Trocar refrigerantes e salsichas por frutas e espécies de pescados locais na merenda escolar, melhorando a qualidade da alimentação para crianças e envolvendo a comunidade no ciclo virtuoso da economia, é uma realidade que ganhou impulso com o reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escola (/PNAE).
Uma pesquisa realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) analisou treze iniciativas em oito estados, em todas as regiões do Brasil, que mostram mudanças positivas nos hábitos alimentares de estudantes quando alimentos locais entraram na merenda escolar, entre 2019 e 2021, e a importância dessa aquisição também para a qualidade de vida no entorno das escolas, ao gerar renda e autonomia para diversas comunidades.
A pesquisa “Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade: Agroecologia e Alimentação Escolar” será apresentada no seminário “O Programa Nacional de Alimentação Escolar: Olhares a partir da Agricultura Familiar e Agroecologia no Brasil”, que acontece entre esta terça (11) e quarta-feira (12) na Universidade Federal de Viçosa, com transmissão online.
As experiências de aquisição de alimentos agroecológicos e da agricultura familiar na alimentação escolar são analisadas com foco nos temas que formam sua cadeia, como manejo de agroecossistemas, economia solidária, cooperativismo, educação e construção do conhecimento e protagonismo das mulheres, que estão disponíveis para consulta na plataforma digital Agroecologia em Rede
A pesquisa foi realizada em 12 cidades de oito estados: Morros (MA), São João das Missões, Manhaçu, Belo Horizonte (MG), Paraty (RJ), Ubatuba (SP), Remanso (BA), São José do Egito (PE), Mirassol d’Oeste e Pontes e Lacerda/Cuiabá (MT) e São João do Triunfo (PR):
Remanso (BA): Um grupo de pescadoras artesanais introduziu na merenda escolar espécies de peixes como pescada, tilápia, tucunaré e cari sob a forma de filé, mas também preparadas, com prazo maior de validade, como conserva (peixe cozido em molho de tomate), linguiça, almôndega e hambúrguer de pescado. Além de introduzir essas espécies no cardápio, a ação da Associação de Pescadores e Pescadoras de Remanso (APPR) proporcionou 0 aumento da variedade nutricional e estimulou a estruturação e o fortalecimento das ações deste grupo de mulheres, além de valorizar a identidade cultural e alimentar local.
São João das Missões (MG): No semiárido mineiro, a Terra Indígena Xakriabá, com apoio do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM, proporcionou a substituição dos refrigerantes por polpas de sucos de frutas nativas.
Manhaçu e Belo Horizonte (MG): Agricultores familiares de municípios localizados nas regiões de Matas de Minas e no Vale do Rio Doce, se uniram, em 2006, para criar a Cooperativa Regional Indústria e Comércio de Produtos Agrícolas do Povo que Luta (Coorpol), que atende 78 escolas de cidades como Manhaçu, oferecendo uma grande diversidade de alimentos como alface, cenoura, chuchu, couve, feijão, fubá, doces e panificados.
Em 2019, começaram a vender café também para o PNAE em Belo Horizonte. A venda para o PNAE gerou maior autonomia para as mulheres; a entrada de receita para a cooperativa; o fortalecimento da agricultura familiar na região e a melhoria na qualidade de vida da comunidade.
São José do Egito (PE): A Associação de Apicultores e Meliponicultores Orgânicos do Alto Pajeú (APOMEL) fez sua primeira venda para o PNAE em 2010, e, em 2020, passou a atender cerca de 20 escolas. O PNAE foi a porta de entrada ao mercado institucional contribuindo para o planejamento da produção e da comercialização para inserção nas feiras agroecológicas e construção do PAA estadual e tem servido como exemplo para outros municípios da região do Pajeú.
São João do Triunfo (PR): Aqui, o destaque é a diversidade de alimentos, com a inclusão no cardápio escolar de 67 gêneros alimentícios orgânicos oriundos da agricultura familiar, totalizando cerca de 50 toneladas. A Cooperativa Mista Triunfense dos Agricultores e Agricultoras Familiares (COAFTRIL) foi criada em 2016, na região e até o final de 2020, atendia 15 escolas, envolvendo cerca de 60 agricultoras e agricultores familiares, com a participação crescente de mulheres e forte protagonismo de agricultoras jovens.
Patizal, Morros (MA): A Associação de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Povoado Patizal, no município maranhense de Morros é formada predominantemente por mulheres e acessa o PNAE desde 2017. Já em 2019, o município comprava 40% da agricultura familiar, sendo 100% de agricultoras/es do próprio município, em sua ampla maioria (90%) assentadas/os da reforma agrária com produção agroecológica. O cardápio da alimentação escolar conta com mais de 40 produtos como murici, acerola, vinagreira, macaxeira e cará.
Mirinzal, Morros (MA): De forma similar à experiência de Patizal, a Associação dos Moradores e Pequenos Produtores Rurais do Povoado Mirinzal também está localizada no Assentamento Rio Pirangi, no município de Morros. tem aproximadamente 25 assentadas/os da reforma agrária e comercializa para as escolas municipais pelo PNAE desde 2012, fornecendo produtos como farinha de mandioca, milho verde, maxixe, batata-doce e frutas como melancia, caju e mamão.
O projeto de PNAE da associação destina 5% do seu valor anual para cobrir despesas de contabilidade, contribuindo para a regularidade fiscal e documental. O PNAE contribuiu para o planejamento das atividades agrícolas, incluindo a diversificação dos cultivos nos quintais e o beneficiamento de produtos, com reinvestimento em atividades produtivas (equipamentos, embalagens); geração ou incremento de renda para as famílias, em especial aquelas sob controle das mulheres, que são maioria na venda para o PNAE.
Mirassol d’Oeste e Cuiabá (MT): A Associação Regional de Produtores Agroecológicos (ARPA) fornece alimentação diversificada, com frutas, legumes, verduras e polpas de fruta para 73 escolas de Cuiabá, com entrega coletiva.
Pontes e Lacerda (MT): O Centro de Tecnologia Alternativa (CTA), associação para o abastecimento de escolas com produtos como frutas, farinha de mandioca, pães e biscoitos enriquecidos com farinha de babaçu, pequi e cumbaru, teve um aumento de cerca de 40% na renda da associação. Essas experiências abriram um novo mercado, como a entrega de cestas para consumidores solidários em Cuiabá, aproveitando os meios de transporte usados para a entrega dos alimentos nas escolas, criando a Rota de Comercialização Caminhos da Agroecologia
Ubatuba (SP): A Associação dos Bananicultores de Ubatumirim (ABU) foi criada nos anos 1980, hoje é formada por cerca de seis famílias e desde 2014 fornece seus produtos às escolas da rede municipal. É formalizada como Organização de Controle Social (OCS) e é a única organização coletiva e agroecológica de Ubatuba que abastece o Programa.
Paraty (RJ): A Associação de Moradores do Quilombo do Campinho da Independência (AMOQC) reúne uma comunidade quilombola originária de três negras ex-escravizadas: Avó Antonica, Tia Marcelina e Tia Maria Luiza. Foi o primeiro quilombo titulado do Rio de Janeiro, em 1999, com área total de 287 hectares, onde vivem cerca de 150 famílias. Em 2020, três famílias passaram a fornecer alimentos para a rede municipal por meio do PNAE, contribuindo com sua experiência organizativa e de luta para o fortalecimento da organização das famílias agricultoras em outras iniciativas que envolvem agricultura familiar na cidade.
A Associação Agroecológica de Produtores Orgânicos de Paraty (AAPOP) foi criada em 2013 e conta com cerca de oito famílias que comercializam para o PNAE desde 2014. Graças a esse processo, a associação se organizou para se tornar uma OCS, possibilitando a venda de seus produtos como orgânicos para o PNAE e possuem um box no mercado do produtor rural de Paraty.
Outras conclusões
A pesquisa possibilitou identificar também a organização de grupos produtivos e o diálogo da sociedade civil organizada com gestores públicos. Segundo Morgana Maselli, integrante da Secretaria Executiva da ANA e do Grupo de Trabalho (GT) de Metodologia da pesquisa-ação, a iniciativa analisou como as experiências de aquisição e fornecimento de alimentos da agricultura familiar para o PNAE podem fomentar a agroecologia nos territórios e promover processos organizativos, além de incentivar ações de educação e comunicação.
“É importante dar visibilidade aos benefícios da agroecologia na promoção da alimentação saudável e na interação entre campo e cidade”, explicou Maselli. Ela acrescenta ainda que “nas experiências onde há diálogo do poder público, por meio do gestor do PNAE, com as organizações da agricultura familiar e da sociedade civil, o funcionamento do programa atingiu melhor desempenho e os índices de compra de alimentos direto dos/as agricultores/as são maiores”.
O PNAE
A Lei 11.947/2009 determinou que pelo menos 30% do valor destinado à compra de alimentação escolar deve ser proveniente da agricultura familiar, mas o programa foi desidratado e congelado nas gestões de Temer e Bolsonaro, desde 2016.
Após seis anos congelado, o PNAE foi reajustado pelo Governo Federal para R$5,5 bilhões, com um aumento de até 40% em alguns estados. Criado há quase 60 anos, o PNAE é avaliado como uma das mais importantes políticas públicas de garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no mundo. Ele é responsável pela oferta de alimentação escolar a todas/os estudantes da educação básica na rede pública de ensino.
Edição: Rodrigo Durão Coelho