As temáticas que transversam a soberania hídrica são diversas, pois sabemos que sem água não há vida e, logo, jamais deveria ser mercadoria. Por defendermos que água não é mercadoria é que pautamos o cancelamento da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), justificada pelo governador Eduardo Leite pela incapacidade no cumprimento das metas do Marco Regulatório do Saneamento.
Outra situação inerente à questão da água é a grave situação das barragens do estado, em especial a barragem da Lomba do Sabão, na região metropolitana. Estudo realizado em 2017 por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul mostra existe alto risco de rompimento, o que pode resultar em graves danos para cerca de 70 mil pessoas atingidas diretamente.
De todas as situações graves que nos fazem lutar pela soberania hídrica, terá nossa atenção, mais amiúde, a grave seca no Rio Grande do Sul que vem se agravando nos últimos quatro anos.
A seca do RS e seus múltiplos fatores naturais e humanos
Iniciaremos pelos múltiplos fatores que nos ajudam a pensar o contexto de seca no estado e que a ciência nos aponta algumas afirmações em uma combinação de fatores naturais e humanos. Vamos a eles:
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As mudanças climáticas e o aquecimento global contribuem para a redução das chuvas;
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O efeito La Niña, que é o resfriamento das águas do Oceano Pacífico, também pode causar a redução das chuvas no estado;
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O desmatamento e degradação ambiental causam uma redução da umidade do solo e a diminuição da disponibilidade de água para as plantas, que também acarreta na seca;
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A exploração excessiva dos recursos hídricos, como rios e aquíferos, levam à diminuição da disponibilidade de água;
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A falta de planejamento e gestão adequada dos recursos hídricos e da terra agrava a seca e seus impactos. Isso inclui a falta de investimento em infraestrutura para gerenciamento da água, bem como o armazenamento de água durante os períodos de chuva.
Nos cabe ainda refletir sobre dois fatores, bem específicos. Um é a relação da estiagem com o desmatamento da Amazônia e os rios aéreos, também conhecidos como rios voadores, que são “cursos de água atmosféricos, formados por massas de ar carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, e são propelidos pelos ventos”, carregando “umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil”.
Logo, o Sul, assim como as demais regiões do Brasil e do mundo são impactadas pelo desmatamento da Amazônia. O desmatamento é uma prática recorrente na expansão do agronegócio e, aqui, adentramos o segundo fator.
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A seca do RS e seus múltiplos fatores causados pelo agronegócio
O agronegócio faz uso da produção de culturas e pecuária intensivas que degradam o solo e reduz a umidade. A retirada da cobertura vegetal interfere no ciclo das águas, afetando a capacidade de armazenamento e infiltração de água no solo, além de reduzir a transpiração das plantas, que é um processo importante para a formação de chuvas.
Além disso, o agronegócio com o cultivo de monoculturas para exportação consome grandes volumes de água, retirados de aquíferos subterrâneos que são recursos finitos e essa prática prejudica o acesso da água para comunidades rurais, afetando a biodiversidade das regiões.
Denunciamos as alterações na natureza executadas pelo agronegócio com objetivo de lucro a qualquer custo. Denunciamos os impactos e consequências desse projeto de lucro e de morte, as monoculturas de alto impacto ambiental, as sementes transgênicas, a utilização indiscriminada de agrotóxicos, o desflorestamento para a produção de commodities para exportação, a fome de 33 milhões de pessoas no Brasil ao mesmo tempo em que o “agro” bate recordes de produção e de lucro, do trabalho análogo a escravidão, dos latifúndios grilados e todas as formas de violências no campo, impactados com mais força sobre as camponesas, indígenas e quilombolas.
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A seca do RS e o papel do Estado
As consequências da seca poderiam ser minimizadas pelo Estado, por meio de medidas urgentes e de políticas públicas para aquelas e aqueles que produzem alimentos e aqui citamos algumas iniciativas que já estão atrasadas, pois ainda não foram tomadas, haja vista o histórico de seca e as previsões de que esse período continuará. As medidas mais urgentes são a liberação de milho com preço subsidiado para alimentação animal e a implementação de um crédito emergencial para as famílias atingidas.
Todavia, essas medidas emergenciais devem ser seguidas pela construção de políticas estruturantes para os períodos de estiagem no estado. Essa construção perpassa pelos programas de irrigação para oferecer incentivos e financiamentos para aquisição de equipamentos e sistemas de irrigação e construção de cisternas para garantir a disponibilidade de água durante os períodos de seca.
Passa, também, pela implementação de um sistema de gestão de recursos hídricos que priorize a água para a produção agroecológica de alimentos e diversificação de culturas. Essas, conjuntamente com acesso ao crédito e seguro agrícola e por projetos e programas que visem a conservação do solo, com práticas de manejos sustentáveis pautados pela agroecologia, com investimentos em pesquisa e desenvolvimento que compreendam o alto impacto social, econômico, ambiental e político da agroecologia como modo de produção de alimentos para o povo brasileiro, com a finalidade do fim da fome e da construção da soberania alimentar.
A seca do RS e o impacto sobre a vida das mulheres
Atentamos para a grave estiagem que passa o estado do Rio Grande do Sul. Nesse contexto, olhemos com atenção para a vida das mulheres que produzem alimentos, geram renda e preservam a vida.
As mulheres têm menos acesso aos recursos, como terra, água e crédito e isso dificulta a adaptação à seca e proteção dos meios de subsistência. As mulheres enfrentam barreiras culturais forjadas pela desigualdade de gênero e isso dificulta o acesso a esses recursos, ao passo que é sobre elas que recaem “os cuidados”, tão naturalizados, que sequer são considerados trabalho.
As mulheres são responsáveis pela produção de alimentos, pela criação e daquela parcela da produção que alimenta a família com diversidade e qualidade nutricional, mas que são denominadas de miudezas, que perfazem uma diversidade enorme de alimentos.
É urgente desvelarmos as particularidades das relações de gênero na perspectiva da totalidade da luta de classes. O trabalho da mulher na produção de alimentos gera renda para as famílias e fomenta a diversificação da propriedade. Debater a desigualdade de gênero no contexto da diversificação produtiva, de geração de renda em uma conjuntura de seca é dar visibilidade para as violências que passam as mulheres.
Nesse contexto, ter renda pode ser a condição material que faz cessar situações violentas que, em se tratando das mulheres rurais, estão relacionadas também com a condição de dependência financeira e da violência patrimonial.
Importante destacar que os impactos da seca na qualidade de vida das pessoas que vivem no meio rural são desproporcionais em relação aos moradores das cidades, uma vez que as populações rurais têm acesso limitado aos serviços básicos de saúde, educação e assistência social. Nessas condições, a busca por água para consumo e para a realização de atividades agrícolas, em condições adversas, precarizam a vida e reduzem consideravelmente a qualidade de vida na roça.
Portanto, é crucial que as políticas públicas para enfrentar a seca levem em consideração as necessidades específicas das comunidades rurais e trabalhem para reduzir as desigualdades sociais e econômicas. E que essas políticas sejam planejadas, implementadas e avaliadas em conjunto com os movimentos sociais populares organizados que vêm, historicamente, denunciando as consequências do agronegócio, mas, também, anunciando e fomentando a agroecologia para produção de alimentos e preservação da vida.
A luta não avança sem as mulheres e não vamos retroceder. É essencial analisar e considerar a desigualdade de gênero na elaboração de políticas públicas e práticas de adaptação e combate à seca, garantindo o acesso equitativo a recursos e oportunidades para mulheres e homens. Bem como a promoção de relações de gênero igualitárias e a valorização dos papéis e saberes na gestão dos recursos naturais e das decisões coletivas.
A estiagem no Rio Grande do Sul impacta a agricultura camponesa familiar e, de forma acirrada, a vida das mulheres que enfrentam desafios adicionais. Além de afetar a participação das mulheres na tomada de decisões em suas comunidades, haja vista que as mulheres são sobrecarregadas com o trabalho agrícola e o trabalho reprodutivo da família. Restam-lhes menos tempo e energia para se envolverem em atividades comunitárias e políticas e isso afeta, negativamente, na capacidade coletiva de organização e mobilização por melhores condições de vida.
A luta não avança sem as mulheres e não vamos retroceder. Seguimos em luta contra a fome e as violências: abastecendo de alimentos e esperanças o povo brasileiro!
* Letícia Chimini é militante do Movimento dos Pequenos Agricultores, Dra. em Serviço Social (PUCRS), Mestra em Desenvolvimento Regional e Assistente Social (UNISC).
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira