Protestos na Geórgia

'Cabo de guerra' entre Rússia e Ocidente: entenda o que está por trás da crise na Geórgia

Onda de protestos na Geórgia foi encarada como anti-Rússia e guerra na Ucrânia pode amplificar crise política no país

Rio de Janeiro |
Manifestante agita as bandeiras da Geórgia, Ucrânia e UE durante manifestação para protestar contra sobre "agentes estrangeiros", semelhante à legislação russa - Vano Shlamov / AFP

A Geórgia foi tomada por uma grande onda de protestos na semana passada logo depois que o parlamento do país adotou um projeto de lei sobre "agentes estrangeiros". O documento prevê o estabelecimento de uma lista de organizações que recebem mais de 20% de financiamento do exterior. A Rússia possui uma lei análoga que é utilizada para rotular instituições e figuras públicas críticas ao governo. Na Geórgia, o projeto foi encarado pelos manifestantes como uma consequência da influência russa e como um gesto de afastamento do processo de integração à União Europeia.

As manchetes internacionais se apressaram em classificar os protestos como um possível novo “Euromaidan”, como ficou conhecido o movimento de manifestantes na Ucrânia em 2013 e 2014, que culminou em um golpe de Estado e numa profunda crise. É partir daí que se vê a escalada das tensões entre Rússia e Ucrânia – sobretudo a partir da anexação da Crimeia por Moscou -, o que acabou levando à atual guerra entre os dois países.

No caso georgiano, tanto o Ocidente quanto a Rússia deixaram claras as suas posições e como estão implicados nos desdobramentos políticos do Cáucaso. Por um lado, o chanceler russo, Serguei Lavrov, declarou que a crítica ao projeto de lei é apenas uma "desculpa para uma tentativa de golpe de estado". Ele afirmou que os protestos podem resultar em um novo "Maidan", se referindo à onda de manifestações na Ucrânia que levaram ao golpe de 2014.

No entanto, diferente do que aconteceu na Ucrânia nove anos atrás, o governo georgiano acatou a principal demanda das ruas de revogar a lei sobre agentes estrangeiros. Após dois dias de intensos protestos, a coalizão governista anunciou que retiraria de pauta o controverso projeto devido a "diferenças na sociedade".


Manifestantes seguram cartazes pró-União Europeia em protestos contra "lei russa" na Geórgia / Vano Shlamov / AFP

"Vemos que o projeto de lei adotado causou polêmica na sociedade. A máquina de mentiras soube apresentar a proposta de forma negativa e enganar uma certa parte do público. O projeto foi denominado com um rótulo falso de 'lei russa' e sua adoção em primeira leitura foi apresentado à sociedade como um afastamento do curso europeu", diz o comunicado da coalizão do governo.

Já o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, se reuniu com a presidente georgiana, Salome Zurabishvili, e manifestou satisfação com a retirada do controverso projeto de "agentes estrangeiros" na Geórgia. As partes concordaram que a pressão, por meio de sanções econômicas contra a Rússia, deve continuar.

No entanto, a revogação do projeto de lei representa de fato a suspensão da crise política na Geórgia ou pode ser apenas o começo de um fenômeno mais amplo? O primeiro-ministro georgiano, Irakli Garibashvili, destacou que é esperada uma escalada das hostilidades na guerra entre a Rússia e a Ucrânia e que “forças externas” estão interessadas em abrir uma segunda frente no território da Geórgia.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político ucraniano e presidente do Centro de Pesquisa Política Aplicada "Penta", Vladimir Fesenko, observa que a rejeição do projeto de lei pelo parlamento significa uma “vitória tática e apenas parcial para a oposição”, mas destaca que a “base da atual crise política é mais profunda do que o problema da proposta sobre agentes estrangeiros”.

“São práticas antidemocráticas nas ações das autoridades georgianas, que periodicamente provocam conflitos com a oposição e criam problemas sistêmicos para a integração da Geórgia à Europa. É isso que revolta a juventude georgiana, que se tornou a principal força motriz dos protestos atuais. Outro problema é a política oportunista do governo georgiano nas relações com a Rússia. O flerte das atuais autoridades georgianas com o regime de Putin cria tensões adicionais nas relações entre o governo e a oposição na Geórgia”, analisa.

Já o cientista político e escritor Mikhail Sheitelman também considera que, “formalmente”, as manifestações obtiveram vitória em suas reivindicações. Ao Brasil de Fato, ele comenta que se esperava que os manifestantes pudessem ir mais longe e que os protestos exigiriam a renúncia do governo ou do parlamento. “Em algum momento houve tais reivindicações, mas isso não se tornou um consenso entre os manifestantes”, acrescenta.

Mikhail Sheitelman argumenta que na Geórgia é amplamente aceito, em particular pelos jovens que foram às ruas, que o “governo atual é legítimo e foi eleito democraticamente em 2020, quando o partido governista ‘Sonho georgiano’ teve 48% dos votos”.

“A oposição, ou pelo menos parte da população que foi às manifestações, entende que em 2023 haverá eleições na Geórgia, então por que exigir a renúncia do governo se é possível vencer nas eleições no ano seguinte? Mas o mais importante para eles é que tenham instrumentos para as eleições, e o governo buscou justamente retirá-los. Essa proibição de financiamento através de organizações estrangeiras foi uma tentativa das autoridades de limitar o financiamento da oposição”, completa.

Apesar do arrefecimento dos protestos massivos, alguns eventos nos últimos dias mostram que a tensão social no país está longe de esfriar. Na última terça-feira (14), movimentos nacionalistas ligados à ala política "Movimento Conservador" realizaram uma manifestação no centro de Tbilisi com slogans antiocidentais. Durante a ação, realizada perto do parlamento, os ativistas queimaram uma bandeira da União Europeia que fica hasteada junto à da Geórgia, logo na entrada do prédio.

O presidente do parlamento georgiano, Shalva Papuashvili, condenou as ações dos manifestantes e acrescentou que "radicalismo gera radicalismo", traçando paralelos entre os radicais de direita e o curso ocidental da Geórgia com os protestos. Vale lembrar que tal retórica não é muito diferente da usada pelo Kremlin ao justificar a intervenção militar na Ucrânia, conectando uma suposta “nazificação” do país com a influência ocidental.

Em alinhamento à posição da diplomacia russa, o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, afirmou que o que acontece na Geórgia é “mais uma tentativa de uma ‘revolução colorida’, ou seja, uma tentativa de golpe de Estado” com uma “grosseira interferência dos assuntos internos da Geórgia pelos países do Ocidente, pela UE, EUA, e da Ucrânia”. “E nenhum desses coadjuvantes esconde que interferem nos assuntos internos de um Estado soberano”, diz o pesquisador ao Brasil de Fato.

De acordo com Shapovalov, o atual governo da Geórgia não representa um papel de aliado ou parceiro da Rússia. O cientista política acredita que, na verdade, “há uma luta entre dois partidos pró-Ocidente”.

“Não há um partido pró-Rússia na Geórgia. Mas, ao mesmo tempo, o partido do governo ‘Sonho Georgiano’, realiza uma política nacional e racional, em defesa dos interesses da Geórgia, e justamente essa política agrada à Rússia, já que para a Rússia é importante que no momento haja um Estado georgiano soberano e não uma colônia do Ocidente”, frisou.

Já o presidente do Centro de Pesquisa Política Aplicada "Penta", Vladimir Fesenko, aponta que o governo georgiano realiza uma política ambígua com a Rússia e o Ocidente, na medida em que a “grande maioria dos georgianos apoia a integração de seu país na UE e na OTAN, simpatiza com a Ucrânia e critica a Rússia”.

“E isso força o atual regime georgiano a seguir uma política dupla. Formalmente, eles mantêm uma política pró-ocidental, mas na realidade estão restaurando relações ativas com a Rússia, especialmente na esfera econômica”, completa.

Vale lembrar que as relações diplomáticas entre Rússia e Geórgia foram rompidas em 2008 após o conflito entre os dois países e ainda não foram restauradas. Em relação ao futuro da situação política no país, Fesenko diz que isso depende muito do resultado da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. De acordo com ele, eventuais derrotas de Putin na guerra contra a Ucrânia e seu possível enfraquecimento também contribuirão para a fragilização do governo ucraniano.

O que se pode constatar nas manifestações georgianas é que a animosidade da população do país em relação à Moscou, que remete aos efeitos do conflito de 2008, foi amplificada com a guerra da Ucrânia. Na prática, os protestos contra um projeto de lei ganharam a conotação de manifestações “anti-Rússia”. O que se viu nas ruas foram slogans contra Putin e à favor da Ucrânia e manifestantes cantando o hino ucraniano enquanto buscavam invadir o parlamento.

Dessa forma, como observa o Mikhail Sheitelman, hoje “qualquer ação do governo georgiano vai ser observada pelo eleitorado que foi aos protestos com uma lupa enorme”. Dessa forma, se o governo adotar qualquer passo pró-Rússia ou frear o processo de integração à União Europeia, é possível uma retomada dos protestos e um aprofundamento da crise no país. Qualquer faísca pode virar um incêndio”, completa Sheitelman.

Edição: Patrícia de Matos