Guerra da Ucrânia

Desgaste da Guerra da Ucrânia pode levar à 'trégua sem paz' , diz historiador

Especialista em estudos da Rússia, Angelo Segrillo, explica que situação na Ucrânia pode virar um "conflito congelado"

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Captura de vídeo tirada mostra uma visão aérea das destruições na cidade de Bakhmut em 27 de fevereiro de 2023. - AFPTV / AFP
Desgaste e a exaustão da guerra pode levar a uma trégua e a um conflito congelado no leste ucraniano

Quando o mundo inteiro acompanhou o início dos bombardeios russos na Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, havia um certo consenso na expectativa de que a guerra iniciada por Moscou no país vizinho teria curta duração. Passado um ano desde que o Kremlin começou o que classifica como “operação especial militar”, a tensão entre a Rússia, Ucrânia e o Ocidente só se agravou e a perspectiva de paz não poderia estar mais distante.

Ameaças de uso de armas nucleares pela Rússia, novos envios de armas a Kiev pelo Ocidente, declarações provocativas de Putin, Biden e Zelensky, deram o tom da crescente instabilidade entre as partes envolvidas na semana em que a guerra completou um ano de duração.

Mas se a instabilidade da segurança internacional em torno da guerra da Ucrânia é a única certeza que se apresenta hoje, algumas questões permanecem difíceis de serem respondidas. Como dois países com laços tão profundos em sua história chegaram a tamanho grau de hostilidade? Quais foram e quais são hoje os reais objetivos de Vladimir Putin em sua empreitada na Ucrânia? O que sustenta a força política de Putin? Há caminho possível para a paz? Para ajudar a responder essas questões, o Brasil de Fato conversa com o historiador Angelo Segrillo, uma das maiores referências de estudos da Rússia e ex-União Soviética do Brasil.

Assista ao vídeo:

Angelo Segrillo é professor de História contemporânea na USP. Com mestrado realizado pelo Instituto Pushkin de Moscou, é considerado um dos maiores especialistas em Rússia e União Soviética do Brasil. É autor de vários livros sobre o tema, como "O Declínio da URSS: um estudo das Causas", "Os Russos" e "Rússia: Europa ou Ásia?". Recentemente, Angelo Segrillo colaborou com a coletânea "Ensaios Sobre a Guerra: Rússia Ucrânia 2022", livro publicado pela editora Kinoruss. 

De acordo com Segrillo, um dos principais motivos que fez com que caíssem por terra os prognósticos de que a guerra teria curta duração foi o amplo apoio do Ocidente à Ucrânia. Para ele, a “ajuda uníssona” da comunidade internacional a Kiev criou uma espécie de equilíbrio na disparidade militar entre Rússia e Ucrânia, estabelecendo um “empate técnico” na guerra.

Agora, dada a enorme incompatibilidade de interesses entre Ocidente, Rússia e Ucrânia, é muito difícil pensar em um acordo de paz no horizonte. Mas, como destaca Angelo Segrillo, o desgaste e a exaustão da guerra podem levar a uma trégua e a um conflito congelado no leste ucraniano.

"Se a gente pegar uma fotografia estática do momento, nós esperaremos uma guerra que vai durar muito tempo. Como a gente falou, nem a Rússia consegue ganhar totalmente, nem a Ucrânia consegue retomar totalmente. Então se a gente simplesmente ver uma fotografia estática do momento, (haverá) uma guerra por longo prazo. Mas como nós mencionamos aqui, os países estão tendo desgaste e esse desgaste não pode ser levado por muito tempo", analisa.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Quando foi anunciada o que a Rússia chama de operação especial militar na Ucrânia, em 24 de fevereiro, não se esperava que o conflito pudesse ter essa duração tão longa. E depois de um ano de guerra não há uma perspectiva clara para o fim do conflito. E ainda se pergunta muito quais foram os reais objetivos do presidente Vladimir Putin com uma intervenção militar dessa magnitude. Moscou oficialmente anunciou a “desnazificação” e a “desmilitarização” da Ucrânia como os principais objetivos da operação. Como você avalia os objetivos da Rússia na guerra inicialmente e agora após um ano de conflito? Em que lugar está a estratégia russa atualmente? 

Angelo Segrillo: Eu acho que inicialmente a Rússia, o Putin, ele achou que seria uma operação militar, como ele coloca, mais fácil. Algo como aconteceu em 2014, que ele entrou na Crimeia e tomou simplesmente a Crimeia da Ucrânia. E realmente poderia ter sido assim, mas ele não contava com a ajuda uníssona e tão unida do Ocidente para a Ucrânia. Isso possibilitou que a Ucrânia estabelecesse uma espécie de empate técnico até hoje. A Rússia é muito mais forte que a Ucrânia em termos militares, mas a Ucrânia, que também não é um exército pequeno, a Ucrânia tem o 3º maior exército em número de soldados da Europa. Com a ajuda ocidental, ela conseguiu mais ou menos igualar esse jogo. E nós estamos nesse empático técnico atual, em que a Rússia não consegue tomar totalmente a Ucrânia, como foi seu objetivo inicial, que era a tomada da capital, e nem a Ucrânia consegue retomar aqueles territórios que foram tomados pela Rússia. 

Falando desse apoio uníssono em relação à Ucrânia, recentemente o Ocidente aprovou um novo envio de armas ofensivas para a Ucrânia. Isso em um cenário de uma expectativa de uma nova ofensiva russa. A gente pode esperar uma escalada da guerra no curto prazo? 

Esse é o grande problema. Uma escalada até para fora de Rússia e Ucrânia, o que seria o pior cenário. Por enquanto essa escalada está sendo gradual. Eles estão usando uma guerra convencional – e muito convencional mesmo –, é mais uma batalha de tanques, etc., nem os aviões estão sendo muito usados, mas esse impasse por muito tempo está desgastando os dois lados, a Ucrânia, certamente, em termos militares, mas a própria Rússia tem sentido a sua economia, está empurrando com a barriga de certa maneira, através de vários controles estatais, uma espécie de economia de guerra. Mas isso não pode durar muito tempo. Então é uma situação perigosa esse impasse, esse empate técnico, que não está levando a lugar nenhum. Está lembrando até aquela famosa guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mundial, em que ninguém avançava muito, nem pra lá, nem pra cá. Isso não pode ser mantido por muito tempo. Algum fator novo vai acontecer. 

Qual é esse fator novo que você acha que pode surgir para mudar essa guerra de esgotamento? 

Bom, aí há vários caminhos possíveis. O pior de todos é uma generalização do conflito, envolvendo outros países, envolvendo a Otan. Pior ainda se envolver armas nucleares. Essa é uma possibilidade, de resolver esse conflito escalando. Agora, guerras começam às vezes surpreendentemente, mas também às vezes terminam surpreendentemente. Se a gente pegar uma fotografia estática do momento, nós esperaremos uma guerra que vai durar muito tempo. Como a gente falou, nem a Rússia consegue ganhar totalmente, nem a Ucrânia consegue retomar totalmente. Então se a gente simplesmente ver uma fotografia estática do momento, (haverá) uma guerra por longo prazo. Mas como nós mencionamos aqui, os países estão tendo desgaste e esse desgaste não pode ser levado por muito tempo. Então pode haver algum movimento de que, pelo desgaste de um dos lados (...) eu não acredito que vai se chegar a algum acordo de paz duradouro, porque os interesses são muito opostos. Eu acredito que talvez o cenário mais provável seja uma coisa tipo o final da Guerra da Coreia, que foi uma trégua, não há um acordo de paz na Guerra da Coreia. Houve uma trégua que dura até hoje, simplesmente cessaram os movimentos bélicos e essa trégua dura até hoje. Me parece que vamos caminhar para isso em algum momento devido à exaustão dos dois lados. 


Captura tirada de um vídeo divulgado pela 93ª Brigada Mecanizada "Kholodnyi Yar" mostra uma visão aérea de combates e destruições na cidade de Bakhmut em 26 de fevereiro de 2023 / 93ª Brigada Mecanizada "KHOLODNYI YAR" / AFP

Voltando aos objetivos da Rússia e sobre esse empate técnico que você mencionou, há um impasse muito claro que é o fato de que a Rússia anexou quatro regiões ucranianas, do leste do país, que são as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporozhye e Kherson. Ao mesmo tempo a Ucrânia reivindica que são território ocupados pela Rússia. Isso já implica em uma questão constitucional para a Rússia, que esses territórios já fazem parte da Federação Russa. Nesse sentido, é mais um elemento de impossibilidade de um acordo. 

Isso, porque a Ucrânia atacando estes territórios, seria como se a Ucrânia atacasse a própria Rússia. E na doutrina militar russa, se houver um ataque à Rússia, uma ameaça existencial à Rússia, eles podem usar até armas nucleares. Mas a Rússia não domina essas quatro regiões totalmente, ela domina parte dessas regiões. Então não vai ser uma coisa nova ter uma batalha nessas regiões, porque já há uma batalha nessas regiões, e a Rússia não está usando armas nucleares. O principal cerne do que eu acho que a Rússia não vai entregar é a Crimeia. Por dois fatores. A Crimeia era a região onde os russos étnicos eram realmente a maioria da população, mais de 50%. Nessas outras regiões, os russos étnicos eram muito numerosos, mas não chegavam nem a 50% da população. Porque a Crimeia até 1954 fazia parte da Rússia, então esse é o movimento, porque há muitos russos étnicos lá, mas principalmente na Crimeia está a sede da frota russa de águas quentes. Então é um lugar estratégico demais para a Rússia deixar. Então ali eu acho que seria um problema se a Ucrânia conseguisse retomar a Crimeia, porque aí estaria a frota russa toda lá e aí (seria) uma grande confusão. Agora, nos outros territórios eu acho que vai se encaminhar para mais um desses conflitos congelados que há naquele espaço pós-soviético, como por exemplo a Transnístria, na Moldávia, a Ossétia do Sul e a Abkházia, na Geórgia. São conflitos congelados, que não são resolvidos, ninguém aceita o status quo, mas não há batalhas no momento. 

Essas regiões se inserem muito no que o presidente russo, Vladimir Putin, fala sobre o "mundo russo". Como é a configuração dessas regiões em relação às suas populações. A gente vê que essa guerra é também um efeito da crise da Ucrânia de 2014, quando o país se dividiu, tornando-se um país dividido, por um lado pendendo para a União Europeia, por outro lado tendo muitas populações se reivindicando como russos. Nessas regiões (do leste ucraniano), qual é o alcance dessa proximidade com a Rússia? Há uma noção clara sobre isso ou é mais uma retórica russa para atingir seus objetivos militares? 

Para entender isso, nós temos que entender que aqueles são Estados multinacionais. Nos Estados-nação do Ocidente, nos Estados nacionais tipo o Brasil, França, EUA, Inglaterra, a nacionalidade de uma pessoa é determinada pelo chamado "Jus soli", direito de solo. Se nasceu no Brasil, a primeira geração é brasileira. Naqueles Estados multinacionais, a nacionalidade de uma pessoa é determinada por um princípio diferente, o "Jus Sanguinis", direito do sangue. A nacionalidade de uma pessoa é a nacionalidade do pai ou da mãe, e não tem nada a ver com o local que ela nasce. Ou seja, isso determina as diferenças que aqui nós chamamos de diferenças étnicas. Se fala em "diferentes etnias na Ucrânia",  mas lá eles chamam de diferenças nacionais. É um Estado com diferentes nações dentro dele. Isso é que complexifica muito. Como eu falei, você tem lá cidadãos ucranianos de nacionalidade ucraniana, que aqui a gente diria etnia, mas lá você tem cidadãos ucranianos de nacionalidade russa. Aqui a gente diria etnia russa, mas isso não explica a complexidade de lá, porque são diferentes nações convivendo dentro de um mesmo Estado. Então isso cria problemas, por exemplo, de lealdade. Os cidadãos ucranianos de nacionalidade russa da Ucrânia, qual é a lealdade principal? É o país de cidadania que é a Ucrânia ou é a nação a qual pertencem, que é a nação russa? A resposta concreta varia de indivíduo para indivíduo. Nem todos os cidadãos ucranianos de nacionalidade russa são a favor do que o Putin fez, muitos são contra. É claro que no meio da guerra, eles não podem falar muito contra. Então eu acredito que a maioria dos cidadãos ucranianos de nacionalidade russa lá são mais ligados à Rússia, então há esse problema internamente na Ucrânia, porque mesmo que eles retomem essas regiões, essas pessoas vão estar lá, então o que fazer com elas? Foi o grande problema de 2014. Havia um presidente que era cidadãos ucraniano de nacionalidade russa, o Victor Yanukovich, e ele foi derrubado. Aí o país se dividiu. Os cidadãos ucranianos de nacionalidade ucraniana acharam que isso foi certo - generalizando -, e os cidadãos ucranianos de nacionalidade russa acharam que foi errado derrubar aquele presidente, e eles estão até hoje nessa guerra civil, que agora essas regiões separatistas acabaram passando formalmente para a Rússia. Então é importante colocar que além do problema do Estado contra Estado, há esse problema que são Estados multinacionais e que há diferentes nações convivendo no mesmo Estado, então complexifica mais ainda, não é só a Ucrânia retomar aquelas regiões. Retomar, por exemplo, a Crimeia. E o que vai ser feito com aqueles mais de 50% da população que era cidadãos ucranianos de nacionalidade russa, e muito ligados à Rússia? Cria um problema interno. 

Falando sobre a situação política interna da Rússia. Se a gente pega a retórica da Ucrânia e de muitos líderes ocidentais, lembrando que foi até aprovado um decreto na Ucrânia determinando que negociar com a Rússia só seria possível com um novo presidente no país. E há essa retórica de muitos líderes ocidentais de que Putin deveria sair do cargo, há uma demanda por isso na comunidade internacional. Mas ao mesmo tempo, Putin vem demonstrando uma resiliência, uma força política muito forte. Então muitos prognósticos não se concretizaram. Como você avalia essa resiliência do presidente Putin no poder? O que sustenta sua força política no Kremlin? 

A popularidade inicial do Putin no início dos 2000 foi pela recuperação econômica da Rússia. A Rússia nos anos 90 sob Yeltsin teve uma depressão econômica, não foi nem uma recessão, foi uma depressão econômica. E quando Putin entrou, foi o período da recuperação econômica, então ele se tornou muito popular. Agora, no momento atual a economia não vai tão bem, já antes não ia tão bem, mas a questão da guerra, nós aqui no Brasil às vezes temos dificuldade de entender isso, porque nós não entramos frequentemente em guerra, mas existe um fenômeno que os especialistas chamam de "Rally 'round the flag", se enrolar na bandeira, e quando há uma guerra, por exemplo nos EUA, democratas e republicanos brigam entre si, mas quando há uma guerra externa com soldados americanos indo lá, eles se unem. Na Rússia está acontecendo algo semelhante. A maioria dos russos apoia o Putin nessa guerra, porque o que os russos veem na televisão não são ucranianos sendo bombardeados, são russos étnicos da Ucrânia sendo bombardeados pelo governo central ucraniano. Então a narrativa é que eles estão indo lá para ajudar os russos étnicos da Ucrânia, e muitos cidadãos, principalmente os de idade mais velha, digo de idade mais velha porque não usam tanto a internet, veem mais o que passa na televisão, e apoiam o Putin. Agora, há resistência também ao Putin, porque está diminuindo, porque a repressão fez muitos fugirem do país. Houve uma onda inicial de pessoas que simplesmente não quiseram mais (ficar no país), porque junto com a guerra, veio junto uma forte repressão política, porque você não pode nem falar em "guerra" lá, porque está arriscado a ir para prisão por causa disso. Então isso levou a uma onda inicial de pessoas que fugiram da Rússia por causa da questão política, e houve uma segunda onda agora quando houve a convocação militar para guerrear, aí muitos jovens fugiram da Rússia. Então a oposição diminuiu também em parte por causa disso, parte da oposição simplesmente saiu da Rússia. Então temos essa situação de que o Putin tem uma resiliência, não só pelo seu projeto antigo de recuperação econômica da Rússia, como muitos o apoiam, acham que a Rússia é uma grande potência, que a Otan não pode chegar perto, compram o seu argumento de que a Otan é uma ameaça à Rússia e o apoiam nessa ação na Ucrânia. 

Com os desdobramentos da guerra, quando falamos sobre as sanções, o notório isolamento da Rússia em relação ao Ocidente, se discute muito o lugar da Rússia no mundo, que lugar ela pode vir a ocupar após a guerra. Na historiografia sobre a Rússia existem correntes diferentes que discutem isso. Queria que você falasse um pouco sobre que correntes são essas e, eu sei que você tem uma tese de que o Putin seria na verdade um ocidentalista moderado em alguns momentos do seu governo. Queria que você ilustrasse essas correntes de pensamento e respondesse se com a guerra há uma inflexão sobre a posição do Putin. 

Eu escrevi uma tese que saiu em um livro chamado "Rússia: Europa ou Ásia?", que é sobre esse debate identitário fundamental na Rússia que já vem de séculos. A Rússia está na Europa e está na Ásia. A maior parte de seu território, mais de 75% está na Ásia, mas por território ela é basicamente asiática. Agora, em população é ao contrário, a parte europeia é muito mais densamente povoada e mais de 75% da população está na parte europeia. Então nesse debate os russos não tem consenso sobre ele. Afinal, a Rússia é Europa, é Ásia, é uma mistura dos dois, é nenhum dos dois? E não há consenso entre os russos. Formaram-se três grandes escolas principais sobre isso: os ocidentalistas, que seguem Pedro, o Grande, que acham que a Rússia é basicamente europeia e tem que seguir o caminho do desenvolvimento ocidental; os eslavófilos, que são aqueles que acham que a Rússia não é nem Europa, nem Ásia, que é uma civilização própria, única, e deve seguir o seu próprio caminho; e os eurasianistas, que, simplificando um pouco, acham que a força da Rússia é exatamente a mistura do princípio eslavo-europeu com o princípio turco-mongólico-asiático, que isso que daria uma força à Rússia. Os mongóis dominaram a Rússia por dois séculos, entre os séculos XII ao XV, então tem uma grande influência asiática ali. Então os intelectuais se dividem entre essas três grandes escolas. E eu lancei uma tese controversa, (sobre) onde o Putin se localiza. O Putin é um político pragmático. Ele evita tomar uma posição muito clara nesse debate, porque ele sabe que se ele se identificar muito com uma escola, ele pode alienar as outras. Mas no meu livro eu investigo algumas falas dele, também de alguns assessores, então eu chego à conclusão que Putin é originalmente um ocidentalista moderado. Eu digo moderado porque ele veio depois do Yeltsin, e o Yeltsin é um ocidentalista mais aberto. Porque ele é um ocidentalista moderado? Ele tem um livro, que em inglês se chama "First Person", que é uma espécie de autobiografia dele narrada a jornalistas, e que tem um momento que ele fala que "nós, russos, somos europeus", coloca isso claramente. Eu também fiquei conhecendo alguns assessores próximos deles, como Igor Shuvalov, e outros, que também corroboraram com isso. E o Putin, no início da sua carreira, ele procurou se aproximar do Ocidente. Essa questão com a Otan, no início dos anos 2000 ele tentou se aproximar da Otan, mas não conseguiu ter o diálogo de igual para igual, isso que é importante. Ele quer que a Rússia seja tratada como grande potência. A Rússia historicamente sempre foi uma grande potência na época do período czarista, ou uma superpotência na época da União Soviética. Os anos 90 foram uma exceção na história. E Putin só aceita ver a Rússia como uma grande potência. Então eu acho que ele tentou se aproximar do Ocidente, da Otan, mas a Otan, o que muitos russos não entendem, como uma aliança da Guerra Fria que era contra a União Soviética, não só continua a existir depois do fim da Guerra Fria, como se expande em direção à Rússia. Eles veem isso como uma coisa não amistosa. E o Putin tentou fazer acordos no início, mas ele não conseguir. E agora ele se defronta com esse problema, não porque ele seja anti-ocidental a priori. Tem um outro termo em russo que é "Gosudarstvenik", "Gosudarstvo" em russo significa Estado, "Gosudarstvenik" é aquele que defende um Estado forte pra Rússia. Ele não quer um liberal, ele não quer um Estado fraco e um indivíduo forte. Para ele, o Estado russo deve ser um Estado forte. E ele defende esse Estado. Como ele vê a Rússia como uma grande potência, ele defende esse Estado contra ameaças, seja elas vindo do Ocidente, seja do Oriente.

Esses dilemas parecem semelhantes com os da Ucrânia. Falando da Ucrânia, a gente consegue identificar um caminho sem volta para um ocidentalismo? Ou a Ucrânia tende a ficar dividida em uma crise que pode perpetuar? 

Pois é, na Ucrânia é mais confuso ainda, porque a Rússia se manteve há séculos como um Estado próprio, mas a Ucrânia, stricto sensu, só teve um Estado próprio em 1991, com o final da URSS, porque os ucranianos ao longo da história estiveram sempre retalhados entre vários impérios. Uma parte do Império Russo, uma parte do Império Otomano, uma parte no Império Austríaco. Então a Ucrânia tem uma experiência com um Estado próprio, independente e estável, muito recente. Além disso, como nós falamos, também é um Estado multinacional. Uma parte do que nós chamamos de russos étnicos - que lá são chamados de nacionalidades russas e cidadãos ucranianos -, são mais ligados à Rússia. Agora, os cidadãos ucranianos de nacionalidade ucraniano, que até pouco tempo atrás, nos anos 90, também eram bastante ligados à Rússia. Não havia um europeísmo tão forte. [...] Se achava que sempre ia ter uma relação próxima com a Rússia, só que com a questão da invasão russa à Ucrânia, agora houve uma radicalização total. Os cidadãos ucranianos de nacionalidade ucraniana, que antes tinham certa ligação com a Rússia, 99% deles vão dizer - podendo ter uma sobra estatística - tem ódio da Rússia atualmente. E só veem como a única forma capaz de salvá-los da Rússia é se alinhando com o Ocidente. Então isso talvez seja a outra coisa que saiu pela culatra do Putin, que ele, ao anexar aquelas regiões onde os russos étnicos eram muito numerosos, ele separou as pessoas que eram pró-Rússia da Ucrânia e deixou na Ucrânia, no resto da Ucrânia, só as pessoas que se voltaram contra a Rússia. Então isso também é uma das razões pelas quais ele não havia incorporado aquelas regiões separatistas antes, porque ele sabia que aquelas regiões separatistas, sendo parte da Ucrânia, talvez com uma autonomia, ele teria uma influência interna na Ucrânia muito forte. Só que agora isso acabou, e o resto da Ucrânia, de maioria de cidadãos ucranianos de nacionalidade ucraniana, odeia a Rússia, a grande maioria, fora alguma sobra estatística, e querem desesperadamente se ligar ao Ocidente, como forma de poder sobreviver aos ataques russos.

Fica claro que as perspectivas de negociações de paz, com um possível acordo, estão muito longe do horizonte, o que pode acontecer é talvez um trégua. Se a gente pensar nessa trégua possível, quais são os caminhos para paz possíveis? Se a gente inclusive lembrar a retórica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que quer liderar um grupo de países para moderar esse conflito e talvez chegar a algum acordo de cessar-fogo. Você vê algum caminho possível nesse sentido com a interferência de outros países? 

Eu acho que é uma possibilidade, inclusive, de uma trégua que cesse as hostilidades nesse momento, que pode vir desse caminho meio exótico, talvez até do Brasil, porque muitas vezes os dois lados estão tão incensados um contra o outro, que para ter trégua tem que ter negociação, mas às vezes a negociação tenha que ser feita trilateralmente, indiretamente, como foi aquele acordo sobre grãos. Eles (Rússia e Ucrânia) não estavam nem falando diretamente uns com os outros, estavam dialogando através da Turquia e da ONU. Então talvez acabe acontecendo alguma coisa assim também, que eles não consigam dialogar diretamente, mas indiretamente, através de alguma iniciativa, eu acho que a ONU vai ter que entrar nisso, mas até de algum país como o Brasil, que não se mete muito nem com um, nem com outro. É uma grande possibilidade que a trégua venha por aí, já que eles não estão nem falando direito uns com os outros. 

Edição: Vivian Virissimo