo a respeito do filho, Diogo Poxo, 8 anos. “Ele começou a chorar e não levantou mais. Ficava contraindo as mãos e a perna foi afinando. Não conseguia brincar”, recorda o pai. O menino chegou a ficar três meses deitado o dia inteiro, mas voltou a andar. “Só que ele não consegue escrever na escola e não consegue falar. Hoje, ele até brinca, mas cai”, descreve Josiel.
Na mesma aldeia, Rosita Tawe diz que o filho, Daniel Karo, de 5 anos, não fala nada. “Tem alguma coisa na garganta que deixa ele assim”. O menino já foi atendido por um médico, mas a mãe não sabe o que provoca a mudez.
As traduções das entrevistas são feitas pelas jovens de coletivos audiovisuais Wakabourun e Daok, de diferentes regiões da Mundurukânia – como eles se referem ao território formado pelas Terras Indígenas (TIs) Sai Cinza, Munduruku, Sawre Muybu, Sawre Bap´in. Praia do Índio e Praia do Mangue no vale do rio Tapajós, que se estende do norte do Mato Grosso ao Pará.
As jovens são o braço armado – com câmeras, celulares e drones – da resistência ao garimpo. Estão produzindo um documentário sobre a contaminação por mercúrio cujo título é “Awaydip Tip Imutaxipi”, ou “A floresta doente”, em português. Não há síntese melhor.
Problema antigo
Uma profissional da saúde indígena que trabalha com a etnia, e pede para não ser identificada, relata que as equipes perceberam o aumento do número de crianças com problemas neuromotores em 2009. “Acompanhei uma paciente grávida em um território com grande concentração de atividade garimpeira. A filha dela nasceu e já veio a óbito, com características similares à doença de Minamata”, conta.
Ela se refere à enfermidade causada pela contaminação por mercúrio, e que remete ao Desastre de Minamata, cidade do Japão onde cerca de 20 mil pessoas foram contaminadas após o descarte irregular de centenas de toneladas de metilmercúrio a partir de 1930. O desastre levou à promulgação da Convenção de Minamata, em 2018, da qual o Brasil é signatário e que tem o objetivo de proteger a saúde humana e o meio ambiente.
Outro estudo da Fiocruz, em parceria com a WWF, já revelou indígenas Munduruku e peixes da região contaminados por mercúrio acima dos limites tolerados. A pesquisa mostrou também que a contaminação é maior em áreas mais impactadas pelo garimpo.
Segundo a profissional de saúde, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós, no qual se incluem as terras Munduruku, é recordista em solicitação de cadeiras de rodas, sendo a maioria delas destinadas a crianças nascidas com malformação cerebral. “Em 2012 nós solicitamos cerca de 80 cadeiras de rodas. Mas várias daquelas crianças já vieram a óbito”, afirma. No ano passado, foram outras 63. Procurado, o Ministério da Saúde não comentou os dados.
Mas para Isaías Oyoy a cadeira não chegou. Aos 11 anos, ele é o único dos seis filhos de Valdenilson Oyoy que nasceu com malformação congênita. Ele tomava banho no rio Tapajós quando a reportagem atracou a voadeira na aldeia Pombal. Para sair da água, Isaías estende os braços em direção ao pai, que o carrega no colo. Sem a cadeira de rodas, o jeito foi o pai fazer uma cadeira de madeira adaptada para ajudar na sustentação do filho.
Na aldeia Curimã, Clebentino Poxo e Dulcinéia Saw têm quatro filhos. Três apresentam malformações congênitas, não andam nem falam. Juliana, 5, tem dificuldade para sustentar o pescoço. Vandir, 8, tem os dedos da mão contraídos e Hélio, 12, os pés atrofiados.
Sem cadeiras de rodas também, eles rastejam no chão quando não podem ser carregados pelos pais ou pelo irmão, Gabriel, de 10 anos, que é cego de um olho. Os pais não sabem o que provocou a doença nos filhos. “Também não sei se eles sentem dores, pois não conseguem falar”. O nome da aldeia, Curimã, é o nome que eles dão a um garimpo desativado.
“Isso é provocado pelo mercúrio. Não adianta esconder”, afirma o chefe dos guerreiros Munduruku, Bruno Kaba, que nos acompanha durante a entrevista, apontando para as crianças sentadas em um banco.
Cegueiras, tremores e fraqueza
Na primeira aldeia que visitamos, Karo Muybu, nas margens do rio Tapajós, os moradores reclamam que as crianças sentem coceira no corpo depois que tomam banho no igarapé, contaminado pelos rejeitos de um garimpo próximo. Duas irmãs, Margarete e Olivia Karo, de 48 e 40 anos, perderam a visão no final da infância. “Comecei a sentir dor e parecia que tinha um óleo de cozinha no olho”, conta Margarete. Elas já foram atendidas por médicos e fizeram exames em Jacareacanga, mas nunca souberam o motivo que as deixou cegas.
Nos adultos, o mercúrio se deposita principalmente no lóbulo occipital, localizado na parte posterior da cabeça, responsável pela visão, explica Paulo Basta, da Fiocruz. O médico é entrevistado em Itaituba, a quase 500 km da aldeia, onde a Fiocruz realizava um treinamento com agentes de saúde indígenas sobre os efeitos do mercúrio à saúde.
Uma vez nos rios, o metal é transformado em metilmercúrio, que é ainda mais tóxico e entra na cadeia alimentar de todos os seres das águas. Os peixes grandes que se alimentam dos pequenos acumulam quantidade maior da substância. No corpo, o alvo predileto do metilmercúrio é o sistema nervoso central. Além de afetar a visão, pode causar dor de cabeça crônica, tremores, zumbidos nos ouvidos e um gosto metálico na boca, explica Basta. As pessoas contaminadas podem ter dificuldade de subir uma escada ou fazer caminhadas, pois perdem a força nos pés e nas mãos.
Luiza Kirixi, de 26 anos, não consegue segurar o choro ao contar como perdeu a força das pernas e dos braços. A fraqueza começou há quatro anos, quando ela carregava um saco de mandioca em direção à casa de farinha da aldeia e caiu. A dor começou em uma perna, tomou conta da outra e agora afeta as mãos, que ficam retorcidas. “Tem dia que não consigo levantar da rede. Meu marido precisa me ajudar”, lamenta. “Eu já senti tanta dor que pensei que fosse o fim, que ia deixar meu marido e os filhos”. diz, chorando.
Um médico lhe disse que seu problema é reumatismo, mas o marido, Creudiano Saw, de 29 anos, não acredita: “Quando as pessoas adoecem assim, ou é malária ou é mercúrio”. O casal tem quatro filhos e mora em uma aldeia nova, a Saw Bimuybu, com outras seis famílias nas margens do Tapajós.
Sintomas parecidos acometem Genilson Karo, de 19 anos, na aldeia Jardim Kaburuá, Ele só foi uma vez ao médico, mas não descobriu o que tinha, segundo a mãe, Madalena Cogo. “Ele era mole e não sentava. Eu dei banhos com remédio de raiz de cipó e hoje ele consegue sentar”, conta.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que está desenvolvendo a vigilância de populações expostas ao mercúrio, a fim de atender a convenção de Minamata, mas não deu detalhes sobre a ação. A pasta disse ainda que reforçou as equipes dos 34 distritos sanitários indígenas com 117 médicos, sendo 4 para o DSEI Rio Tapajós (veja o posicionamento). A Funai informou que prevê ações de combate para retirar os garimpeiros das terras dos Munduruku, mas não pode detalhar por se tratar de informações sensíveis e dados de inteligência (veja os posicionamentos).
Quem está à frente do combate ao mercúrio é a Fiocruz, instituição ligada ao Ministério da Saúde. No início do mês, a equipe de Basta entregou à Saúde um plano de erradicação da contaminação por mercúrio. A proposta, elaborada em parceria com a Defensoria Pública da União e o WWF-Brasil, será debatida pela pasta em um grupo de trabalho que estuda ações para a Amazônia.
Resistência ao garimpo
No trajeto para a aldeia Jardim Kaburua, passando pelo rio Kabitutu, uma placa com valores cobrados de garimpeiros chama a atenção. Passar com balsa carregando escavadeira custa R$ 6.000. Já a voadeira transportando passageiros sai por R$ 150 e, com combustível, R$ 200. O pedágio improvisado é um indício da permissividade de parte dos Munduruku com o garimpo. Recebem dinheiro, mesmo pagando um preço alto que ameaça o futuro da etnia, tendo as crianças como principais vítimas.
Mas se há conivência, a resistência é gigante. E é assim mesmo que eles se denominam: “A resistência”. Pelo menos 18 Munduruku são ameaçados de morte e estão em programas de proteção por não aceitarem a invasão do território. São caciques, guerreiros e, sobretudo, mulheres, que se organizam, denunciam e tentam convencer seus parentes a resistir à tentação do dinheiro de garimpo.
Maria Leusa Kaba Munduruku é uma delas e paga um preço alto. Ela e sua mãe tiveram a casa queimada por garimpeiros, em retaliação após uma operação da Polícia Federal contra o garimpo há dois anos. Antes, a sede da associação que ela coordena, a Wakaborun, havia sido depredada e queimada na área urbana de Jacareacanga. “Quem resiste perde a liberdade. Eles tentam nos matar, mas a gente se mantém firme”, diz. Depois dos ataques, a resistência conquistou mais apoio, reconstruiu a sede da associação na aldeia Novo Trairão e cobra do governo atual ação ostensiva no território.
Para Leusa, são necessárias presença constante da Polícia Federal em Jacareacanga e frentes de proteção espalhadas por todas as terras indígenas onde vivem os Munduruku. Ela pede também que não sejam realizadas somente ações pontuais. “Isso apenas provoca os nossos inimigos a nos matar e queimar nossas casas”, avalia ela, que sente medo: “Morrer na luta não é feio, mas eu preciso ficar viva, pois a luta é longa”.
Mesmo com a mudança de governo, Leusa ressalta que a violência continua, assim como a invasão dos garimpeiros. “O povo continua doente dentro do território”. Ela tem um sobrinho de 4 anos que não anda e não fala. Sem diagnóstico, suspeita-se que seja mais uma vítima do mercúrio de garimpo. “Eu sou mãe e avó e preciso continuar, pois o que está em jogo é o futuro dos meus filhos e netos. Um futuro sem ganância e sem doença”.