Não é de hoje que as mulheres do Brasil estão na vanguarda das lutas do país e do mundo em defesa de seus direitos e na construção de uma sociedade justa e igualitária. A máxima das mulheres negras de que nossos passos vêm de longe se aplica aqui de forma ímpar. Em todo processo de mudança sistêmica nós estivemos lá. A participação feminina é cada vez mais ressaltada como parte formuladora desses processos históricos como Revolução Francesa, Haitiana, Russa e as lutas por libertação da África e outros países.
No Brasil também fomos parte constante das mobilizações políticas. Precisamos lembrar, por exemplo, da importância que tem Tereza de Benguela e o Quilombo do Quariterê na região central do país, das mobilizações contra a carestia protagonizadas por mulheres periféricas durante a Ditadura Empresarial-Militar, as nossas movimentações durante a Constituinte para que nossos direitos fossem garantidos na Nova República.
Sempre estivemos nas ruas pressionando e pautando a necessidade de se olhar para os direitos daquelas que são a maioria da nossa população: nós. Mas nesse 8 de março de 2023 não poderíamos não destacar a resistência que o movimento feminista e de mulheres teve para enfrentar Bolsonaro desde sempre. Ocupamos as ruas em 2018 com o #EleNão e estivemos na vanguarda da resistência nas ruas combatendo a Reforma da Previdência e Trabalhista, além de denunciar todo o desmonte promovido por ele nas áreas de garantia dos nossos direitos.
Foram anos muito duros para as nossas vidas. Durante a pandemia, o Brasil foi um dos países onde mulheres grávidas mais faleceram em decorrência da covid-19, fruto de um projeto de país que sempre visou massacrar mulheres, negros, LGBTs e a classe trabalhadora do país como um todo. É por estarmos há tanto tempo na luta contra o fascismo e os retrocessos bolsonaristas que bradamos: SEM ANISTIA para os golpistas.
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Nós mulheres negras não temos como nos embrenhar na luta em defesa da democracia de forma radical sem exigir saber: Quem mandou matar Marielle e Anderson. Nossa companheira estava firme na posição contra a extrema direita e em defesa da democracia, tendo denunciado o golpe contra a presidenta Dilma em 2016. Faz 5 anos que continuamos sem resposta para esse atentado bárbaro.
A eleição de Lula em 2022 foi um primeiro passo importante para se retomar um patamar mínimo de país em que nós mulheres negras consigamos voltar a ter acesso a direitos básicos e ampliá-los. Os desafios são enormes e nossa tarefa é construir nas ruas respaldo para que possamos reconstruir o que foi arrasado pela extrema-direita e avançar.
Segundo a pesquisa "Visível, Invisível" do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 21,5 milhões de mulheres acima de 16 anos já sofreram algum tipo de violência misógina e destas, 65,6% são mulheres negras. Este é o maior índice de violência contra mulheres registrado pela pesquisa ao longo de 4 anos. A misoginia e o racismo foram parte programáticas do governo Bolsonaro e são centrais para o projeto de sociedade da extrema direita.
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A fome também tem raça e gênero. Segundo pesquisa da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), 3% nos domicílios chefiados por mulheres – 19,3% em situação de fome e quando falamos de raça a situação é bem similar, pois 64% dos domicílios com pessoas de referências pretas ou pardas sofrem com insegurança alimentar; 18,1% passam fome.
Quando falamos de trabalho, também vamos nos deparar com gargalos importantes que envolvem raça e gênero: Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as mulheres negras recebem 57% menos do que homens brancos, 42% menos do que mulheres brancas e 14% a menos do que homens negros ganham.
Mas não é apenas o gap salarial que nos afeta no tema do trabalho. Segundo levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), as mulheres negras são as que mais sofrem com o fantasma do desemprego, com uma taxa de 13,9%, muito superior à média nacional de desemprego, que é de 9,3%. Sermos a maior parcela de desempregados do país impacta diretamente no fato de que estamos mais sujeitas aos postos de trabalho precarizado: ocupamos 47,5% desse tipo de atividade.
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Também somos as que mais sofrem com o encarceramento em massa: 68% das mulheres presas no Brasil são negras, de acordo com o relatório do ITTC 'Mulheres em Prisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal'. A falta de emprego e salário digno nos marginaliza e nos coloca como alvo do Estado Penal racista que é particularmente duro com pessoas não-brancas por causa do legado racista que carregamos até os dias de hoje no Brasil.
Não poderíamos deixar de lembrar que no Brasil, o risco de uma mulher negra morrer por aborto inseguro é 2,5 vezes maior do que o de uma branca. Garantir o aborto legal e ampliação da legalização do procedimento significa defender as nossas vidas e direitos sexuais e reprodutivos que são sistematicamente violados, visto os casos de laqueadura e cesariana forçada que as nossas foram submetidas durante os anos 80 e 90 no país.
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Sim, voltamos às ruas não apenas para comemorar o fim de um período duro da nossa história, mas também de nos colocar como vanguarda na resistência contra o golpismo da extrema direita para que nossos direitos avancem. Mas também para estabelecer um debate junto à sociedade de que a reconstrução do Brasil passa necessariamente em pensar a vida das mulheres negras em todas as áreas. Incluir os pobres no orçamento quando falamos de avanço da feminização e racialização da pobreza significa nos incluir e isso precisa levar em conta os impactos do machismo e racismo em nossas vidas.
É preciso retomar investimento nas redes de enfrentamento à violência contra mulher, assim como é necessário que se desenvolva nesses programas formação para acolhimento de mulheres negras e trans que acabam se deparando com o racismo e transfobia institucionais.
Nossas lutas são muitas, não são de hoje. Ao longo da história construímos a resistência contra o machismo e o racismo e nos dias de hoje seguimos nos mesmos ideais e disposição que nossas ancestrais e griots: Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Isabel Cristina Baltazar, Regina Lúcia Santos, Leninha Claudino de Souza, Lenny Blue, Ieda Leal, Jupiara Castro, Luciana Araújo.
Seguiremos nas ruas para defender nossas vidas e direito e com profundo compromisso com a defesa da democracia por sabermos que quando há autoritarismo da extrema direita são os nossos direitos os primeiros a serem rifados!
* Simone Nascimento é membra da Coordenação Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) e da Coordenação estadual do MNU-SP.
** Luka Franca é membra da Coordenação Estadual do MNU São Paulo.
*** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Vivian Virissimo