O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) concedeu uma licença de instalação à empresa Mangaba Cultivo de Coco para construção de um empreendimento de turismo na na ilha de Boipeba, município de Cairu (BA). A área pertencente à empresa (1.651 hectares) corresponde a cerca de 20% de todo o território da ilha e se localiza na comunidade de Cova da Onça.
De acordo com a empresa e o Inema, o projeto prevê a derrubada de cerca de 330 mil m² de mata para construção de um condomínio com 69 lotes, dos quais dois seriam destinados à comunidade; duas pousadas de 25 quartos cada e 25 casas assistidas; um píer para embarcações; uma pista de pouso; e um campo de golfe.
Em resposta ao Brasil de Fato, a empresa rejeita o título de megaempreendimento para todas essas instalações que pretende construir. A Mangaba Cultivo de Coco, criada em 2008, tem entre seus sócios José Roberto Marinho (Grupo Globo) e Armínio Fraga Neto (ex-presidente do Banco Central).
A despeito do nome peculiar, "nunca plantou uma mangaba, nem nunca plantou um coco", mas ocupa uma área de restinga onde nascem as mangabeiras, como frisa Raimundo Siri, pescador "nascido e criado na ilha", membro da comunidade tradicional de pescadores e marisqueiras de Cova da Onça.
Recomendações do MPF
O Ministério Público Federal expediu recomendações à Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA), que abriga o Inema, e ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, em que cobra a revogação das licenças concedidas pelo Instituto. No documento, o MPF afirma que o Inema desrespeitou diversas recomendações prévias do próprio Ministério Público e também da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) e da Defensoria Pública da União (DPU), além de ter ignorado a legislação e toda a proteção, inclusive internacional, aos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT). "Um rumo que se prolonga no tempo e precisa ser corrigido, com urgência", diz o texto.
As recomendações assinadas pelos procuradores da República Ramiro Rockenbach e Paulo Marques traz duras críticas à atuação do Inema no que diz respeito aos licenciamentos em territórios ocupados por povos tradicionais. "O Inema, vale dizer, é visto como obstáculo para quaisquer avanços em se tratado da efetivação dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais no Estado da Bahia", afirma o documento.
O MPF chega a questionar se o Inema não entendeu as recomendações prévias (de agosto de 2022), expedidas pelo próprio Ministério Público e pela SPU, para que não autorizasse ou licenciasse nenhum empreendimento na região, já que três processos diferentes tramitam na SPU para reconhecimento e regularização fundiária de comunidades tradicionais. E ressalta que tais comunidades são protegidas tanto pela Constituição Brasileira quanto por legislações internacionais, como a convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
"Situações como a verificada (e em curso) na Ilha de Boipeba revelam a prática de irregularidades gravíssimas, num modelo insustentável em termos ambientais, éticos e jurídicos, seja no plano internacional (Convenções, Tratados), seja no plano nacional (Constituição da República e leis)", afirma o MPF nas recomendações.
Em nota, os moradores da ilha reunidos no movimento Salve Boipeba reivindicam um alinhamento urgente entre MPF, SPU, Inema e prefeitura de Cairu. "É preciso que todas as autoridades responsáveis respeitem, de uma vez por todas, o ecossistema e comunidades tradicionais da ilha de Boipeba impedindo a implantação de megaempreedimentos como o projeto turístico-imobiliário Ponta de Castelhanos", afirmam.
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de comunicação da SEMA, mas até o momento da publicação desta matéria, não havia recebido resposta. Caso a Secretaria responda, a matéria será atualizada.
Impactos
A empresa defende que "o projeto será vetor do desenvolvimento sustentável do turismo local, trazendo uma importante transformação social, com melhoria da qualidade de vida nas comunidades". As comunidades, no entanto, enxergam o empreendimento como uma ameaça aos seus modos de vida tradicionais e aos espaços naturais, principalmente a restinga. O pescador Raimundo Siri ressalta que muitas espécies animais e vegetais da restinga "correm o risco de sumir do planeta Terra". Envolvido com a organização comunitária em Cova da Onça, Siri rejeita o título de líder comunitário. "Sou só um pescador. Se sou líder, sou como vários outros da comunidade".
O pescador lista ainda várias ameaças aos modos de vida tradicional: "fechar as vias de acessos às nossas atividades de trabalho que é o extrativismo de mangaba e caju; impedir os acessos aos manguezais, impedindo a nossa prática do turismo ecológico que é uma fonte de renda; nos impede também o acesso a pequenas roças de plantas de raízes, além de fontes para beber água e outras práticas de uso que fazemos no nosso território".
Ao Brasil de Fato, a Mangaba Cultivo de Coco afirmou que garantiria "o acesso das comunidades a todos os caminhos relacionados com a pesca e coleta de mangaba e mariscos". Ela defende também que "a comunidade terá ganhos imediatos com o projeto". Em nota divulgada no último dia 11, o Inema afirma que "todo o projeto apresenta uma nova matriz de desenvolvimento do turismo na região".
As lideranças comunitárias e organizações ambientalistas, no entanto, ressaltam que os impactos causados por uma ocupação dessa abrangência são muito maiores do que qualquer ganho econômico que esta possa trazer. E acreditam que a ideia de "desenvolvimento" defendida pelo Inema e pela empresa não dá conta de abranger toda a diversidade de espécies não-humanas e a complexidade cultural e tradicional das comunidades. "Esse empreendimento, se vier a se instalar na ilha de Boipeba, causará impacto irreversíveis nas nossas vidas", afirma Raimundo Siri.
Uma liderança quilombola que prefere não se identificar lembra que o aumento de circulação de pessoas, embarcações e mesmo aeronaves devem causar grandes mudanças tanto na vida das comunidades tradicionais quanto na vida animal e vegetal que vive e transita na Ponta do Castelhano. "Isso não vai trazer paz, nem alegria pra gente. Vai tirar nossa alegria de ver tudo aquilo que a mãe natureza trouxe ser destruído pelo ser humano", diz.
Um estudo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) sobre esses impactos, liderado pela pesquisadora Cacilda Michele Cardoso Rocha Cela e citado pelo MPF em suas recomendações, lista mais de 30 impactos socioambientais que a licença concedida pelo Inema podem causar. As consequências previstas, segundo o estudo, teriam um efeito cascata, em que, por exemplo, a erosão e degradação do solo geraria o aumento de sedimentos na água e consequente sufocamento de corais, ou a diminuição do capital natural e dos benefícios diretos das florestas (como turismo comunitário e extrativismo primário) levariam a um aumento da vulnerabilidade social, uma vez que favorecem a concentração de renda.
No estudo, a pesquisadora explica as comunidades que ocupam o local que recebeu a licença do Inema "dependem diretamente do conjunto de benefícios materiais e imateriais (senso de pertencimento, cultura humana, religiosidade) dos recifes de corais, das pescarias e mariscagem". Por isso, os impactos diretos e indiretos listados pelo trabalho abrangem não só a degradação ambiental, mas também as consequências sociais e culturais de um projeto como este.
Os moradores organizados no Salve Boipeba ressaltam que um projeto como este é um contrassenso com o reconhecimento internacional da importância dos povos tradicionais para a preservação do meio ambiente. "Entendemos que o empreendimento milionário que quer se criar na ilha desrespeita não só o território ambiental e sua biodiversidade, mas a nível simbólico, rompe com um movimento global e atualizado de proteger e garantir a dignidade e subsistência das comunidades tradicionais", destaca.
Regularização fundiária
Além dos impactos ambientais e sociais para os povos e comunidades tradicionais e o espaço natural, os procuradores da República destacam nas recomendações que o território em questão envolve área pública federal. Na recomendação ao Inema feita pela SPU em agosto de 2022, o órgão já alertara que estava em processo de definir a área de uso tradicional para expedir uma outorga de uso sustentável para a comunidade de Cova da Onça. E, por isso, recomendava que não fosse concedido nenhum licenciamento em área federal, principalmente que envolvesse as comunidades.
Também em agosto de 2022, o MPF recomendou ao Inema que não concedesse nenhuma autorização até que a SPU concluísse a regularização fundiária dos territórios em questão. Isto porque a legislação brasileira prevê que não é possível autorizar ocupações particulares em terrenos da União que comprometam a integridade de áreas de uso comum (como é o caso de praias), das áreas ocupadas por comunidades quilombolas entre outras.
"Não obstante as disposições legais (e regulamentos), tem se tornado comum a utilização de áreas da União por projetos, atividades e empreendimentos de toda ordem, comprometendo o modo de ser e viver, a dignidade e a existência das comunidades tradicionais na Bahia. Caminhos tradicionais e históricos, por terra e por água, são fechados, cercados; áreas sensíveis são queimadas e desmatadas", afirma o MPF. E ressalta que o Inema tem sido um dos grandes responsáveis por isso.
Ao Brasil de Fato, a empresa Mangaba Cultivo de Coco explica que a área está localizada em terreno de Marinha, sendo assim considerado bem da União. "Compramos o terreno em 2008 e, como legítimos proprietários, ocupamos legalmente essa área e continuamos pagando a taxa de ocupação", diz. A empresa informa ainda que os trâmites administrativos de transferência do terreno, junto à SPU, foram encerrados em 2022, quando passou a constar como titular um dos sócios.
Junto às recomendações à SEMA e ao governo do estado, o MPF também expediu uma recomendação à SPU para que cancele, imediatamente, qualquer inscrição de ocupação ou similar em favor de Mangaba Cultivo de Coco. "Nenhum ato de natureza precária e resolúvel deve ser mantido válido nas Ilhas de Boipeba e Tinharé em benefício de qualquer particular quando incidente sobre área relacionada a comunidades tradicionais", recomenda o texto.
Consulta às comunidades
As comunidades tradicionais de Boipeba reclamam ainda que não foram consultadas sobre a instalação do empreendimento em seu território. O MPF ressalta, nas recomendações, que a consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais é etapa imprescindível em qualquer licenciamento que envolva territórios tradicionais.
Em nota do dia 11 de março, o Inema afirmou que as audiências públicas foram realizadas no âmbito do processo de licenciamento que já tem 11 anos. Ao Brasil de Fato, a Mangaba Cultivo de Coco afirma que sete audiências foram realizadas em setembro de 2014, em Barra dos Carvalhos, Cova da Onça e na sede do município de Cairu.
"O Inema, quando os ouve [os PCT] o faz somente a título protocolar e formalizar para, depois, autorizar os mais variados projetos, empreendimentos, atividades etc. que comprometem de forma avassaladora o modo tradicional de ser, viver e existir", afirma o MPF na recomendação.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Alfredo Portugal