Recentemente o filósofo e professor Vladimir Safatle fez uma reflexão acerca da esquerda brasileira que considerei muito pertinente. Segundo ele, hoje só haveria um único extremo que é a extrema direita e é necessário que haja dois extremos para que almejemos um reequilíbrio da luta política.
No caso brasileiro, muitos companheiros tem evitado ir ao extremo e ido cada vez mais em direção ao centro.
Existe aqui um fator chave para pensarmos tal recuo. A esquerda brasileira ainda não compreendeu uma coisa básica para se pensar e também para se travar uma luta no seio da política e da sociedade brasileira: não há possibilidade de suplantar as forças de extrema direita sem compreender que no Brasil há um pacto da branquitude e que o conservadorismo da extrema direita brasileira representa esse pacto, inclusive o extremismo direitista surge principalmente para que ele se mantenha.
Os governos petistas trouxeram sim algum legado para a luta política brasileira. E não à toa uma mulher, presidente petista sofreu um golpe. Tal golpe foi para a manutenção do pacto da branquitude e da masculinidade, ou vocês se esqueceram dos discursos misóginos que foram usados contra a companheira Dilma Rousseff? Os discursos de ódio contra mulheres, negros, LGBT’s são a tônica da extrema direita brasileira. Embora possamos obviamente fazer críticas, durante os governos do PT, estes grupos sociais passaram a ver suas reivindicações e pauta de discussão na sociedade, mesmo que não da forma como a luta antirracista almejava.
Há uma polêmica dentro da esquerda que se dá em torno do que convencionou-se chamar de identitarismo. Segundo alguns, ele estaria enfraquecendo as lutas ligadas a classe e a esquerda como um todo.
O que ainda não conseguiram ver é que na verdade é justamente o contrário.
Foi a necessidade de políticas públicas e a história da luta dos movimentos negros no Brasil que ensejou o avanço das principais pautas sociais, de uma maneira geral, nas quais avançamos.
Eu convido os companheiros de esquerda a fazerem a seguinte reflexão e tentar pensar em uma resposta a essa pergunta: já que estamos falando em identitarismo, o que o identitarismo branco tem feito pelo país até os dias atuais?
A manutenção de uma classe, uma raça, um gênero e uma única orientação sexual na e da política nacional para a perpetuação desse modelo tem feito, como diria a professora Maria Aparecida Bento, um pacto tácito e narcísico em que a raça branca se torna o universal e as outras identidades são diminuídas, senão exterminadas para que brancos e homens se perpetuem no poder.
A conscientização da sociedade acerca dessas pautas tende a dar ensejo a nossa luta política, visto que a maioria da sociedade brasileira passará a compreender os sujeitos que os subalternizam desde a colonização.
Não faz sentido falar de um identitarismo nessas pautas, na verdade se perguntem: quem são os verdadeiros identitaristas?
Visto que a cultura branca, cisheteronormativa e masculinista está tão arraigada e difundida em nossa sociedade que vocês sequer compreenderam que a luta de classes no Brasil depende da destruição dessa normatividade.
Aliás, afinal, isto está arraigado hegemonicamente desde o Brasil colônia. A conscientização da sociedade acerca dessas pautas tende a dar ensejo a nossa luta política.
A conclusão óbvia disso é que a esquerda brasileira só irá para o extremo quando revir o pacto da branquitude que há em suas fileiras e resolver, de uma vez por todas, fortalecer a luta racial, feminista e anti-LGBTfóbica.
Aliás, companheiros brancos que falam em identitarismo, reflitam: a ojeriza de vocês a essas pautas a ponto de atacá-las, veementemente, chamando de identitarismo, não é para garantir seus próprios privilégios?
Por que os cargos de dirigentes de nossos partidos e movimentos seguem tendo a mesma composição dos cargos dirigentes das grandes empresas capitalistas, qual seja, homens brancos?
Sem tais questionamentos e análises a esquerda tende a seguir cada vez mais para o centro, correndo o sério risco de se fundir com ele. Ou coisa bem pior.
*Márcia Santos Severino é filósofa, professora do ensino básico no Distrito Federal e militante do Movimento Negro Unificado do Distrito Federal e Entorno.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino