A Bolívia retomou seu plano de industrialização do lítio, a partir de uma parceria com China, firmada há poucas semanas, com a promessa de ampliar a capacidade de produção anual do composto químico, fundamental na fabricação de baterias elétricas para equipamentos eletrônicos e automóveis.
O atual presidente boliviano, Luis Arce, assinou um convênio com o consórcio CBC - integrado pelas companhias chinesas Contemporary Amperex Technology Limited (CATL), Brunp e China Molybdenum Company Limited (CMOC) - para instalar duas plantas de produção de carbonato de lítio nos salares bolivianos de Coipasa e Uyuni.
Com investimento de mais de US$ 1 bilhão (quase R$ 5,2 bilhões), cada planta teria capacidade de produzir 25 mil toneladas por ano de carbonato de lítio. Para se ter uma ideia, mesmo batendo recorde, em 2022 a produção anual boliviana do composto foi de apenas 600 toneladas, ou 40 vezes menos do que a estimativa de cada fábrica, segundo dados divulgados recentemente pela estatal Yacimientos de Lítio Bolivianos (YLB).
Vale lembrar que o lítio boliviano já esteve no centro de diversos impasses internacionais e até tentativas de golpe de Estado. Em 2019, o ex-presidente boliviano Evo Morales afirmou que o golpe contra seu governo, em novembro daquele ano, foi um “golpe pelo lítio”. Durante a última campanha eleitoral, o atual presidente boliviano, Luis Arce, reafirmou a fala de Evo: “o golpe não foi contra os indígenas, mas pelo lítio. Foi desenhado por transnacionais interessadas em sua privatização e na do gás”.
No mesmo ano, o dono da fabricante de carros elétricos Tesla e agora segundo maior bilionário do mundo, Elon Musk, confirmou esse interesse no já famoso tweet em que afirmou “vamos dar golpe em quem quisermos!”, em resposta a um usuário que acusava os Estados Unidos de organizar o golpe para, justamente, beneficiá-lo.
O projeto
A construção das plantas industriais deve ocorrer após os primeiros seis meses do convênio, que serão dedicados a estudos. Sua operação iniciará em 2024, seguindo o acordo comercial firmado entre Bolívia e China.
“Até o primeiro trimestre de 2025, a Bolívia já deve estar exportando baterias de lítio, com matéria-prima nacional”, afirmou Luis Arce na cerimônia de assinatura do convênio.
O ministro de Hidrocarbonetos e Energias, Franklin Molina Ortiz, afirmou que o consórcio construirá a planta e vai operá-la sob um modelo de prestação de serviços para YLB. “A Bolívia está implementando um modelo bastante revolucionário, onde tanto a exploração, como a industrialização e a comercialização são propriedade da YLB, ou seja, a YLB tem cem por cento de participação”, disse ao canal Bolivisión. “A propriedade, em nenhum momento, passa a ter outras características: aqui não tem associação de 50%-50%, a propriedade é da YLB”.
Mercado aquecido
Em 2022, a CATL voltou a ser a líder mundial no mercado de baterias para carros elétricos pelo sexto ano consecutivo, retendo 37% do mercado mundial, segundo um relatório divulgado no começo deste mês pela sul-coreana SNE Research. Já a Brunp é sua subsidiária dedicada à reciclagem de pequenas baterias recarregáveis e baterias automotivas. A CMOC tem atuação na indústria de metais não ferrosos; no Brasil é uma das maiores produtoras de rocha fosfática .
Com o acordo, a Bolívia começará a utilizar a tecnologia de Extração Direta de Lítio (EDL), que pode economizar tempo e água na extração do metal. A tecnologia foi desenvolvida pela chinesa Xi'an Lanshen New Material Technology, e anunciada em 2021 como um grande avanço.
O método tradicional de extração de lítio é feito através de piscinas de evaporação. O engenheiro Salvador Beltrán, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da YLB, explica um dos motivos pelos quais a implementação pode mudar significativamente a exploração do lítio no país: “Diferente do Salar de Atacama [no Chile], que é um lugar árido, o Salar de Uyuni tem muita umidade e chove muito, portanto com as piscinas do método tradicional leva de doze até dezoito meses para ter uma matéria-prima processada para extrair carbonato de lítio, e com tecnologias de Extração Direta de Lítio podemos fazê-lo de forma imediata”.
Os preços do carbonato de lítio bateram um recorde em novembro de 2022, chegando a quase 600 mil yuans/tonelada. Segundo índice da Benchmark Minerals Intelligence, em 2022, os preços do lítio subiram até 10 vezes em relação aos níveis históricos, com oferta não acompanhando o crescimento da demanda.
O que outros países da região fazem com seu lítio
Diferente de seus vizinhos Chile e Argentina, o lítio na Bolívia é nacionalizado. Isso aconteceu em 2008, quando o interesse na exploração do metal era muito menor que o atual. Os três países formam o Triângulo do Lítio e respondem por cerca de 60% das reservas identificadas do mineral, segundo relatório da US Geological Survey de janeiro deste ano.
No Chile, parte dos parlamentares constituintes apresentaram, no ano passado, propostas para regulamentar a mineração chilena de cobre, lítio, e acabar com as concessões privadas determinando a soberania do Estado sobre essas explorações. As propostas, porém, foram rejeitadas pela Convenção Constitucional, e sequer chegaram a versão do texto final da nova Constituição, que também acabou sendo rejeitada em plebiscito.
O debate sobre a nacionalização do lítio na Argentina também ganhou força nos últimos anos, com propostas de criação de uma empresa estatal de lítio, discutidas em um país onde os bens minerais pertencem às províncias. O setor empresarial argentino, representados pela Cámara Argentina de Empresarios Mineros (CAEM), Unión Industrial Argentina (UIA) e a Cámara Argentina de la Construcción (Camarco), tem se oposto à iniciativa.
Com 880 mil toneladas de reservas identificadas de lítio, o Peru se encontra em 13° lugar na lista da US Geological Survey. Dois meses antes do recente golpe contra Pedro Castillo, o chamado Bloque Magisterial de Concertación Nacional apresentou no parlamento peruano um projeto de lei para nacionalizar a prospecção, exploração e industrialização do lítio no país.
A aprovação de um projeto desse tipo implicaria na desapropriação da mina Falchani, da canadense American Lithium Corp, na província de Puno. Segunda a própria companhia, trata-se do 6º maior depósito de lítio de rocha dura do mundo.
O modelo boliviano serviu recentemente de exemplo para o México, 9° em reservas de lítio no mundo, com 1,7 milhão de toneladas. Em 2022, o governo de Manuel López Obrador conseguiu que o Congresso mexicano aprovasse sua proposta de reforma da Lei de Mineração, feita fundamentalmente para nacionalizar o lítio. Meses depois, López Obrador criou a empresa estatal Lítio para México (LitioMx).
Lítio no Brasil
O Brasil, por sua vez, possui 730 mil toneladas do recurso, 8% das reservas globais. A exploração vinha sendo feita fundamentalmente pela Companhia Brasileira de Lítio (CBL) e a AMG Brasil, filial da Amg Advanced Metallurgical, dos Países Baixos.
No ano passado, Bolsonaro assinou o decreto 11.120 possibilitando a entrada de transnacionais na exploração e comercialização do lítio e de todos seus derivados.
A primeira beneficiada foi a canadense Sigma Lithium que já é 100% proprietária da Grota do Cirilo, no Vale do rio Jequitinhonha (MG), o maior depósito de lítio de rocha dura das Américas. A empresa prevê embarcar em abril deste ano 15 mil toneladas de concentrado de lítio para a China, segundo jornal Valor Econômico.
À diferença dos países anteriormente mencionados, não há no Brasil propostas ou debate destacado sobre estatização ou nacionalização do lítio.
Reação estadunidense
A preocupação dos Estados Unidos em perder acesso ao lítio da região torna-se cada vez mais evidente. No início deste mês, o líder da maioria democrata no Senado dos Estados Unidos, Chuck Schumer, pediu que o Congresso aprovasse o mais rápido possível um acordo tributário com o Chile que visa eliminar a dupla tributação para as empresas estadunidenses.
“Por causa da política atual, as empresas americanas enfrentam dupla tributação no Chile e estão em grande desvantagem em comparação com outras nações como a China. Não queremos que a China obtenha esse lítio”, disse Schumer ao Senado estadunidense.
Em uma entrevista recente no canal do YouTube da empresa de estudos estadunidense Atlantic Council, a general Laura Richardson, comandante do Comando Sul dos EUA, afirmou ter conversado com os embaixadores do seu país na Argentina e no Chile, junto a executivos das empresas estadunidenses do setor do lítio Livent e Albemarle para discutir a exclusão de competidores da região, em referência principalmente à China.
Edição: Rodrigo Durão Coelho e Sarah Fernandes