O exemplo do ser humano que foi Hugo Chavéz e os avanços da Revolução Bolivariana permaneceram
Há dez anos, ao ler o "Livro dos Abraços" de Eduardo Galeano, uma crônica em especial me chamou a atenção. O escritor uruguaio contava que "Manuel Marulanda Vélez, o famoso guerrilheiro colombiano, de pele levemente parda, não se chamava assim. Há quase sessenta anos, quando empunhou armas, ele se chamava Pedro Antonio Marín. Naquela época, Marulanda era outro: negro de pele, grandalhão de tamanho, pedreiro de ofício e canhoto de ideias. Quando os policiais espancaram Marulanda até matá-lo, seus companheiros se reuniram em assembleia e decidiram que Marulanda não podia se acabar. Por unanimidade deram seu nome a Pedro Marín, que o carregou desde aquele tempo até o seu falecimento em 2008."
Apesar das distinções do enredo, qualquer semelhança não foi mera coincidência com a morte do comandante e ex-presidente Hugo Chávez. A diferença é que não surgiu uma pessoa que se apropriou de seu nome e de sua tenacidade. Como o próprio Chávez dizia em suas andanças pelo país, "hoje não há um Hugo Chávez na Venezuela, eles são muitos e estão espalhados por todo o país". Ousaria dizer mais, que foram tantos que extrapolaram a fronteira da Venezuela e abarcaram toda uma América Latina, que hoje herda um projeto delineado de integração popular, ainda estimulado por aquele povo e pelo legado daquele presidente.
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Morreu o homem, sobreviveu o mito? Não só. O exemplo do ser humano e os avanços sim, da Revolução Bolivariana, permaneceram. E o que isso significou? Significou, à época, que um país que não tinha relevância alguma nos noticiários da grande mídia até o final dos anos 90 passa a ter índices de desenvolvimento social inéditos e surpreendentes.
A pobreza geral diminuiu ao redor de 50% e a indigência 51% desde 1998 (ano em que Chávez é eleito presidente pela primeira vez). De acordo com dados da Cepal, em 2010 localizou‐se a pobreza geral em 27,8% e a indigência em 10,7%. A Venezuela, ao final do governo Chávez, foi o país com menos desigualdade na América Latina, com um coeficiente Gini de 0,394.
Significou que uma realidade agrária regida historicamente pelo latifúndio, o qual apresentava um quadro de pobreza e improdutividade rural, além de uma extensão de 6.762.399 hectares, foi modificada desde 1998. Desse montante, o governo resgatou 3.654.681 hectares. Assim, a produção de alimentos passou de 17.160.577 toneladas em 98, para 24.686.018 toneladas no ano 2010 com a expropriação do latifúndio, o que representa um incremento de 44%. Além da expansão das agriculturas urbanas em Caracas e de projetos que estimulavam a prática agroecológica no interior.
Significou também que, de acordo com o relatório da Unesco, o investimento do Estado venezuelano em educação aumentou de 3,38% do PIB em 1998 ao patamar de 7% em 2009. Esses dados demonstram o êxito de programas chavistas como a missão Robinson, responsável pela erradicação do analfabetismo na Venezuela, a missão Ribas, para beneficiar as pessoas que não tinham terminado o ensino secundário, e a missão Sucre, responsável pela entrada daqueles antigamente excluídos do sistema universitário.
Essa mudança de patamar, proveniente de um projeto político popular e tenaz, que servia de exemplo aos outros países latino-americanos, foi visto pela grande mídia como um mau exemplo. Não porque os meios de comunicação desejariam a miséria do povo, mas porque acabavam de perder o poder de determinar e controlar a narrativa desse povo, que passava a escrever a sua própria história.
A Venezuela pós-Chávez, apresentada a partir desses parcos dados, não era mais aquele país diagnosticado na obra clássica "As veias abertas da América Latina". Ali, os relatos descreviam um período histórico em que o povo era vitimado por uma metrópole espanhola e, posteriormente, pela oligarquia escravista venezuelana sedenta pelo lucro fácil na extração de cacau e café. Sujeitos estes que foram substituídos pelas empresas estrangeiras exploradoras de petróleo ao longo do século XX. Momento em que se configurou uma situação, ao longo da década de 70, onde quase a metade dos ganhos que o capital estadunidense extraía da América Latina eram provenientes da Venezuela. Resplandecia uma classe multimilionária em um oceano de subdesenvolvimento e miséria.
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De fato, mesmo com toda a dificuldade decorrente da desestabilização de grupos políticos internos e o violento bloqueio econômico dos Estados Unidos contra a Venezuela, que fomenta a pobreza e dificulta a vida do povo, hoje se trata de outro país, soberano e mais altivo, "dono do próprio nariz", que continuará a incomodar a grande mídia e os EUA, que continuam sem o controle do petróleo alheio. Mais do que tudo o que foi escrito, Chávez recuperou algo essencial: a dignidade de um povo! Estes, agora de cabeça erguida, através da pedagogia do exemplo, compreendem que para a continuidade da Revolução Bolivariana será necessário unidade, organização, disciplina e luta.
Não é por acaso, que mais uma de suas frases reverberaram em todo o continente com uma pujança crescente, quando o comandante dizia: "Aos que me desejam a morte, eu lhes desejo muita vida para que sigam vendo como a Revolução Bolivariana vai seguir avançando de batalha em batalha, de vitória em vitória". A tarefa está dada. Não só aos venezuelanos, pois o projeto transformador é latino-americano. Enquanto ele se limitar às fronteiras da Venezuela, não terá o êxito que necessita ter. Chávez partiu há dez anos, mas durante a campanha presidencial em 2012 nas ruas de Caracas, em que estive presente, o povo antecipava os seguintes dizeres: "Viveremos e venceremos"!
O legado deixado pelo povo ao eleger, ao longo de 14 anos, Hugo Chávez como presidente da Venezuela afetou todo um continente. As convicções libertárias e anti-imperialistas do comandante reverberam em toda uma América Latina que continuará a batalhar por mudanças estruturais.
Depois de 10 anos da sua morte física, a palavra de ordem permanece viva e ainda reverbera de forma profunda na cabeça e no coração das pessoas que vivenciaram aquela experiência e hoje resistem para ampliar aquele legado: "P'alante (vá em frente) comandante!"
*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares