A empresa militar privada russa Grupo Wagner tem sido um importante braço das tropas da Rússia durante a guerra na Ucrânia. Apesar do grande número de baixas no conflito, suas fileiras não param de se multiplicar. Na prática, trata-se de uma corporação de recrutamento de mercenários para atuar em ações militares no exterior. O Grupo Wagner vem atuando há oito anos na Síria e em países da África, mas foi a guerra na Ucrânia que trouxe à luz a controversa atuação da empresa e, principalmente, do seu chefe, o empresário Yevgueni Prigozhin, que tem obtido uma presença cada vez maior na vida política da Rússia.
No último domingo (2), Yevgueni Prigozhin, anunciou que os combatentes do batalhão Wagner haviam tomado o prédio da administração de Bakhmut, na região de Donetsk, um dos epicentros do conflito na Ucrânia. O anúncio aconteceu horas depois do atentado a bomba em um café no centro de São Petersburgo que levou à morte do blogueiro militar Maksim Fomin, conhecido como Vladlen Tatarsky. Ele era uma radical voz de apoio à guerra na Ucrânia. Em vídeo divulgado pela sua assessoria de imprensa, Prigozhin diz que a bandeira russa foi hasteada sobre o prédio da administração de Bakhmut em memória do “correspondente militar”.
O holofote sobre o Grupo Wagner e o seu chefe e fundador não é novidade no contexto da guerra da Ucrânia. A atuação do grupo paramilitar vem ganhando cada vez mais notoriedade e é um dos principais símbolos da campanha militar russa no país vizinho.
Em janeiro deste ano, os EUA classificaram o Grupo Wagner como uma organização criminosa transnacional e impuseram sanções contra várias empresas e indivíduos associados ao grupo. O presidente da França, Emmanuel Macron, classificou o batalhão como “um grupo de criminosos mercenários”. Na última semana, foi preso na Rússia o correspondente dos EUA para o The Wall Street Journal, acusado de "espionagem" pelas autoridades russas. Ele cobria os eventos da guerra na Ucrânia e, em particular, as atividades do Grupo Wagner.
Se antes o grupo era encoberto pelo Kremlin, o aprofundamento do conflito comprometeu a discrição do governo russo em relação ao respaldo a seu “exército paralelo”. Hoje, o batalhão de Prigozhin recebe tratamento em pé de igualdade com as tropas regulares do país.
Da sombra ao protagonismo na guerra: o que está por trás do ‘exército paralelo’ da Rússia?
Em entrevista ao Brasil de Fato, o chefe do Centro de Análise e Previsão Política da Bielorrússia, Pavel Usov, conta que o contexto da emergência do Grupo Wagner remete à crise na Ucrânia em 2014, quando uma forte onda de protestos no país levou a um golpe de Estado e ao conflito armado na região de Donbass, no leste ucraniano. A entrada do grupo de Prigozhin em cena estaria ligada ao encobrimento da interferência russa nos assunto da Ucrânia.
“O papel de iniciativas privadas [em conflitos] aumentou em 2014 com os acontecimentos na Ucrânia e o surgimento de empresas militares privadas, e suas iniciativas estavam ligadas ao uso dos princípios de ‘guerra híbrida’, que se baseiam no fato de que as partes militares regulares não participam de ações militares”, afirma o pesquisador.
Em 2014, quando eclodiu a crise ucraniana com o conflito entre Kiev e as forças separatistas em Donbass, Moscou repetidamente afirmou não ser parte do conflito e negou qualquer atividade de suas tropas na região. De acordo com o Usov, o governo russo buscava mostrar que os destacamentos separatistas eram não regulares e voluntários, sendo formados pelos próprios moradores de Donbass.
O cientista político explica que no início buscava-se encobrir que tais grupos como o Wagner existissem, mas desde 2015 exercícios são realizados em regiões russas e em bases do Departamento Central de Inteligência da Rússia. Naquele ano, eles começaram a participar ativamente em ações militares na Síria, inclusive para a proteção do poços de produção de petróleo, cuja concessão foi concedida para oligarcas russos.
“Quando houve o congelamento do conflito, em 2015, ficou claro que, para o futuro na Rússia, esses grupos, as empresas privadas militares, na prática adotariam o modelo de empresas militares privadas americanas que atuaram no Afeganistão e no Iraque para, por um lado, serem mais eficientes, e, por outro lado, diminuírem as baixas das tropas regulares”, explica.
Apesar disso, oficialmente o Kremlin repetidamente negava envolvimento com o grupo. Em 1º de maio de 2022, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, negou que o Grupo Wagner operasse no território da Ucrânia, afirmando que isso seria desinformação de Kiev.
“Há um grande número de mercenários de países ocidentais. Falar sobre a presença do Wagner na Ucrânia se deve justamente ao desejo de desviar a atenção do que nossos colegas ocidentais estão fazendo”, disse Lavrov.
O chefe da diplomacia russa também respondeu às acusações de que o grupo Wagner estava lutando no Mali, dizendo que mercenários russos foram convidados para lá para garantir a ordem pública. Na ocasião, ele acrescentou que Moscou não é responsável pelas ações do grupo Wagner, por se tratar de uma "empresa privada".
Já em janeiro deste ano, o próprio Ministério da Defesa russo pela primeira vez reconheceu oficialmente os méritos dos mercenários de Prigozhin no campo de batalha. Em particular, a pasta destacou “a bravura” dos combatentes do Wagner em meio ao anúncio da tomada da região de Soledar, em Donbass, pelas forças russas.
Um dos trunfos do Grupo Wagner é a sua capacidade extra-oficial de mobilização de novas tropas para o conflito. Uma das táticas é o recrutamento de presos por crimes graves, por meio de acordos que garantam a anistia dos detentos após seis meses de atuação na guerra da Ucrânia. No começo do ano, foram veiculados vídeos em que o chefe do grupo Wagner, Yevgueni Prigozhin, parabeniza ex-detentos pela participação nos combates.
“Vocês cumpriram sua tarefa com consciência e honra. Eu precisava de seus talentos criminosos para matar o inimigo na guerra. Não há mais necessidade de seus talentos criminosos; 180 dias foram trabalhados como se deve, todos desempenharam com coragem e heroísmo”, diz Prigozhin em vídeo divulgado em canais oficiais do Telegram ligados às empresas de sua propriedade.
O curioso é notar que a criação de empresas militares privadas para participação em conflitos armados não está prevista na legislação russa. Mas a figura de Prigozhin se torna cada vez mais notória como uma liderança na frente de batalha russa, a ponto dele fazer críticas abertas ao alto comando das Forças Armadas da Rússia e tensionar a relação com o Ministério da Defesa.
Mais recentemente, Yevgueny Prigozhin vem culpando o Estado-Maior por suprimentos insuficientes e problemas com munição, tentando transferir a responsabilidade pelas falhas para o comando russo. Mas suas críticas em nenhum momento atingem a presidência de Vladimir Putin.
O cientista político Pavel Usov explica que o aval que o grupo Wagner recebe do Kremlin está ligado a um cálculo político do governo russo. A “terceirização” da ação militar faz com que Moscou trate a corporação como se não fosse o exército russo, mas um exército privado — permite tirar a responsabilidade e certas consequências para as autoridades russas.
“É retirado o peso financeiro e a responsabilidade política da liderança do país. Ou seja, a economia e o orçamento do Estado não vão pagar pela compensação para aqueles que morreram. No plano político ele recebeu uma possibilidade ilimitada de pessoalmente recrutar quadros. Então isso mostra que Prigozhin é apoiado em alto nível e o funcionamento do grupo Wagner é encarado como um mecanismo de mobilização”, argumenta.
Tal cenário cria um cenário de beco sem saída para o governo russo, no sentido de que uma mobilização geral na Rússia seria muito custosa politicamente. Vale lembrar que a mobilização parcial anunciada em setembro de 2022 causou uma grande onda migratória de homens que saíram do país, e aumentou a tensão social e o descontentamento com a guerra ao trazer o conflito para mais perto da realidade da população russa. Por outro lado, o amplo apoio financeiro e militar do Ocidente à Ucrânia impede que Moscou alcance êxitos concretos e definitivos. Assim, a “terceirização” da força militar para o batalhão Wagner supre a necessidade de uma mobilização constante de tropas.
O cientista político Pavel Usov aponta que, no início da guerra, as fileiras do Grupo Wagner eram preenchidas por tropas bem treinadas, mas o alto número de baixas em meio ao desgaste do conflito levou ao recrutamento de pessoal não preparado nos pontos mais quentes da linha de frente, cuja função é “simplesmente esgotar a defesa ucraniana”.
“Eles são jogados em grandes ondas para as posições ucranianas e inauguram alguns novos pontos de combate, na prática, as perdas são em centenas. Ou seja, o que acontece lá agora mostra que aqueles que servem ao grupo Wagner não têm valor nenhum, nem militar, nem de quadros, é simplesmente material descartável. A tarefa é simplesmente esgotar, chamar o fogo par si, e aí em seguida a artilharia militar avança sobre as posições ucranianas”, explica.
Em janeiro deste ano, foi revelado um relatório da agência de inteligência militar do Ministério da Defesa da Ucrânia sobre as táticas das operações de combate do batalhão Wagner na Ucrânia. O estudo, realizado inclusive a partir de escutas telefônicas, aponta uma "indiferença brutal de Prigozhin às baixas", com execuções de combatentes que tentam se render aos ucranianos ou que realizam retiradas não autorizadas.
A análise ucraniana afirma que as táticas de Wagner "são as únicas eficazes para as tropas mal treinadas e mobilizadas que constituem a maioria das forças terrestres da Rússia". De acordo com os especialistas ucranianos, os ex-detentos chegam a dezenas de milhares de recrutas e muitas vezes compõem a primeira leva em um ataque, sofrendo o maior número de perdas, parcela que chegaria a até 80% das baixas.
Projeção política de Prigozhin
A permissividade com que o chefe do Grupo Wagner destina críticas ao alto comando militar russo e o consequente aval político e financeiro que o batalhão recebe do Kremlin hoje levanta rumores sobre as pretensões políticas de Prigozhin. Por outro lado, para a pesquisadora sênior do Centro Carnegie para a Rússia e Eurásia, Tatiana Stanovaya, "sua relação com o Estado é informal e, portanto, frágil".
De acordo a pesquisadora, Prigozhin atingiu o seu alvo principal: “se o Estado fosse incapaz de resolver efetivamente certas tarefas (ou simplesmente não quisesse ser visto fazendo isso), essas ferramentas quase estatais poderiam preencher a lacuna. Putin gostou dessa abordagem, que também é exigida na guerra contra a Ucrânia. Ainda assim, a posição do empresário segue informal. Putin concordou em terceirizar certas funções do Estado, mas não legitimou o próprio Prigozhin”, diz Stanovaya em artigo.
Desta forma, Prigozhin não constitui uma ameaça política ao governo russo. Segundo a pesquisadora, “enquanto Putin for relativamente forte e capaz de manter o equilíbrio entre vários grupos de influência, Prigozhin não é perigoso”.
O cientista político Pavel Usov, por sua vez, acredita que a influência do diretor do Grupo Wagner pode reverberar no sentido de conseguir ser um “condutor” de ideias do setor mais radicalizado da sociedade russa no caso de Putin não conseguir consolidar seus objetivos na Ucrânia.
“Prigozhin pode se tornar uma parte radical que pode realizar uma espécie de “revolução conservadora”, porque “existem fortes demandas para que a Rússia aja mais radicalmente. Ele pode acumular em torno de si esses sentimentos revanchistas e ser um condutor dessas ideias”, completa.
Edição: Glauco Faria