Coluna

Os trabalhadores trouxeram a democracia, e serão eles que irão aprofundá-la

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Funcionários do Striking Frame Group se reúnem para um informe sobre as negociações com a administração em Bolton Hall em 1973 - David Hemson Collection, University of Cape Town Libraries
Ao longo da segunda metade do século 20, uma série de lutas se desenvolveram contra ditaduras

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

A democracia tem um caráter onírico. Ela se espalha pelo mundo, levada por um desejo imenso do ser humano de superar as barreiras da miséria e do sofrimento social. Quando confrontadas pela fome ou pela morte de seus filhos, as comunidades ancestrais podem ter culpado reflexivamente a natureza ou a divindade e, de fato, essas explicações permanecem conosco hoje. Mas a capacidade dos seres humanos de gerar enormes excedentes por meio da produção social, juntamente com a crueldade da classe capitalista em negar à grande maioria da humanidade o acesso a esse excedente, gera novos tipos de ideias e novas frustrações. Essa frustração, estimulada pela consciência da abundância em meio a uma realidade de privação, é a fonte de muitos movimentos pela democracia.

Os hábitos do pensamento colonial levam muitos a supor que a democracia se originou na Europa, seja na Grécia antiga (que nos dá a palavra “democracia” de demos, “o povo” e kratos, “governo”) ou por meio do surgimento de uma tradição de direitos, da Petição de Direito inglesa, em 1628, à francesa Declaração dos direitos do homem e do cidadão, em 1789. Mas isso é em parte uma fantasia retrospectiva da Europa colonial, que se apropriou da Grécia antiga, ignorando suas fortes conexões com o norte da África e Oriente Médio, e usou seu poder para infligir inferioridade intelectual em grandes partes do mundo. Ao fazer isso, a Europa colonial negou essas importantes contribuições para a mudança democrática. As lutas, muitas vezes esquecidas dos povos para estabelecer a dignidade básica contra as hierarquias desprezíveis, são tanto os autores da democracia quanto aqueles que preservaram suas aspirações em textos escritos ainda celebrados em nosso tempo.

Trabalhadores da Coronation Brick marcham pela North Coast Road em Durban, liderados por um trabalhador agitando uma bandeira vermelha / Coleção David Hemson, Biblioteca da Universidade da Cidade do Cabo

Ao longo da segunda metade do século 20, uma série de lutas se desenvolveram contra os regimes ditatoriais do Terceiro Mundo, instituídos por oligarquias anticomunistas e seus aliados no Ocidente. Esses regimes nasceram de golpes (como no Brasil, nas Filipinas e na Turquia) e receberam liberdade para manter hierarquias legais (como na África do Sul). As grandes manifestações de massa que estiveram no centro dessas lutas foram construídas por meio de uma série de forças políticas, incluindo sindicatos – um lado da história que muitas vezes é ignorado. O crescente movimento sindical na Turquia foi, de fato, parte da razão dos golpes militares de 1971 e 1980. Sabendo que seu poder era vulnerável às lutas da classe trabalhadora, ambos os governos militares proibiram sindicatos e greves. Essa ameaça ao seu poder foi evidenciada, em particular, por uma série de greves em toda a Anatólia desenvolvidas por sindicatos ligados à Confederação de Sindicatos Progressistas (Disk), incluindo uma manifestação massiva de dois dias em Istambul, conhecida como os eventos de 15-16 de junho, que atraíram 100 mil trabalhadores. A confederação, criada em fevereiro de 1967, era mais militante do que a existente (Türk İş), que se tornara colaboradora do capital. Não apenas os militares se moveram contra governos socialistas e não socialistas que tentaram exercer a soberania e melhorar a dignidade de seus povos (como no Congo em 1961, Brasil em 1964, Indonésia em 1965, Gana em 1966 e Chile em 1973 ), mas também saíram dos quartéis – com a luz verde brilhante de Washington – para reprimir o ciclo de greves e protestos dos trabalhadores.

Uma vez no poder, esses regimes condenáveis, vestidos com seus uniformes cáqui e os melhores ternos de seda, impuseram políticas de austeridade e reprimiram quaisquer movimentos da classe trabalhadora e do campesinato. Mas eles não podiam quebrar o espírito humano. Em grande parte do mundo (como no Brasil, nas Filipinas e na África do Sul), foram os sindicatos que dispararam o primeiro tiro contra a barbárie. O grito nas Filipinas Tama Na! Sobra Na! Welga Na! [Já chega! As coisas foram longe demais! É hora de greve!] foi dos trabalhadores da destilaria La Tondeña, em 1975, para os protestos nas ruas contra a ditadura de Ferdinand Marcos, culminando na Revolução do Poder Popular, de 1986. No Brasil, os trabalhadores industriais paralisaram o país por meio de ações em Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul (cidades industriais da Grande São Paulo) de 1978 a 1981, lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva (agora presidente do Brasil). Essas ações inspiraram os trabalhadores e camponeses do país e aumentaram sua confiança para resistir à ditadura militar, que entrou em colapso em 1985.

Um grupo de trabalhadores têxteis em greve exige um extra de 5 rands por dia na Consolidated Textile Mill, em fevereiro de 1973.
Crédito: Coleção David Hemson, Biblioteca da Universidade da Cidade do Cabo.

Cinquenta anos atrás, em janeiro de 1973, os trabalhadores de Durban, na África do Sul, fizeram greve por um aumento de salário, mas também por dignidade. Eles acordaram às 3 da manhã do dia 9 de janeiro e marcharam até um estádio de futebol, onde entoaram “Ufil’ umuntu, ufile usadikiza, wamthint’ esweni, esweni usadikiza” [Uma pessoa está morta, mas seu espírito vive; se você cutucar a íris de seus olhos, eles ainda ganham vida]. Esses trabalhadores abriram caminho contra formas de dominação arraigadas que não apenas os exploravam, mas também oprimiam o povo como um todo. Eles se levantaram contra as duras condições de trabalho e lembraram ao governo do apartheidda África do Sul que não se curvariam novamente até que as divisões de classe e de cor fossem superadas. As greves abriram um novo período de militância urbana que logo saiu do chão de fábrica e atingiu a sociedade em geral. Um ano depois, Sam Mhlongo, um médico que havia sido preso na Ilha Robben quando adolescente, observou que “essa greve, embora apaziguada, teve um efeito detonador”. O bastão foi passado para as crianças de Soweto em 1976.

O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Instituto Chris Hani trazem um texto memorável, As greves de Durban de 1973: construindo o poder democrático popular na África do Sul (dossiê n. 60, janeiro de 2023). É memorável em dois sentidos: recupera uma história quase perdida do papel da classe trabalhadora na luta contra o apartheid, em particular da classe trabalhadora negra, cuja luta teve um efeito “detonador” na sociedade. O dossiê, lindamente escrito por nossos colegas em Joanesburgo, torna difícil esquecer esses trabalhadores e ainda mais difícil esquecer que a classe trabalhadora – ainda tão profundamente marginalizada na África do Sul – merece respeito e uma parcela maior da riqueza social do país. Eles quebraram a espinha dorsal do apartheid, mas não se beneficiaram de seus próprios sacrifícios.

Instituto Chris Hani foi fundado em 2003 pelo Partido Comunista Sul-Africano e pelo Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos. Chris Hani (1942–1993) foi um dos grandes combatentes da liberdade na África do Sul, um comunista que teria causado um impacto ainda maior do que causou se não tivesse sido assassinado no fim do apartheid. Agradecemos a Sithembiso Bhengu, diretor do Instituto Chris Hani, por essa colaboração e aguardamos com expectativa o trabalho que temos pela frente.

Quando este dossiê foi para a impressão, ouvimos que nosso amigo Thulani Maseko (1970–2023), presidente do Fórum Multi-Stakeholders na Suazilândia, foi morto a tiros na frente de sua família em 21 de janeiro. Ele foi um dos líderes da luta pela democracia em seu país, onde os trabalhadores estão na linha de frente da batalha pelo fim da monarquia.

Quando reli nosso último dossiê para preparar esta carta, eu estava ouvindo “Stimela” [trem de carvão] de Hugh Masekela, a canção de 1974 sobre trabalhadores migrantes viajando no trem de carvão para trabalhar “profundamente, bem fundo no ventre da terra” para trazer riqueza para o capital do apartheid. Pensei nos trabalhadores industriais de Durban com o som do apito do trem de Masekela em meu ouvido, lembrando-me do longo poema de Mongane Wally Serote, Third World Express, uma homenagem aos trabalhadores do sul da África e suas lutas para estabelecer uma sociedade humana.

– é aquele vento
é aquela voz zumbindo
está sussurrando e assobiando nos fios
milhas sobre milhas sobre milhas
nos fios ao vento
no trilho do metrô
na estrada sinuosa
no mato não silencioso
é a voz do barulho
aqui vem ele
Expresso do Terceiro Mundo
eles devem dizer, lá vamos nós outra vez.

“Lá vamos nós de novo”, escreveu Serote, como se dissesse que novas contradições produzem novos momentos de luta. O fim de uma ordem esmagadora – o apartheid – não acabou com a luta de classes, que só se aprofundou à medida que a África do Sul vai sendo jogada em crise após crise. Foram os trabalhadores que nos trouxeram esta democracia, e serão os trabalhadores que lutarão para estabelecer uma democracia ainda mais profunda. Lá vamos nós de novo.

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo