Gostaria de falar das estreias nas competições sul-americanas, do Brasileirão, mas não dá.
*Luiz Ferreira
Eu juro por tudo que é mais sagrado que eu gostaria de falar sobre as estreias de Flamengo, Fluminense e Botafogo nas competições sul-americanas, sobre a preparação do Vasco para o Brasileirão e sobre a reta final dos principais estaduais do país. De verdade. Queria ter esse poder de ignorar tudo que acontece ao meu redor e focar no “pão e circo” como alguns por aí se referem ao velho e rude esporte bretão.
Mas não dá. Simplesmente não dá. Não diante de tudo o que vem acontecendo no país nesses últimos anos. Me perdoem sair um pouco da pauta do esporte, mas a sensação que eu tenho é que o mundo está acabando aos poucos diante dos nossos olhos.
No último sábado (1º), o cinegrafista Thiago Leonel Fernandes da Motta foi assassinado num bar próximo ao Maracanã depois da vitória do Flamengo sobre o Fluminense no jogo de ida da decisão do Campeonato Carioca. Thiago levou nove tiros de Marcelo de Lima, agente penitenciário.
De acordo com as testemunhas e os últimos relatos publicados na imprensa, o crime teria sido motivado por uma briga que começou por causa de uma pizza brotinho. Marcelo de Lima foi preso em flagrante e vai responder por homicídio qualificado por motivo fútil e por tentativa de homicídio. Thiago Leonel estava com o amigo Bruno Tonini Moura, que também foi baleado e levado para um hospital, onde foi submetido a cirurgia e está no CTI.
Sim, meus amigos. O mundo está acabando diante dos nossos olhos. E se sairmos do Brasil e olharmos para o exterior, vamos nos deparar com todo tipo de crime cometido dentro e fora das arenas. Pessoas que se acham melhores do que as outras por conta da profissão, da cor da pele, do status social e que se veem no direito de tirar a vida de quem não pensa como eles.
Aliás, se alguém disse que a arte imita a vida, o esporte (que não deixa de ser uma forma de arte, dependendo do seu ponto de vista) também é um retrato perfeito da nossa sociedade. Se quisermos entender como determinado grupo de pessoas pensa, basta olharmos para as arquibancadas e cadeiras das principais arenas e estádios do planeta.
Aqui no Brasil vemos pessoas matando outras por pizzas brotinho, camisas de time e todo tipo de motivo fútil. Coisas que poderiam ser resolvidas com uma conversa e com alguns ensinamentos que estão em livros religiosos que a grande maioria dos cidadãos de bem dizem e praticar. Só que todos estes não passam de canalhas travestidos de defensores da moral e dos bons costumes. Exatamente como o genial Nelson Rodrigues descreveu brilhantemente nos seus livros e crônicas.
Thiago Leonel, Bruno Tonini e várias outras pessoas foram vítimas desse mesmo pensamento mesquinho, perverso e vingativo que rege a nossa sociedade nesses últimos anos. Vejam bem: estamos falando de gente como a gente que apenas quis ir no estádio ver seu time jogar e curtir um barzinho depois da partida. Só isso.
Confusões e discussões acontecem em todo lugar, mas nada justifica pegar em armas para se defender em situações que poderiam ser resolvidas na base da conversa ou com o simples ato de sacudir o pó dos sapatos e ir embora. No esporte, a derrota de hoje pode indicar a vitória de amanhã. É assim em tudo que é modalidade. E também é assim na vida. Não estou falando de vingança, não. Estou apenas falando de se “mostrar a outra face”. Daquele mesmo jeito que está escrito naquele livro que os defensores da moral e dos bons costumes dizem que leem.
O mundo está morrendo aos poucos, pessoal. E o esporte está indo junto (se é que já não se transformou num zumbi que perambula pelas ruas procurando vítimas para saciar sua fome desenfreada de cliques e polêmicas). Lembram no início da coluna em que eu falei que o esporte é um dos mais perfeitos retratos da nossa sociedade? Pois então...
Se não conseguimos agir com um mínimo de civilidade nas redes sociais e aguentar a zoação quando nosso time perde, como é que vamos agir diante de situações mais sérias? E o contrário também vale, hein… Se sempre apelamos para racismo, machismo e homofobia nas nossas zoações quando nosso time vence, com que cara vamos reclamar quando nós mesmos viramos alvo dessas mesmas zoações?
Daí para um crime por espancamento, roubo ou até assassinato é um pulo, pessoal. Tudo porque não temos o bom senso de parar tudo, colocar a mão na consciência e perguntar o que estamos fazendo da nossa vida. Se não conseguimos ser responsáveis e amáveis nas pequenas coisas, não vamos conseguir agir com retidão nas grandes coisas.
Sempre que uma sociedade começa a se deteriorar, um dos primeiros setores a ser atingidos é o das artes. E logo na sequência vem o esporte. O primeiro sofre com os protestos dos “defensores da moral e dos bons costumes”. E o segundo se transforma no palco perfeito para esses mesmos “cidadãos de bem” deixarem o disfarce de lado e mostrarem sua verdadeira face.
Enquanto isso, assistimos, inertes, a tudo e sem saber direito o que e como fazer. É como se todos nós estivéssemos sofrendo de uma crise coletiva de burnout. A violência ainda nos causa repulsa, mas estamos cansados demais para agir e fazer qualquer coisa.
Repito: ninguém tem mais saudade de falar de campo e bola do que eu. Queria ter esse poder de ignorar absolutamente tudo que está ao meu redor e só focar nos engajamentos e nos cliques. Mas eu não consigo deixar de me revoltar com tudo isso que acontece.
Não, minha gente. O esporte não pode se transformar em palco para violências de qualquer tipo. Esse é um dos primeiros sinais claros de que o mundo está morrendo aos poucos e com requintes de crueldade.
A gente não pode ver pessoas morrendo por causa de uma pizza depois de um jogo de futebol e achar que está tudo bem.
A gente não pode ver crianças sendo mortas nas escolas por qualquer que seja o motivo e achar que a vida tem que seguir seu rumo.
A gente não pode ver uma série de coisas erradas e achar que está tudo certo.
Não, não está.
O mundo está morrendo aos poucos. E se a gente não mudar de postura para ontem, a gente vai acabar indo junto com ele.
*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Eduardo Miranda