Em 2023, comemora-se o centenário de nascimento de Mãe Hilda Jitolu, líder e fundadora do Ilê Axé Jitolu, um terreiro de tradição Jeje, no bairro do Curuzu, em Salvador. Com mais de 50 anos à frente da casa, o papel de liderança religiosa se estendeu por toda a comunidade. Ela foi mãe, conselheira e uma grande incentivadora da educação.
Ao longo dos seus 86 anos de vida, Mãe Hilda desenvolveu um extenso trabalho de conscientização na comunidade negra. Tanto através de projetos, como na Escola Mãe Hilda, idealizada por ela e instalada nas dependências do seu terreiro, quanto através do seu trabalho como Ialorixá e matriarca do Ilê Aiyê.
Filha de negros brasileiros, Mãe Hilda nasceu em 6 de janeiro de 1923, 35 anos após a abolição da escravatura no país. Neta de africanos, Hilda dos Reis Dias é nascida em Dia de Reis e tem Reis também no sobrenome. Como ela mesmo comentava, “se eu sou mulher e nasci neste dia, logo, eu sou rainha!” Reinado esse que segue o seu legado, inspira e empodera muitas outras mulheres pretas da Bahia.
Inspiração e Caminhos
Valéria Lima é neta de mãe Hilda e conta do sentimento de fazer parte dessa história. “É uma alegria ser de uma família que é grande e que nasce grande a partir dela. Uma mulher que sempre foi muito forte, muito acolhedora. Eu fui cuidada por ela e tive a oportunidade de cuidar dela também. Era uma mulher vaidosa, eu vivi momentos fazendo as unhas dela, trançando os cabelos, essa troca de amor e muito cuidado”, relembra.
Além da relação familiar, Valéria se lembra da avó como uma mulher forte que fez com que todos ao redor acreditassem no próprio potencial e quisessem ser fortes também. “Ela conseguiu realizar os sonhos dela em vida. Conseguiu cumprir com a missão dela, e eu, enquanto neta, tenho, hoje, a oportunidade de dar continuidade a esse legado”, declara Valéria que é Ekedy de Obaluaê do Acé Jitolu, jornalista e mestre em Estudos Étnicos.
Das mulheres, Dete Lima é a filha mais velha de Mãe Hilda Jitolu. Até hoje ela guarda os ensinamentos aprendidos com a mãe. “Nós nascemos aqui. Todos os filhos dela nasceram aqui nessa casa no Curuzu, onde ainda hoje funciona o terreiro. No nosso desenvolvimento, o orgulho de ser negro nos fortaleceu. Nascer em uma família sabendo que você é negro, é bonito, que pode entrar e sair de qualquer lugar, isso ajuda qualquer criança a ter a cabeça erguida”, declara Dete.
Ela se lembra de um momento único na infância do qual jamais se esquecerá. No quinto ano do ensino fundamental, ao perder uma disciplina, ela foi à escola acompanhada da mãe. Naquela oportunidade, a diretora da escola disse a elas que já não encontrava uma menina que quisesse ser empregada doméstica. “Minha mãe disse muitas coisas a ela, e uma das coisas que, para mim, foi forte de ouvir é que ela podia procurar essa empregada doméstica aonde ela quisesse, mas que ali, a filha não ia ser empregada nem dela e nem de ninguém”, relembra Dete ao ser retirada, imediatamente, da escola por Mãe Hilda para matrícula em um novo lugar.
“Ela colocou a couraça na frente para me defender”, relembra com emoção e constata que anos depois, a própria mãe fundou a Escola Mãe Hilda. “Ela dividiu esse terreiro aqui em duas salas com um tecido para ensinar as crianças que não tinham registro e não podiam ir para uma outra escola. As crianças da comunidade e os filhos de santo dela”, conta Dete ao reconhecer essa criação como uma grande vitória e um grande saber.
Ângela Guimarães, secretária de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi), também reconhece que Mãe Hilda Jitolu abriu muitos caminhos. Ela defende que é muito oportuno no seu centenário fortalecer a história, a memória e o legado que se expandiu para o Brasil e para o mundo. “Ela é uma figura icônica de uma importância incomparável para luta antirracismo, para a cultura negra, para a promoção dos direitos da população negra”, declara a secretária.
“Hoje, a gente tem uma Secretaria de Promoção da Igualdade Racial se deve a essa luta iniciada lá atrás. Luta que ela recebe dos seus antepassados, passa adiante e, hoje, chega à terceira geração da sua família”, declara Guimarães.
Mãe Hilda e o Ilê Aiyê
A ação social da Ialorixá Mãe Hilda Jitolu se desenvolveu em várias frentes, e a sua contribuição foi decisiva para a concepção do trabalho desenvolvido no Ilê Aiyê. Antes do primeiro bloco afro do Brasil nascer oficialmente e de ganhar as ruas, foi o olhar dessa mulher visionária que incentivou os filhos a criarem uma agremiação carnavalesca que contemplasse pessoas negras.
Não é à toa que o Ilê nasce sob o lema de “o mais belo dos belos”. Sob outra contribuição feminina valiosa, o figurino acrescenta identidade ao trabalho do bloco. Feito à base de amarrações e sem qualquer costura, a técnica é empreendida pelas mãos da diretora artística, Dete Lima. É ela a responsável por vestir no próprio corpo as Deusas e Rainhas do Ilê Aiyê.
Dete nos diz que, hoje, cria a partir do que aprendeu com a mãe, ao vê-la cuidar dos Orixás. “O Ilê Axé Jitolu foi a minha universidade, foi a minha escola. Quem me deu régua e compasso para fazer tudo o que eu faço foi Mãe Hilda e o Ilê Aiyê”, afirma.
Ângela reconhece que o nascimento do bloco afro Ilê Aiyê demarca para sempre a história do carnaval baiano e a história das organizações negras culturais no Brasil. “A partir dele, existem vários blocos afro no Brasil inteiro. No Maranhão, no Rio, em São Paulo, em Sergipe, inspirados no Ilê Aiyê. Essa é a presença que permanece”, declara a secretária da Sepromi. Ela defende que se, na atualidade, há ascensão da luta antirracismo no Brasil, deve-se a iniciativas como essa também. “É de dentro do Ilê Axé Jitolu que nasce a criação do primeiro bloco afro do Brasil”, reforça.
Instituto Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu
Para celebrar a potência que é mãe Hilda e também como o propósito de manter vivo o legado de mulheres negras, Valéria Lima assume a direção executiva do Instituto Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu. “Com respeito, cuidado, amor e, ao mesmo tempo, para mostrar que o trabalho dela continua. Ela segue viva na gente, na referência e na motivação para desenvolver projetos, para criar e acolher mulheres negras. Esse é o papel do Instituto”, afirma Valéria.
“Criar um ambiente acolhedor para mulheres negras. Um ambiente onde elas possam vir, aprender uma atividade, aprender um bordado, aprender produtos de cunho cultural, ancestral. Eu cresci vendo a minha mãe trançar cabelo e fazer amarração. É exatamente esse o papel do Instituto também. Oferecer formações a essas mulheres. Para a sustentabilidade delas e também para a sustentabilidade do Instituto”, declara Valéria.
Uma outra frente do Instituto é o trabalho de preservação e memória. Por isso, ao longo de 2023, Valéria tem planos de lançar a biografia de Mãe Hilda. Uma pesquisa inédita, resultado da sua dissertação de mestrado. Ainda como parte das celebrações dos cem anos, o Instituto deve lançar um documentário sobre a trajetória dessa importante Ialorixá.
O propósito é dar o primeiro passo através da história de mãe Hilda para contar a história de outras mulheres negras também. “Eu como jornalista não posso me distanciar do meu ofício. E enquanto organização social, pretendo dar visibilidade e continuidade a trajetória de mulheres negras para que mais meninas se sintam representadas e acreditem que elas podem ocupar espaços”, declara Valéria.
Edição: Gabriela Amorim