"Uma coisa que fica muito nítida para gente nesse pacote é que no final ele leva para a internação". É dessa forma que Michel de Castro Marques, redutor de danos do Centro de Convivência É de Lei, administrador e especialista em Saúde Pública, se refere ao Reencontro, pacote de medidas lançado em janeiro em São Paulo para "solucionar" a situação das pessoas em condição de vulnerabilidade social e vício de substâncias psicoativas na Cracolândia.
De autoria das gestões pelas gestões Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador do estado, e Ricardo Nunes (MDB), prefeito da capital, o programa também prevê internação e ampliação de vagas em comunidade terapêuticas, além de mais ações policiais e melhoria do acesso a serviços de saúde e assistência nos locais do centro.
A análise do especialista foi feita poucos dias antes da declaração feita pelo coronel Álvaro Batista Camilo (PSD), novo subsecretário da Sé, de que poderia usar armas químicas para expulsar as pessoas vulneráveis da região. "A ideia é trabalhar com inteligência para evitar que chegue ao ponto de ocupar o território. Vai chegar o momento que vai precisar usar munição química? Vai", disse ao site Metrópoles.
Na esteira de afirmações como a de Camilo, há um histórico de medidas copiadas de outras gestões para o local. "Entra governo, sai governo, e são sempre as mesmas medidas tomadas em relação ao uso de drogas na cidade de São Paulo. Focam muito numa região específica sem pensar em qual que é a problemática", diz Michel em entrevista ao Brasil de Fato.
O integrante do Centro de Convivência É de Lei também desaprova a criação do Departamento de Comunidades Terapêuticas pelo governo Lula (PT) e aponta caminhos possíveis para um tratamento pautado nos direitos humanos e na singularidade de cada pessoa.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: O novo pacote de medidas para a "Cracolândia" contou com a participação de membros da sociedade civil e das pessoas diretamente envolvidas para discutir as propostas como o É de Lei?
Michel de Castro Marques: Nós nunca fomos chamados para compor ou construir qualquer política nem do município, nem do estado. Tivemos uma conversa com o governo de São Paulo mas que foi apenas para apresentar o É de Lei, nós não pudemos opinar em relação a nenhuma construção dessa política que está posta.
Qual é a situação hoje das pessoas que estão em situação de vício de substâncias psicoativas na região central de São Paulo?
Entra governo, sai governo e são sempre as mesmas medidas tomadas em relação ao uso de substâncias psicoativas na cidade de São Paulo e aí focam muito numa região específica sem pensar nas problemáticas, nas questões sociais, no acesso à saúde, na educação e na moradia principalmente. A Cracolândia é um reflexo da desigualdade social e ela escancara toda a miséria social. Essa é uma problemática que precisa ser olhada, para além do número de pessoas.
Uma coisa que é importante a gente lembrar é que durante a operação chamada "Caronte", da Polícia Civil no ano passado, a chamada Cracolândia se pulverizou por diversos espaços na região central da cidade e em outras regiões, e os trabalhadores passaram a ter mais dificuldades em acessar essas pessoas e ofertar cuidado. Esse conjunto de políticas que não oferecem propostas de cuidado, mas que oferecem situações de violações de direitos das pessoas, não ajudam em nada.
O que se vê hoje é o encaminhamento de pessoas para os serviços de saúde de forma compulsória, algemadas, no qual elas têm que escolher entre um tratamento ou serem presas. Não podem de fato escolher qual o tipo de cuidado que elas querem ter em relação àquele momento que elas estão vivendo, é uma tristeza muito grande.
Qual a sua avaliação sobre o uso da chamada Justiça Terapêutica para usuários de substâncias químicas que cometem infrações leves? Levando em consideração que a Polícia Militar é quem faz as abordagens.
Qualquer possibilidade de cuidado compulsório tende ao fracasso. A gente precisa pensar quais são as políticas que são de fato efetivas para essas pessoas, quais são as demandas. Teve um apontamento há pouco tempo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na conclusão do relatório eles colocam que para cerca de centenas de pessoas que estão nessa região há bastante tempo são necessários serviços de baixa exigência, como os centros de convivência. São esses serviços que precisam ser ofertados para essas pessoas que estão no território. Precisamos de fato abrir um leque de opções, que não seja a compulsoriedade de um tratamento.
Ainda sobre o pacote, há uma medida que possibilita o pagamento de um auxílio para famílias que acolheram familiares em situação de vício nas substâncias psicoativas. Como o É de Lei vê essa alternativa?
Muitas dessas pessoas têm o vínculo rompido com as famílias, muita vezes essa relação pode ser o fator de escolha da pessoa fazer uso de substâncias, muitas dessas pessoas podem ter sofrido violências dentro de casa e acabaram vendo como a sua única possibilidade estar em situação de vulnerabilidade na rua, fazendo uso de drogas. Fazer com que essa pessoa retorne para casa, para a família receber dinheiro que não será revertido muitas vezes num processo de cuidado, não vai funcionar. A gente entende que a melhor possibilidade de política de cuidado para as pessoas que estão em situação de vulnerabilização nas ruas é feita por um tripé: trabalho, saúde e moradia.
As pessoas precisam ter acesso a moradia para conseguir ter segurança, precisam ter trabalho e renda e acesso a serviços de saúde que contemplem as suas demandas e o momento de vida que elas estão. E é por isso que a gente defende tanto os CAPS [Centros de Atenção Psicossocial] e as unidades de acolhimento. Os próprios centros de convivência, a gente não tem hoje uma política instituída de respeito à singularidade das pessoas. De um projeto terapêutico pensado numa possibilidade de planejamento e de perspectiva do futuro das pessoas, trabalhando o fortalecimento de protagonismo, a atenção psicossocial, é isso que é necessário ser ofertado para essas pessoas. Olhar cada pessoa com uma necessidade.
Uma coisa que fica muito nítida para gente nesse pacote é que, no final, ele leva para a internação. pessoa não tem uma uma real opção de um cuidado em liberdade, de um cuidado no território.
Ainda com relação ao pacote de medidas do governo de São Paulo, o vice-governador Felício Ramuth (PSD) afirmou que quem apoia as câmeras nos uniformes dos policiais também deve apoiar o uso destes equipamentos nas ruas para reconhecimento facial.
Há uma grande diferença da câmera na farda, que é para olhar a atividade do policial, evitar a violência, do que o reconhecimento facial de uma tecnologia que pode não ter o reconhecimento real, confundir e que tem como princípio buscar pessoas que são alvos da violência institucional, reconhecer pessoas pretas, pessoas periféricas.
São diversos os casos aí que estão sendo julgados, ou de pessoas presas injustamente por conta do reconhecimento de imagens que não são fidedignas e que acaba incriminando uma outra pessoa. Então nessa ocasião ela muito mais vai atrapalhar do que ajudar. Essa tecnologia pretende proteger quem, de quem? É uma proposta vazia.
Qual a sua visão sobre a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas pelo Ministério do Desenvolvimento Social do governo federal?
Uma coisa que a gente precisa voltar a discutir é a comunidade terapêutica como ponto de cuidado na RAPS [Rede de Atenção Psicossocial]. Nessa perspectiva, não podemos aceitar que um tipo de equipamento público seja violador de direitos humanos. O CFP [Conselho Federal de Psicologia] fez, há alguns anos, algumas visitas em comunidades terapêuticas e tem um relatório que joga luz sobre todas essas violações de direitos humanos que acontecem nesses locais. Inicialmente a gente precisa partir desse lugar da discussão, a comunidade terapêutica é um espaço violador de direitos humanos.
A criação desse departamento vai para uma direção equivocada e que foi muito negociada entre o setor das comunidades terapêuticas com o governo. Esse governo precisa olhar para as políticas públicas que estão implantadas, que são tipificadas e avaliar se isso realmente cabe para o cuidado das pessoas. Além disso, é importante dizer que nós apoiamos a doutora Sônia Barros, uma profissional não médica, enfermeira, para assumir a coordenação do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, até agora sem nomeação.
É inconcebível que a gente acredite que tenha que ter um serviço que viola os direitos das pessoas, uma violência institucional, como o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, isso não pode acontecer na nossa frente e a gente ficar calado.
Como funcionam as estratégias de cuidado na redução de danos?
Uma possibilidade de redução de danos muito conhecida hoje em dia é intercalar uma dose de álcool com uma dose de água. Então você vai desidratar menos. Uma outra estratégia de redução de danos para quem faz uso de crack fumado, seria utilizar uma piteira, colocada nesse cachimbo e cada um tem a sua, isso vai fazer com que a pessoa não queime o lábio, que não fique exposta a uma bactéria, ou até mesmo pegar uma Hepatite B.
A redução de danos trabalha com estratégias pontuais e específicas para as pessoas, são várias possibilidades para cada demanda de cada pessoa singular. Ela vem na contramão da proibição. A gente tem um diálogo e um debate muito aberto sobre uso de substâncias, sobre as questões de infecções sexualmente transmissíveis, do HIV, da tuberculose, das hepatites, que é justamente levar informação pras pessoas, poder falar sem tabu. A guerra às drogas e o moralismo inibem esse a discussão.
Qual a expectativa de vocês com relação a comunicação com o novo governo federal?
Acho que o papel do advocacy nessa seara toda é justamente levar para o governo, levar para os parlamentares e principalmente para a sociedade, não só para a sociedade civil organizada, mas sociedade geral: o que é e por que a guerra às drogas é tão prejudicial para as pessoas.
A política de guerra às drogas é uma política racista, que não consegue olhar o sujeito na sua totalidade. Por outro lado, o fenômeno das drogas acontece desde que a "humanidade é humanidade". A droga acontece e ela vai continuar acontecendo. Então precisamos conseguir mostrar para as pessoas que vamos precisar aprender a conviver com esse fator na sociedade. E aí o nosso papel é justamente conseguir discutir o tanto de vida que pode ser poupada, a importância das pessoas entenderem o que que são as drogas, o que são as substâncias, para criar recurso interno de poder escolher se quer ou não usar.
Apesar de tudo a expectativa é positiva porque a gente tem um parlamento com pessoas que conseguem falar sobre essas questões. Inclusive aqui na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo nós tivemos um pequeno avanço com a disponibilização da cannabis medicinal no Sistema Único de Saúde (SUS), é uma pontinha pequenininha dessa política de guerra às drogas que estamos conseguindo quebrar.
Edição: Thalita Pires