A frase é do médico pediatra Ricardo Frota, que trata de um bebê, do gênero feminino da etnia Yanomami de um ano e quatro meses que, se fosse sadio, deveria ter 12 quilos. Ele está com desnutrição grave, a doença da fome responsável pela maior tragédia atual da história dos povos indígenas da Amazônia. No Hospital da Criança Santo Antonio, em Boa Vista, capital de Roraima, os indígenas de 0 a 5 anos se recuperam de doenças causadas também pela omissão do Governo Federal, pois são tratáveis em qualquer sociedade, como diarreia aguda, doenças respiratórias, pneumonia, malária, entre outras. Essas enfermidades colocam em risco a vida das crianças que estão sendo resgatadas a cada dia da emergência sanitária e humanitária em que se transformou a Terra Yanomami por causa do garimpo ilegal.
Boa Vista (RR) – "Nessa idade dele [um bebê do gênero feminino da etnia Yanomami] de 1 ano e quatro meses, em média já pesa uns 12 quilos, né Pedro?", indaga o médico pediatra Ricardo Frota em uma conversa com o nutricionista Pedro Oliveira na enfermaria lotada de meninos e meninos desnutridos no Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA), em Boa Vista (Roraima). A agência Amazônia Real visitou a unidade na quinta-feira (26).
"Ele [o bebê] pesa quatro ponto 300 [4,3 quilos]. É o peso de criança de dois meses, três meses", completa Frota. "A desnutrição aumenta a mortalidade das crianças Yanomami."
"Essa criança deu entrada aqui com quadro de desnutrição, doença de base, associada com gastroenterite, diarreia e um quadro de conjuntivite devido a imunidade dele", explicou o pediatra, em entrevista à reportagem sobre o estado de saúde da menina, que passou fome na Terra Indígena Yanomami após o esgotamento dos recursos naturais em razão do garimpo ilegal.
Neste sábado (28), o pediatra Ricardo Frota corrigiu o gênero do paciente, que é feminino e não masculino, como disse anteriormente à reportagem. A idade do bebê é de um ano e quatro meses e não quatro anos, como o médico havia declarado. O pediatra atribuiu o erro ao fato de estar atendendo várias crianças ao mesmo tempo na enfermaria.
O hospital é o único de Roraima que atende pacientes a partir de 29 dias de vida até os 12 anos. Entre esses pequenos pacientes estão indígenas das diversas etnias do estado e venezuelanos. No momento, as enfermarias estão lotadas de crianças Yanomami, entre duas semanas de vida e quatro anos de idade.
O médico Ricardo Frota, que trabalha na unidade desde 2016, explica como é o tratamento da menina com desnutrição grave. "Ele [o bebê] está recebendo o tratamento antiparasitário e medicação polivitamínica. Para a gastroenterite já foi feito o antibiótico, mas ele se mantém no hospital ainda. Pelo menos [aqui] tem um suporte adequado."
A criança é acompanhada pelo pai, que também está desnutrido, assim como a filha mais velha, também internada na enfermaria. Ele não fala português e o intérprete da língua Yanomami não estava no momento da visita da reportagem. A mãe da menina morreu na sexta-feira (27), no Hospital Geral de Roraima (HGR), por consequência de desnutrição grave, problemas nos rins e inflamação intestinal. Ela tinha 33 anos, como apurou a reportagem.
"A gente tinha um quadro de desnutrição [entre as crianças Yanomami] considerado leve. De uns anos para cá começou a aumentar bastante esse número de desnutrição grave e as internações", explicou o pediatra.
Em 2022, de acordo com levantamento da Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista, 703 crianças Yanomami foram internadas no Hospital da Criança Santo Antonio, sendo 58 por desnutrição. Nos primeiros 25 dias de 2023, o hospital já atendeu 27 crianças da etnia com desnutrição grave. Duas crianças morreram por complicações da doença, diz a nota.
A Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista não informou à Amazônia Real o número de mortes de crianças Yanomami na unidade em 2022, assim como não divulgou os dados de internações e óbitos entre os anos de 2019 a 2021, como solicitado pela reportagem.
A capacidade do hospital de emergência é de 211 leitos nas enfermarias e 15 leitos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Já neste ano, conforme a secretaria, de 1º de janeiro até quinta-feira (26), 45 crianças Yanomami foram internadas no HCSA com diversas doenças, sendo que oito estão em estado grave na UTI, conforme os dados de sexta-feira (27). A maioria dos bebês, de 0 a 5 anos, nasceu entre os anos de 2019 a 2022.
Além da desnutrição grave, segundo a secretaria, os diagnósticos de crianças da etnia internadas este mês são de casos recorrente e tratáveis como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que corresponde a 47 casos, desidratação (20), gastroenterocolite aguda (15) e malária (9).
"Alguns dos pacientes apresentavam mais de uma causa de doença na hora da internação", diz nota do HCSA. Os pais das crianças ou acompanhantes, quando estão doentes, também são tratados na unidade, diz a secretaria.
O gráfico abaixo mostra que no dia 2 de janeiro ocorreram oito internações de meninos e meninas. Em 25 dias, as internações de crianças Yanomami chegaram a 84. Também ocorreram 42 internações de crianças de outras etnias no mesmo período, totalizando 124 pessoas.
No dia 20 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou emergência sanitária e humanitária na Terra Indígena Yanomami (TIY), invadida há quatro anos, período correspondente ao governo de Jair Bolsonaro (PL), por cerca de 30 mil garimpeiros.
Em entrevista exclusiva à Amazônia Real, o líder Davi Yanomami responsabilizou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelas mortes de seu povo. "Quem matou o meu parente, meus irmãos, minha família, foi o [ex-]presidente Jair Bolsonaro. Nos quatro anos que ele ficou junto com os garimpeiros levou a doença, coronavírus, malária, gripe, disenteria, verminose e outras doenças. Foi ele que matou".
A desnutrição afeta o crescimento e o desenvolvimento das crianças. Em 2021, mães Yanomami denunciaram que seus filhos estavam nascendo com má formação por consequência do garimpo ilegal, conforme publicou a Amazônia Real. Outras enfrentam a interrupção da gestação. A água dos rios está suja de mercúrio, contaminando os peixes e as caças. Amamentar se tornou um perigo. E há muitos casos de doenças que poderiam ser facilmente tratadas, como malária, diarreia e pneumonia, conforme denúncia no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, que não foi atendida pelo governo de Jair Bolsonaro.
Antes, durante a crise da pandemia da Covid-19, o governo Bolsonaro entupiu o povo Yanomami de cloroquina para tratar o novo coronavírus, em 2020. A distribuição da medicação, não apropriada para tratar a doença, foi classificada como uma violação por Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY). "Por que o próprio presidente ficou fazendo campanha da cloroquina na Terra Indígena? Falta respeito às lideranças locais, falta consulta, falta dialogar com os representantes do povo Yanomami."
Com a eleição de Lula, as mães fizeram um novo alerta em carta escrita no mês de novembro último e publicada pela agência no dia 12 de dezembro. "Nossas crianças já estão sofrendo os impactos do que está acontecendo agora. Lula, os olhos dos peixes estão mudando. Parecem que os olhos estão soltos e até os animais estão diferentes, parecem magros e doentes. Estamos com medo de comer os peixes doentes. Estamos com medo de que nossas crianças fiquem deficientes", alertaram as mulheres para a catástrofe de 2023. Leia a carta aqui.
O leite materno
A Amazônia Real teve acesso ao interior da enfermaria, com autorização da direção do Hospital da Criança Santo Antonio, em Boa Vista. No bloco G, em uma ala exclusiva para indígenas de diversas etnias, foi possível ver meninos e meninas Yanomami. O local é adaptado às tradições socioculturais e os leitos são com redes.
"Não tem um dia que nossa UTI não esteja com os 15 leitos ocupados e mais da metade é Yanomami", desabafa uma enfermeira que trabalha na Unidade de Terapia Intensiva do HCSA, mas pediu para não revelar o nome.
A profissional trabalha no hospital há sete anos e diz que os indígenas são levados pela Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, órgão do Ministério da Saúde, para o atendimento de emergência, mas "nos últimos três anos a demanda aumentou muito".
As famílias transitam pelos corredores do hospital infantil, ficam sentadas no chão, têm acesso a uma área externa verde e com árvores. Mas o que chama mesmo a atenção de quem passa pelo lugar é o estado de desnutrição das crianças, das mães e dos pais.
Muitas mães de bebês não conseguem produzir o leite materno por causa da desnutrição. É necessário que a equipe médica faça a complementação da alimentação para os bebês com sonda. As crianças apresentam queda de cabelo, cicatrizes e feridas na pele, que estão ressecadas.
Davi Yanomami, líder do seu povo, explicou à reportagem que a terra indígena vive uma corrida do ouro mais grave do que a registrada nos anos 90, quando o território de 9,4 milhões de hectares foi demarcado e homologado, com limites entre os estados do Amazonas e Roraima com a Venezuela. Na ocasião, foram expulsos 40 mil garimpeiros. "O garimpo mata qualquer pessoa, qualquer animal, a vida do rio. São 577 crianças indígenas Yanomami que morreram em quatro anos", acusa.
O chefe da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), Ricardo Weibe Tapeba, disse esta semana que mais de mil indígenas Yanomami foram "resgatados" da terra indígena por causa das doenças. "Pudemos presenciar realmente o estado de calamidade que o território vive. É um cenário de guerra. A nossa unidade de Saúde Indígena, nosso povo lá de Surucucu, assim como a nossa casa aqui em Boa Vista são praticamente campos de concentração".
Além do HCSA, o tratamento de saúde dos indígenas em Boa Vista é realizado na Casa de Saúde Indígena (Casai) e no Hospital Geral de Roraima (HGR). A Casai tem 300 leitos para atendimento e está com o dobro da lotação, 700 indígenas internados.
Como parte do decreto de emergência sanitária e humanitária, equipes do Ministério da Saúde realizam levantamento completo sobre a situação crítica do povo Yanomami. Um hospital de campanha foi instalado pelo Exército. A Força Aérea Brasileira (FAB) já enviou mais de 30 toneladas de alimentos para a terra indígena. A alimentação é enviada também por organizações de apoio humanitário e de combate à fome.
O medo da fome
No HCSA as crianças indígenas internadas recebem alimentação voltada às tradições socioculturais. "Oferecemos macaxeira, batata doce, abóbora, carimã, produtos à base de farináceos e implementamos nas preparações de tapioca, mingau de banana e do peixe, que é a proteína mais consumida e ofertada. Além da alimentação, os pacientes recebem suporte nutricional, para aumentar o valor calórico e recuperar o peso", explica o nutricionista Pedro Oliveira.
Uma funcionária do ambulatório, que pediu para não ter o nome revelado, apresentou preocupação com a alta médica das crianças e a descontinuidade do tratamento na volta para Casai ou para a terra indígena. "A gente percebe que não há um acompanhamento na base. Eles retornam para a Terra Yanomami e não conseguem comer direito novamente. Além disso, eles perdem as datas de retorno para a cidade porque faltam voos – é o que eles dizem quando retornam ainda pior do que quando chegaram no primeiro atendimento".
Davi Kopenawa afirmou à Amazônia Real que irá denunciar novamente o genocídio do povo Yanomami nos Estados Unidos, para onde viajou nesta sexta-feira (27), acompanhado do filho, Dário Kopenawa. Os dois vão participar de uma exposição internacional da cultura indígena. "Vamos pedir às autoridades internacionais que os culpados por essa tragédia sejam responsabilizados e punidos", disse o líder. Veja a entrevista exclusiva no canal do Youtube.
Colaborou Kátia Brasil