Era para ser um dia corriqueiro de volta de férias, mas os quatro anos de ataques do agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a invasão de seguidores dele à Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro fazem desta quarta-feira (1º) um dia emblemático para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ministras e ministros realizam a primeira sessão da Corte no ano, abrindo um semestre de trabalhos que tem julgamentos marcados até junho, mas com espaço para outras pautas.
Um dos alvos mais visados pelos golpistas frustrados na barbárie daquele domingo, o plenário do Supremo passou por intensa reforma nas últimas semanas para receber a sessão desta quarta. A pauta para o primeiro dia prevê discussões sobre questões tributárias.
Os debates no plenário físico acontecem sempre às quartas e quintas-feiras. A ministra Rosa Weber, presidente da Corte, publicou um calendário de pautas até o fim deste semestre. Porém, o cronograma tem espaço para que outras discussões não previstas entrem na pauta. Os ataques bolsonaristas devem figurar entre esses temas.
O advogado criminalista José Portella, integrante do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD), lembra que o Supremo já se debruça sobre os atos democráticos antes mesmo dos episódios de 8 de janeiro. Esse trabalho, aliás, é um dos agentes motivadores do ódio bolsonarista contra a Corte, materializado principalmente nos ataques ao ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos.
Há muito tempo, pelo menos desde 2021, Bolsonaro já fazia demonstrações antidemocráticas claras, e isso incluía incitações contra o próprio STF. Desde então, as discussões e investigações avançaram, assim como cresceu a hostilidade e a agressividade dos seguidores do hoje ex-presidente.
"Com o 8 de janeiro, a coisa ficou muito pior. O STF está agindo de maneira mais direta em relação a essas questões que envolvem a defesa da democracia, limites da liberdade de expressão, atos de violência de grande monta. Essas questões todas são de alcance coletivo bastante grande, e elas também lidam com questões centrais da nossa Constituição", destaca Portella.
Para o advogado, o Supremo deve agir de maneira "muito incisiva" neste semestre em relação às manifestações antidemocráticas à medida que o assunto avançar, mesmo que a agenda de discussões anunciada por Rosa Weber não tenha previsto votações sobre o tema.
"A coisa já está fervendo, estamos vendo bastante decisões do Alexandre de Moraes desde as eleições, intensificando bloqueios de redes sociais, bloqueio de bens, prisões. Possivelmente vamos ver decisões, por exemplo, questionando as posses de parlamentares que se envolveram nesses atos de terror de 8 de janeiro", avalia.
Expectativa e confiança
As brechas na agenda divulgada pela presidente do Supremo abrem espaço, ainda, para outras pautas que não foram inicialmente previstas. Entre elas, a tese do marco temporal. Se aprovada, determinará que só poderão ser demarcadas terras indígenas que estivessem comprovadamente sob posse dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal.
:: Entenda o marco temporal e saiba como ele atinge os povos indígenas do Brasil ::
O assunto é de grande interesse dos povos indígenas. Caso a tese seja aprovada, povos que, por exemplo, tenham sido retirados de seus territórios e não o reocuparam até a data de promulgação da constituição perderiam o direito à sua terra tradicional. Por isso, povos originários de todo o país cobram que o Supremo retome o julgamento o quanto antes.
"Existe uma expectativa de que o caso seja pautado e acho que fica um sentimento de confiança no STF, de que vai pautar isso o mais rápido possível", afirma a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA).
A advogada lembrou que Rosa Weber, hoje presidente do Supremo, deu o voto que definiu a questão do marco temporal para comunidades quilombolas. "Ela votou, na época, contra o marco temporal para a titulação das terras de quilombo, então a gente imagina que ela também tem um apreço por essa questão, entende a emergência de se pautar isso", complementa.
Reconstrução
Depois de quatro anos de tensão permanente causada pelo então chefe do poder executivo, Jair Bolsonaro, o Supremo, em tese, dará início a um semestre de trabalho em que não precisará lidar com ameaças, insinuações e declarações desabonadoras vindo do vizinho de frente - STF e Palácio do Planalto são separados por uma distância que pode ser percorrida a pé em cerca de cinco minutos.
Mais que isso, a relação com o Executivo, agora chefiado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), será pautada pelo trabalho de reconstrução ao qual o novo Governo tem se dedicado desde as primeiras horas de 1° de janeiro, quando acabou o mandato de Bolsonaro (embora ele estivesse praticamente calado desde a derrota nas eleições e tenha viajado para fora do país enquanto ainda ocupava formalmente o cargo).
"Um ponto bastante importante são as pautas eventuais que vão se originar do enorme esforço normativo e administrativo do novo Governo, de reconstrução do Estado Brasileiro e de sua viabilidade como instituição com capacidade operacional depois do que foi feito com esse mesmo Estado nos últimos quatro anos. O Governo anterior foi muito bem sucedido na sua pauta de destruição do que havia sido construído nos últimos 40 anos", destaca o advogado Caio Leonardo Rodrigues, especialista em processos com repercussão política.
Para Rodrigues, Rosa Weber já deu provas de sua força na defesa do Estado Democrático de Direito. Por isso, ele avalia que a lista de pautas previstas para o Supremo neste semestre está "aparentemente mais leve que de costume" justamente para que haja espaço de discussões intensas que fatalmente chegarão ao plenário.
"O Brasil precisa se desnazificar, e o Supremo vai ter um papel nisso. Portanto, precisa deixar uma janela para lidar com esse assunto. Os atos antidemocráticos estão postos, mas essa desmobilização das redes neofascistas e neonazistas depende de apuração e de medidas que só a História vai colocar à frente do Supremo", destaca o advogado Rodrigues.
"Para nós, que trabalhamos com um ideal de Justiça, a gente espera que o STF não seja pressionado por ninguém. Nem pela direita, nem pela esquerda, nem pela Frente Parlamentar Agropecuária, nem pela Bancada Ruralista, nem pelos movimentos populares. Que a Corte tenha independência, tenha autonomia e ela possa julgar com base numa interpretação adequada da Constituição e com a garantia de uma tutela desses direitos", complementa Juliana de Paula Batista.
Edição: Rodrigo Durão Coelho