Um dos grandes pilares de sustentação do governo de Jair Bolsonaro (PL), com participação central nas duas últimas eleições presidenciais, a base evangélica passou os três primeiros meses do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mais quieta.
Embora alguns atores políticos ainda tenham tentado causar polêmica no período – a exemplo do discurso transfóbico do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG) em plena tribuna da Câmara – o silêncio foi a estratégia mais presente.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato observam na postura uma tentativa de afastamento de escândalos de corrupção que envolvem Bolsonaro e dos atentados golpistas de 8 de janeiro em Brasília.
Entre parlamentares da religião, nota-se também uma aproximação com outros temas além das pautas de costumes, tradicionalmente relacionada ao grupo. Já em meio a fieis, a polarização política e o tom bélico dos últimos anos foram responsáveis por gerar um clima de cansaço.
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“É verdade que a eleição teve um efeito traumático dentro das igrejas. Eu não conheço nenhuma igreja evangélica que não tenha sofrido algum racha por conta das opções de 2018 em diante” afirma o sociólogo Rafael Rodrigues da Costa, professor de psicologia social e pesquisador-visitante da Universidade Federal da Bahia.
Ele avalia que o “silêncio estratégico” nos primeiros meses da gestão de Lula atende a uma necessidade de reorganização.
“Esse evento traumático faz com que as próprias lideranças entrem em xeque. Elas podem até apoiar Bolsonaro e achar que Lula é o anticristo, mas também são pautadas pela base. Quando a base começa a votar em Lula ou está cansada, esse desgaste interno custa caro para as igrejas. Elas perderam muitos membros e arrecadação. Isso faz com que haja um silêncio estratégico.”
O antropólogo Flávio Conrado, membro da comunidade batista e assessor de campanhas da Casa Galileia, também observa o esgotamento do tema. “Houve uma polarização muito grande, muitas pessoas de esquerda foram expulsas, praticamente, das suas igrejas. Muitos foram realmente expulsos e perseguidos, pastores perseguidos, lideranças perseguidas. Outros foram ameaçados pelas redes sociais. O clima de fato, nas comunidades, nas igrejas, foi de uma intensa guerra cultural. Foi realmente desgastante para as comunidades, e isso dá certo cansaço, uma frustração.”
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No campo político, Conrado aponta uma diversificação temática nos assuntos considerados prioritários.
“Há outras agendas importantes para eles disputarem, se colocarem em outros segmentos. Eles estão muito mais próximos do agronegócio, da mineração, do lobby de armas, segurança pública. Então, há outras composições que estão se construindo e isso vai tomando um campo mais amplo no debate político."
A condenação dos ataques contra as sedes dos três poderes em Brasília representou a face desse afastamento. Lideranças do campo evangélico preferiram adotar o silêncio ou condenar abertamente os atentados.
Para os especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a necessidade de lidar com o desgaste interno nas igrejas e recalcular a rota política cria um ambiente de fragilidade em meio à reorganização. As incertezas crescem com a falta de uma liderança central, antes representada por Bolsonaro.
O relatório da Casa Galileia sobre as reações do campo evangélico aos ataques de 8 de janeiro revela ambiguidade. Apesar da condenação à violência, houve também a tentativa de justificar os comportamentos extremos.
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“A maioria esmagadora não quer se ver associada aos atos violentos que aconteceram em Brasília. Ao mesmo tempo, essa ausência do Bolsonaro, muito prolongada, vai gerando questionamentos. É uma reorganização desse campo, de entender para onde vai”, aponta Conrado.
A ausência de embates diretos com o novo governo, no entanto, não significa apoio, como ressalta Rafael Rodrigues da Costa
“Podemos até ter a impressão de que há certa simpatia pelo novo governo, o que não é verdade, porque é cínico. Todos (que condenaram os atos) estavam falando de uma forma cínica. Estavam falando não porque apoiavam Lula, mas porque queriam fugir da acusação de que estavam tentando um golpe de Estado", conclui o pesquisador.
Edição: Rodrigo Durão Coelho