Coluna

A produção de energia renovável precisa ser justa, limpa e solidária para todos

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Jovens do Polo da Borborema em visita à comunidade Pau Ferro, na zona rural de Caetés/PE - Edson Silva / AS-PTA
No semiárido paraibano, famílias defendem a produção a partir de placas solares nos tetos das casas

Por Articulação nacional de Agroecologia


Se por um lado existe um apelo mundial por energia renovável, que impacte menos o ambiente e não intensifique as mudanças climáticas, por outro, populações do campo têm sofrido com a utilização de seus territórios pelas grandes empresas de energia eólica e solar. 

Projetos de instalação de parques eólicos têm despertado muitas preocupações em moradoras/es do Nordeste. Uma delas é ambiental, pois, para a instalação dos empreendimentos, a caatinga, vegetação típica da região e já bastante ameaçada, é desmatada para a abertura de estradas e instalação do aerogerador, provocando desequilíbrios na fauna e flora. A produção de alimentos é impactada por vários motivos e um deles é o processo de desertificação do solo, que enfraquece com a perda de cobertura vegetal.

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O barulho das hélices tem trazido também distúrbios psicológicos aos moradores, prejudicando o sono, a saúde mental e a qualidade de vida dos mesmos. As mulheres, por sua vez, trabalham mais dentro de casa limpando a poeira gerada nas instalações e operações das torres. Existem relatos também de rachaduras nos solos, nas cisternas e casas dos moradores da região. 


Casa e cisterna com aspecto de abandonada na beira da estrada alargada na comunidade para a construção de um parque eólico / Adriana Galvão / AS-PTA

No território da Borborema, semiárido paraibano, um movimento de resistência é protagonizado por mulheres agricultoras e as juventudes do campo. Desde maio do ano passado são realizados atos públicos, como a 13ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, em Solânea, e a 9ª Feira Cultural e Agroecológica da Juventude do Polo da Borborema, em Campina Grande. Além de audiências públicas que são chamadas pelas Câmaras de Vereadores a partir de solicitação dos sindicatos e Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável dos municípios. Também aconteceram intercâmbios em outras regiões da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, formações da juventude e mutirões para levar informações para as comunidades rurais que estão na rota das empresas. Uma verdadeira campanha para blindar o território agroecológico desses empreendimentos. 

De acordo com Roselita Vitor da Costa, assentada da reforma agrária e liderança do Polo da Borborema, um coletivo que envolve 13 sindicatos rurais e cerca de 150 associações comunitárias, há uma desigualdade muito grande na relação das empresas com as famílias camponesas e é preciso entender melhor os impactos da energia renovável e “dita limpa” na região e saber quem se beneficia com o modelo centralizado de geração de energia. 

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Torres a menos de 500 metros de distância das moradias. Esse é o limite mínimo estabelecido no Brasil para esse distanciamento / Adriana Galvão / AS-PTA

“O mundo pede por uma energia renovável e limpa por uma questão de sobrevivência ambiental, mas ela não pode ser justa para as empresas e prejudicial às comunidades. Não diminui, inclusive, a conta de energia das famílias: (a família) produz e (a energia) não fica no território. Não pode ser limpa para a produção industrial e do agronegócio e ser suja e degradante para o semiárido brasileiro. Precisa ser justa, limpa e solidária para todos”, defende Roselita.

No modelo vigente, a riqueza produzida pertence à indústria e as famílias empobrecem e são expulsas do campo pela inviabilidade de sua permanência. Por isso, a resistência aponta como caminho a produção de energia de forma descentralizada, com placas de captação dos raios do sol instaladas nos telhados das casas dos moradores e a venda do excedente energético. Assim como a água foi descentralizada no Semiárido a partir das cisternas ao lado de cada casa rural, as famílias da Borborema pleiteiam que seja feito o mesmo com a energia.

Duas questões-chave nesse processo são a desorganização das comunidades e coletivos a partir da chegada das empresas no território e a obrigatoriedade de sigilo absoluto em torno da assinatura dos contratos, o que mantém as famílias isoladas com medo das altas multas contratuais. “A empresa não procura uma organização de agricultores/as, sindicatos e associações, vai direto nas famílias com uma falsa promessa de que ela vai ter dinheiro, como se fosse uma aposentadoria para o resto da vida. Isso não procede, tudo é um lobby para as famílias assinarem um contrato”, criticou Roselita. 

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A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica) justifica a individualização do convite alegando que os terrenos vizinhos podem não ter o mesmo potencial. Porém, eles afirmam também que, caso o proprietário ou um conjunto deles não queira arrendar seu terreno, a empresa pode optar por outra localização.

Segundo o advogado Claudionor Vital, que presta assessoria jurídica para organizações não-governamentais, os contratos de cessão de uso de terras formulados pelas empresas escondem nas entrelinhas o real objeto do negócio jurídico que é a exploração econômica do potencial eólico do território, que se dá através do acesso às propriedades rurais. 

“Se este é o objeto, as negociações não podem ser individualizadas. É necessário considerar também que os impactos ambientais e à saúde humana causados pelos parques eólicos normalmente extrapolam os limites geográficos das propriedades onde são instalados os aerogeradores e atingem as populações que vivem no seu entorno, tenham ou não autorizado o uso de suas terras pelas empresas eólicas”, considera.

Ele também acrescenta que “a exploração econômica dos recursos eólicos de um território é uma atividade que afeta os interesses das populações que vivem no território. Por serem os ventos um recurso ambiental, trata-se de um bem de uso comum de todos, não se restringindo aos interesses daqueles proprietários cujas terras, por critérios técnicos, oferecem maior viabilidade para a geração de energia.” 

Sobre o sigilo imposto às famílias agricultoras nos contratos, a Abeeólica informou que “os investimentos para os arrendatários precisam ser confidenciais para ter o menor preço e viabilidade no mercado de energia livre”. Argumento contestado pelo advogado justamente porque, nos contratos, não há informações de caráter sensível sobre os aspectos relacionados à viabilidade econômica, investimentos, métodos ou técnicas de operação dos parques eólicos que exijam a proteção jurídica do sigilo de informações.

“Ao contrário, as famílias agricultoras são persuadidas a assinar os contratos sem ter acesso a informações basilares sobre os recursos eólicos disponíveis no território e seu potencial para geração de energia ou a dados técnicos do projeto de instalação e operação dos parques eólicos como dimensão, potência instalada, área afetada e possíveis impactos socioambientais”, alega Vital.

Ele acrescenta que a cláusula de confidencialidade tem muito mais o efeito de dissuadir os proprietários de terras a buscar esclarecimentos para a proteção dos seus direitos, assim como para pleitear melhores ofertas para a cessão de uso de suas propriedades rurais, tendo em vista que as terras com elevado potencial eólico têm sido bastante disputadas pelas empresas do setor.

Sobre o fato de as famílias, muitas vezes, não se beneficiarem da energia produzida, a Associação afirma que a distribuição é realizada pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), seguindo a regulação nacional de impostos e preços. No entanto, boa parte da energia gerada pelos parques eólicos nestas regiões é comercializada no mercado livre, não sendo oferecida ao SIN. Pelo mercado livre, a energia é negociada diretamente entre a empresa geradora e os consumidores. Estes últimos, geralmente, localizados em regiões distantes da fonte de geração.


As comunidades perdem áreas de plantio, criação animal, circulação e até brincadeiras das crianças. Os aerogeradores são cercados devido aos perigos desses parques industriais / Adriana Galvão / AS-PTA

“As famílias sem acesso à energia estão concentradas nas localidades de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em muitas destas localidades, estão concentrados os maiores investimentos na geração de energia eólica. E os consumidores dessa energia estão, geralmente, localizados em regiões distantes da fonte de geração”, explica o jurista.

A Abeeólica também argumenta que a geração de renda das famílias é potencializada no processo de arrendamento de terras em áreas com “produção local limitada”. “Com o cumprimento de compensações ambientais, é garantida a fixação do homem no campo e realizados reflorestamentos das espécies nativas com os moradores. O proprietário da terra pode continuar utilizando sua área para criação de animais ou plantações”, garante a Associação que representa as empresas.

Mais um argumento rebatido por Vital: “Os contratos de cessão de uso de terras não delimitam a área da propriedade rural que será utilizada para a instalação do parque eólico, reservando, em princípio, toda a terra para a geração de energia eólica. Com a instalação do parque eólico, as áreas no entorno dos aerogeradores tornam-se de uso restrito pela empresa, com proibição de acesso aos moradores. A área remanescente, quando houver, pode ser usada pelo proprietário da terra, desde que mediante autorização e o seu uso não interfira na atividade de geração de energia. Os contratos de cessão de uso retiram das famílias agricultoras a autonomia sobre a gestão do uso do seu território.”

Outra crítica feita aos contratos estabelecidos pelas empresas é que os contratos não apresentam  o valor exato de quanto os donos dos terrenos arrendados  vão ganhar e nem estipulam o pagamento de uma renda mínima para que não fiquem sujeitos à oscilação dos ventos. 

A Abeeólica justifica a condição: “Os valores são estabelecidos sob critérios variados, de acordo com o período de medição de vento (quando não se gera) e de geração de energia (quando o parque já se viabilizou, venceu leilão ou foi negociado no mercado livre). O pagamento, em geral, é feito segundo o percentual médio (não tabelado), girando em torno de dois mil reais por torre eólica. As empresas alertam que têm recebido denúncias de atravessadores que ficam com parte dos rendimentos, prática condenada pela Abeeólica.”

O advogado rebate o argumento da Associação: “Para a ABEEÓLICA, o acesso às propriedades rurais pelas empresas através dos contratos de cessão de uso potencializa a geração de renda “em áreas com produção local limitada”. Este argumento mostra que as empresas utilizam os atributos de produtividade do solo como critério para aferir e estabelecer o valor da renda da terra nos contratos de cessão de uso, escamoteando a renda diferencial resultante do potencial eólico da região, que passa a ser apropriada pelas empresas, na medida em que não pagam pela exploração econômica dos ventos, principal insumo da geração de energia eólica.”

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares.

** As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo