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"Volta à luta armada foi forçada pelo Exército do Marrocos" diz ministra saaraui sobre guerra

Fatma Mehdi, ministra de cooperação da República Saaraui, conversou com o BdF sobre os desafios da luta por soberania

Fatma Mehdi é responsável por articular a ajuda humanitária que atende cerca de 90% da população do Saara Ocidental - Michele de Mello / Brasil de Fato
Contamos muito com o papel que pode ser desempenhado pelos países da América Latina dentro da ONU

Fatma Mehdi tem passos decididos, caminha pelo deserto do Saara sem vacilar até a Jaima da família Fadel, onde conversamos por cerca de 30 minutos sobre as resoluções políticas recém aprovadas no 16º Congresso da Frente Polisário, realizado nos dias 13 a 20 de janeiro, no acampamento de refugiados de Dajla, na cidade de Tindouf, Argélia. 

Fatma é ministra de cooperação da República Árabe Saaraui Democrática, responsável por articular toda a ajuda humanitária que atende cerca de 90% da população saaraui. "A organização saaraui é um fator fundamental para distribuir a ajuda humanitária. Aqui você não vê ninguém pedindo esmola", destaca a ministra.  

Autoditada no espanhol e no inglês, Fatma estudou Economia, Desenvolvimento e Cooperação pela Universidade Hegoa, no País Vasco, e Comunicação, Planejamento e Participação pela Universidade de Tarragona, em Barcelona. Mehdi é a única mulher da delegação da Frente Polisário nas mesas de negociação com o Marrocos.

Antes de assumir o comando do ministério, em 2019, Fatma também foi Secretária-geral da União Nacional de Mulheres Saarauis por 17 anos e assegura "a mulher saaraui é a base de toda a nossa sociedade". A organização foi criada em 1974, apenas um ano depois da fundação da Frente Polisario. 

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Durante os primeiros anos de guerra contra a invasão armada do Marrocos, entre 1975 e 1991, as mulheres saarauis foram responsáveis por levantar todas as principais estruturas dos acampamentos de refugiados, como creches, escolas e hospitais, transformando a área em verdadeiras Wilayas (estados). Nesta época, as saarauis também tiveram que aprender desde primeiros socorros até disciplinas, como história e geografia, já que foram a força de trabalho primária, enquanto a maioria dos homens lutavam na guerra. Mas as mulheres também entraram para o Exército Popular de Libertação Saaraui, criando uma Escola Militar Especial de Tichla, no acampmento de Auserd. "Queremos estar em todas as frentes", garante a ministra.

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Depois de mais de 30 anos de cessar-fogo, em novembro de 2020, o Marrocos voltou a bombardear o povo saaraui, levando a Frente Polisário a retomar as armas. "A volta da luta armada não foi uma opção, foi forçada pelo exército marroquino e pela marginalização da causa saaraui nos organismos internacionais", assegura.

No novo contexto de guerra, Fatma Mehdi avalia as mudanças na inserção das mulheres na sociedade saaraui e o desafios para a conquista da independência definitiva do Saara Ocidental.

Confira a entrevista completa: 

Brasil de Fato: Estamos no 16º Congresso da Frente Polisário, a organização política que dirige o povo do Saara Ocidental. É o primeiro congresso em situação de guerra, passados 30 anos desde o cessar-fogo com o Marrocos, que agora foi interrompido de forma unilateral pelo Exército do Marrocos. Considerando as discussões que já tiveram no Congresso, as discussões políticas, a volta à luta armada e todo o histórico de violações do Marrocos, além das dificuldades que a ONU vem tendo para fazer o referendo pela independência do Saara Ocidental. Gostaria que comentasse quais as perspectivas sobre este Congresso e o futuro para finalmente conquistar a soberania e a independência do povo do Saara Ocidental.

Fatma Mehdi: Este Congresso acontece em um momento histórico muito importante. Temos a volta à luta armada, que realmente não foi uma escolha do povo saaraui, mas sim uma decisão forçada pelo Exército marroquino, mas também pela marginalização, promovida pelas forças internacionais, da causa saaraui. Principalmente pela ONU, pelo Conselho de Segurança, porque durante mais de 30 anos os saaraui deram suficientes demonstrações de sua intenção de alcançar uma solução pacífica. Começando por aceitar o referendo, aceitar muitos eleitores marroquinos, aceitar o plano de acordo...

Nesses 30 anos, o povo saaraui esteve dando, dando e dando possibilidades, oportunidades para conseguir uma solução pacífica. Infelizmente, a comunidade internacional mostrou que não há vontade real de encontrar um fim para este conflito. É um conflito que realmente fere o povo saaraui, que é vítima desta... Mas o povo marroquino também.

É um conflito que, infelizmente, está ajudando outras forças internacionais. Está alimentando os interesses econômicos delas. Está aumentando o espólio das riquezas do Saara Ocidental. O Marrocos quer um território rico... sem povo. Isso é impossível. Então este Congresso vem justamente neste momento histórico, importante, em que, inclusive, a volta à luta armada está sendo encarada como um erro.

Então, apesar de tudo isso, o povo saaraui, convencido de sua causa justa e de seu direito a usar todas as vias possíveis para defender seu direito, sua terra, não se importa mais com a forma que nos retratam, com os rótulos que coloquem. Por que já demos muitas oportunidades para dar tempo à ONU e às forças, mas infelizmente chegamos à conclusão de que, se não houver guerra, se não houver sangue, se não houver conflito, é como se não estivéssemos aqui, como se não existíssemos. Estamos vendo a guerra da Ucrânia.

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Estamos vendo e não podemos entender como um povo pode ser considerado vítima e outros não, mesmo vivendo em situações piores. Este ano estamos completando 50 anos... Temos muitas gerações que estão muito preocupadas com o futuro. É uma humilhação claríssima por parte das forças internacionais. E, por isso, o povo saaraui decidiu retomar as armas.

Este congresso será muito importante porque marcará as linhas para os próximos 30 anos, quer dizer, 3 anos para esse processo de luta para a liberação do Saara Ocidental. Certo, você é ministra de Cooperação, ou seja, a pessoa dentro da estrutura do governo da República Árabe Saaraui Democrática responsável por tudo relacionado à ajuda humanitária, à cooperação com outros países. Cerca de 90% do povo saaraui hoje depende de ajuda humanitária.

Cerca de 90% do povo saaraui hoje depende de ajuda humanitária. Como é a relação com organismos multilaterais? Qual foi o papel da Missão de Paz das Nações Unidas para atender o povo saarauí (MINUSRO) e da ONU em fazer chegar a ajuda humanitária ao povo saaraui? E de onde vem a maior parte dos apoios?

Eu quero ressaltar um fator que foi muito importante e que garantiu a organização e a distribuição equitativa das ajudas humanitárias, que é a organização saaraui. E é o que disseram também outras organizações internacionais que trabalham nos acampamentos, como as agências da ONU. Dizem que os refugiados saarauis são diferentes de muitos outros. Isso é graças à organização saaraui. Porque, embora estejamos vivendo em terras argelinas, tudo o que diz respeito à organização, à gestão de tudo relacionado aos saarauis é uma gestão própria dos saarauis. Sem a intervenção de ninguém. As ajudas humanitárias geralmente vêm de diferentes vias.

A primeira, naturalmente, sendo refugiados reconhecidos internacionalmente pela ONU, temos as agências da ONU, o PMA, o ACNUR, mas também temos outras agências, como a europeia ECHO, outras organizações internacionais, como a Cruz Vermelha. E também outras ONGs que são contrapartes tanto das agências da ONU quanto outros países que oferecem ajudas que são parte da cooperação internacional aos refugiados mundialmente. Além disso, temos o movimento solidário com o Saara. Principalmente na Espanha, Itália, França... e também o movimento que temos na América Latina.


O abastecimento de água nos cinco acampamentos saarauis é feito quinzenalmente pela Agência de Refugiados da ONU (Acnur) / Michele de Mello / Brasil de Fato

Além de tudo isso, temos ajuda do nosso aliado Argélia, o país que nos acolheu desde os anos 1970 e até hoje está nos ajudando em tudo o que pode. Nos últimos três anos, no meu trabalho como ministra, foram muito complicados. Por que, além da crise econômica em que estamos há muitos anos, veio também o problema da covid e da guerra. Isso provocou o traslado de muitos saarauis que viviam nas zonas liberadas, onde agora há guerra e não dá mais para viver. Isso fez com que as necessidades dos refugiados aumentassem muito. Mas sempre dizemos, tanto para superar a covid quanto para superar o déficit das ajudas internacionais.Eu acho que o povo ou a sociedade saaraui é uma sociedade muito solidária.

Vivendo como refugiados há quase 50 anos, até hoje você não encontra ninguém morando na rua. Não encontra gente pedindo esmola. Não encontra gente sem comida. Esses valores sociais que nós temos sempre estiveram presentes, e graças a eles, apesar do déficit quase crônico nas ajudas humanitárias, essa solidariedade sempre cobriu qualquer necessidade para os saarauis.


Mapa do Saara Ocidental, país com 266 mil km², no norte da África / Michael Gonçalves / Brasil de Fato

Já em 1975, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu a favor do Saara Ocidental, deixando claro que não havia marco legal para a anexação do Saara pelo Marrocos ou pela Mauritânia. A ONU também reconhece o Saara como um território autônomo, assim como vários outros países reconhecem a República Saaraui. Mas, durante todos esses anos, manteve-se um histórico de violações aos direitos humanos, prisões arbitrárias, muitas denúncias, incluindo de tortura, contra os saarauis que vivem na zona liberada e na parte ocupada pelo Marrocos. Quais são os meios hoje para denunciar o que acontece e também responsabilizar o ente ocupante, o ente invasor de todas as violações aos direitos humanos que cometem?

Acho que a luta, em termos de direitos humanos, foi uma dimensão muito bem aproveitada nesses últimos 30 anos. Aproveitando esse processo de paz no qual estivemos durante quase 30 anos. Como sabem bem, a MINUSRO, que veio aqui justamente para trabalhar a questão do referendo e que está controlando a parte do Saara Ocidental, é quase a única missão no mundo que não tem a capacidade de monitorar os direitos humanos. É algo curioso, porque... às grandes forças da ONU convém não trabalhar esse assunto, porque sabem muito bem que o Marrocos é um dos países que não respeita os direitos humanos, que tem um sistema de segurança que só reprime as pessoas.

A França sempre esteve contra de que a MINUSRO no Saara Ocidental possa ter esse mandato. Nós continuamos exigindo, mas sabemos que isso não vai acontecer, porque não é do interesse das forças grandes, principalmente das que são amigas do Marrocos.

A senhora diz que a ONU não é mais um espaço de denúncia, então a quem poderiam recorrer?

Quando os saaraui acodem à MINUSRO, depois de alguns minutos são entregues às forças de segurança marroquinas. E também não há relatórios sobre o que está acontecendo no Saara Ocidental. O Marrocos proíbe a todos de visitar as zonas ocupadas para que não descubram o que está acontecendo. Muitos parlamentares europeus tiveram seu visto negado para visitar os saarauis.

Temos o último caso do enviado especial do Secretariado da ONU. Não permitiram que ele visitasse o Saara Ocidental. E por isso teve que cancelar a viagem, porque não foi autorizada a visita ao Saara Ocidental. Apesar disso, acho que algo que podemos dizer que é bom é a questão das denúncias perante a Corte Europeia.

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A Frente Polisário apresentou muitas denúncias contra a pesca, o comércio, os contratos da União Europeia com o Marrocos. Acho que daí saíram resoluções muito importantes, sobretudo porque estão afirmando exatamente o que afirmou a Corte Internacional em 1975, quando disse que realmente não existe vínculo algum entre o Saara e o Marrocos e que são dois territórios separados, diferentes, e que, para qualquer investimento relacionado às riquezas do Saara, é preciso sempre consultar o povo saaraui e que o único representante do povo saaraui é a Frente Polisário.

Acho que vencemos essa batalha. Ainda estamos esperando as resoluções que serão apresentadas dentro de dois meses, acho. E, sobretudo, ficamos sabendo agora que também dentro dos organismos da União Europeia estão descobrindo muita corrupção, cuja origem é o Estado marroquino.


Chebani Bilal Mahmud estudou medicina em Cuba e agora é o médico encarregado do Hospital de Dajla / Michele de Mello / Brasil de Fato

No Ocidente existe muito preconceito relacionado à religião muçulmana. Toda a estratégia de comunicação dos EUA também teve um papel importante nisso, em tentar retratar a mulher como um ser subjugado na cultura muçulmana, islâmica, enfim. E, estando nos acampamentos saaraui, nota-se que não é assim. Qual o papel da mulher saaraui em tudo o que representa a resistência e, sobretudo, na construção da República?

Eu acho que a cultura saaraui é uma cultura que respeita muito as mulheres. É algo que podemos encontrar em muitos provérbios da cultura saaraui. Não sei traduzi-los ao espanhol, mas posso explicar a ideia. Dizemos, por exemplo, que as mulheres são... Você viu por aí que os homens usam um turbante na cabeça? Há um provérbio que diz que as mulheres, para um cavalheiro, é um turbante, que é preciso colocar acima da cabeça, acima de tudo.

E a mulher é também um... É como o núcleo de uma família. E, quando falamos de família, estamos falando em termos amplos. Porque a família saaraui é muito ampla. Então a mulher é o núcleo da família. 


As mulheres eram a maioria entre os 2 mil delegados do 16º Congresso da Frente Polisario, realizado em janeiro de 2023 / Michele de Mello / Brasil de Fato

Em outro sentido também, para nós, a religião sempre foi algo para melhorar as coisas. Não para piorar. A religião muçulmana pode ser praticada como pessoa. Somos mulheres muçulmanas. O Islã, quando o analisamos, o Islã te ensina a importância de estudar, ensina a importância de colaborar, de ajudar, de respeitar as pessoas, de trabalhar, a importância de trabalhar, então se você não tem conhecimento para trabalhar não vai poder fazer nada.

Então é assim que entendemos o Islã. Como algo espiritual que nos ajuda para colaborar, para melhorar as nossas relações, para estudar, para ajudar os necessitados. Então, para nós, nunca foi um problema.

Além disso, eu queria contar que estando aqui, em Dajla, um dos acampamentos, uma das cidades saarauis, também se nota que foram as mulheres em todos estes anos de resistência que criaram uma vida em todo o acampamento. Então a mulher é protagonista nessa luta.

Sim, a mulher foi protagonista nessa luta e neste momento estamos voltando a esse papel. Porque durante os 30 anos de paz experimentamos uma vida de convivência... em um sentido mais amplo porque os homens, como não havia guerra, passavam mais tempo nos acampamentos. Durante os 16 anos anteriores a 1991, as mulheres foram as que montaram os acampamentos, fizeram os tijolos de adobe para construir hospitais, escolas, escritórios.

As mulheres foram as que montaram os acampamentos

Tinham que estudar de noite para ensinar às crianças no dia seguinte. Tinham que fazer cursos de atendimento especial, cursos para curar as pessoas sem ter experiência, e até hoje temos essa escola, que continua formando muitas mulheres para que sejam enfermeiras, médicas, para capacitá-las para fazer esse serviço. Quase todos os trabalhos nos acampamentos foram levados adiante por mulheres.

Durante os 16 anos de guerra. Hoje estamos voltando a esse mesmo papel. Porque durante 30 anos tivemos que entender como proteger nossas conquistas. Porque não é fácil. Porque estamos falando de uma situação "normal", onde mulheres e homens convivem. Porque, antes desses 30 anos, a maioria nos acampamentos eram mulheres. Por isso foram prefeitas, ministras e até participaram da guerra. Mas, nesses 30 anos, tivemos que estudar nossa experiência, ver como podemos proteger nossas conquistas, porque quando a guerra acabou, voltamos a uma vida "normal" e os homens começaram a se interessar pelas responsabilidades políticas.

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Também não queremos que os homens fiquem sem fazer nada. Eles têm que colaborar, mas respeitando as conquistas que tivemos durante os anos de guerra. Hoje estamos voltando a essa situação. Temos uma escola militar que continua formando mulheres, principalmente as jovens, as que estão interessadas. O serviço militar nunca foi uma obrigação na Frente Polisário, mesmo para os homens. É uma opção livre e temos mulheres interessadas em aprender porque queremos estar presentes em todas as frentes.

Então a cultura agora é um fator muito importante que estamos trabalhando, como é também a guerra, a diplomacia e o trabalho interno. Então a cultura, para nós, mulheres, é muito importante.


Crianças saarauis são fanáticas pelo futebol / Michele de Mello / Brasil de Fato

Hoje, 82 países reconhecem a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), a maioria desses países estão na América Latina. Só Argentina, Brasil e Chile mantêm uma postura neutra. Quais são as expectativas e possibilidades com esta nova onda progressista na América Latina e com o terceiro mandato de Lula no Brasil? Será possível avançar em uma cooperação Sul-Sul?

São sobretudo países que sofreram o mesmo que estamos sofrendo hoje. Sabemos que são os que mais nos entenderão. Estamos muito esperançosos sobre o Brasil, agora com a volta do Lula, pelo pensamento democrático, pelos valores, aos que muitas outras forças não dão muita importância. Mas acredito que com a América Latina nós podemos contar porque são valores ainda muito respeitados, continuam sendo de muito interesse, então achamos que agora temos uma boa oportunidade para concluir os esforços que estamos fazendo há muito tempo com outros governos.

E o meu desejo é concluir, cumprir o objetivo final com a chegada desse último bloco progressista para conseguir um total apoio demonstrado pela abertura de embaixadas para a República Saaraui Democrática.

Também contamos muito com o papel que pode ser desempenhado pelos países da América Latina dentro da ONU e do Conselho de Segurança. E aproveito esta oportunidade para dizer que os países-membros de lá sempre tiveram um papel muito importante durante os últimos anos. Principalmente na defesa do povo saaraui e seu direito à autodeterminação. 

Edição: Thales Schmidt