Sem gozar de foro privilegiado desde que deixou a presidência, em 31 de dezembro, Jair Bolsonaro pode ver os inquéritos abertos contra si pararem na primeira instância da Justiça. Há também outras possibilidades, mas que exigem decisões colegiadas do Superior Tribunal Federal ou iniciativas da Procuradoria-Geral da República (PGR).
O ex-presidente, que permanece nos Estados Unidos desde as vésperas da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deverá continuar vivendo sob suspense ao longo de 2023, na opinião de juristas ouvidos pelo Brasil de Fato. Eles também acreditam que eventuais punições a Bolsonaro estão mais perto de serem promovidas pela Justiça Eleitoral, que pode torná-lo inelegível para o próximo pleito.
Dos cinco inquéritos presentes no STF, quatro deles foram abertos ao longo do mandato e o último foi instaurado esse ano, por supostas ligações de Bolsonaro com a tentativa de golpe de 8 de janeiro em Brasília. Nesta quarta-feira, 1° de março, um dos casos — que apura a conduta do líder de extrema direita durante a pandemia de covid-19 — foi arquivado por determinação do ministro Dias Toffoli.
Por um entendimento da Corte máxima do país, adotado após decisão de Luís Roberto Barroso em 2018, o caminho natural dos inquéritos seria a primeira instância, que julga crimes de pessoas comuns, sem foro especial. Porém, na prática, as coisas não são tão simples, conforme indica Rodrigo Cyrineu, advogado especializado em Direito Constitucional e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
“Não sei como eles vão fazer isso, tendo em vista que é um ex-presidente da República e os fatos em tese criminosos foram cometidos durante o mandato. Essa é uma coisa que o Supremo vai ter que decidir. Se fosse há um tempo atrás, eu acreditaria que ele seguiria essa jurisprudência na questão de ordem penal 937, mas depois da relatoria dos inquéritos pelo ministro Alexandre [de Moraes], a gente viu uma alteração na jurisprudência e pode ser que eles revejam esse entendimento”, vislumbra.
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Na opinião do advogado Acácio Miranda, especializado em Direito Penal e Eleitoral, há um grande risco de a situação piorar para Bolsonaro em pelo menos um dos casos, dependendo dos elementos que vierem à tona. Os processos correm em segredo e alguns deles envolvem subordinados e pessoas próximas ao ex-presidente.
“É difícil determinar qual inquérito tramitará com mais celeridade, porque há vários fatores a serem levados em conta em cada um deles. Mas é importante olharmos que, especialmente no que diz respeito aos atos antidemocráticos praticados no dia 8 de janeiro, se comprovada a autoria intelectual por parte do ex-presidente, é muito provável que seja decretada sua prisão preventiva”, enfatiza Miranda.
Blindagem de Aras fez a lógica ser “invertida”
Se por um lado o ex-mandatário pode esperar o rigor dos magistrados do STF, especialmente de Alexandre de Moraes, relator dos processos; por outro, conta com a morosidade do procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele não apresentou denúncias formais contra o ex-presidente, o que impede que Bolsonaro se torne réu.
Acusado de ser omisso durante todo o último mandato, a exceção de Aras foi o pedido de inclusão de representação contra o líder de extrema direita no Inquérito 4.921, que apura a instigação e autoria intelectual dos atos antidemocráticos em Brasília. A atitude foi tomada após Bolsonaro postar vídeo no dia 10 de janeiro, questionando a regularidade das eleições, mesmo após os episódios de violência nas sedes dos Três Poderes. A postagem, apagada no dia seguinte, foi arquivada.
Em meados de fevereiro, a subprocuradora-geral da República, Lindôra Araujo, pediu ao STF o arquivamento de um inquérito envolvendo Bolsonaro pela associação feita publicamente entre a vacina contra a covid-19 e a Aids. Um entendimento contrário ao da Polícia Federal, que havia identificado dois possíveis crimes: provocar alarde ao anunciar perigo inexistente e incitação ao crime.
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Lindôra, à época, afirmou: “Ainda que o conteúdo da fala do investigado Jair Messias Bolsonaro possa ser polêmico e passível de críticas e questionamentos, não se verifica qualquer incitação à prática de crime. Mesmo que não configure ilícito criminal, em nenhum momento, os investigados incitaram a população a não usar a máscara de proteção individual”.
Cabe à PGR tomar a iniciativa de investigar e fiscalizar o presidente da República e outros membros dos Três Poderes, funções que podem não estar sendo totalmente exercidas. “Talvez pela postura mais contida do atual PGR e uma postura mais ativa do STF, a lógica acabou se invertendo. Mas, de toda forma, mesmo sendo chefe máximo do Ministério Público, o procurador não decide nada. Ele faz pedidos ou faz cotas. No final das contas, quem vai acabar decidindo o destino das ações contra o ex-presidente é o próprio STF”, analisa Cyrineu.
Miranda, por sua vez, destaca que a imparcialidade deixou de ser uma marca da PGR nos últimos anos e acredita que a provável escolha de um substituto para Aras, cuja gestão se encerra em setembro, também seguirá a mesma linha. “É muito provável que o próximo procurador-geral seja escolhido em virtude da afinidade política com o governo que esteja no poder daqui em diante. Consequentemente, terá a tendência de atuar em casos que lhes forem favoráveis”, opina.
Possível troco da Justiça Eleitoral
Há ainda mais um inquérito aberto no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), também a pedido do ministro Alexandre Moraes. O ex-presidente foi incluído nas investigações que apuram a divulgação de fake news e ataques sem provas às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral.
Nesse caso, Bolsonaro se tornaria inelegível por oito anos subsequentes ao da última eleição que disputou. Portanto, até 2030. Segundo Cyrineu, há de se levar em conta a possibilidade de o TSE julgar as ações em primeira instância, tornando o processo mais célere.
“Tenho impressão de que Bolsonaro não vai conseguir escapar de uma inelegibilidade, porque as ações no TSE vinculam fatos que foram amplamente descortinados na jurisdição criminal. Ocorreram prisões de diversas pessoas, o TSE admitiu provas juntadas por outros partidos, ampliando o espectro comprobatório dessas ações. Acho que ele não vai escapar com facilidade de uma punição da Justiça Eleitoral. Mandato ele não pode perder, porque não foi reeleito, então sobraria a inelegibilidade”, explica.
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Embora haja mobilização e uma forte retórica por punições ao ex-presidente, a coalizão comandada pelo PT pode abrandar a pressão por uma questão estratégica. Isso porque ele ainda não deu sinais de que efetivamente retornará ao Brasil e tem sofrido desgastes dentro da sua própria bolha. Assim, poderia perder cada vez mais força como principal opositor de Lula e do campo progressista.
“Para mim, seria muito melhor eu ter um adversário que eu já derrotei, que se mostra inábil em várias frentes, que ele não seja aniquilado, colocado de lado, sepultado. Assim, você dificulta que outro adversário surja, alguém mais jovem, forte e ocupe esse vácuo. Se eu fosse o piloto dessa coalizão, eu não avançaria o sinal e deixaria as coisas do jeito que estão, muito confortáveis”, projeta Cyrineu, que não enxerga um adversário em potencial a Lula ou alguém escolhido por ele para o próximo pleito até o momento.
Edição: Rodrigo Durão Coelho