Há alguns anos, quando estávamos na reitoria da Unifesp, tivemos uma experiência que não era nova na nossa universidade, mas que foi transformadora para aquele grupo que estava na gestão: utilizar a ciência desenvolvida em nossa universidade e por pesquisadores experientes, em prol das comunidades indígenas.
Incrivelmente resiliente, a Unifesp, mesmo já sofrendo com os cortes orçamentários, que no total duraram seis longos anos e que se intensificou na era Bolsonaro, atuou de maneira diligente. A solicitação vinha de comunidades indígenas do Xingu e de outras regiões da Amazônia e que nossa gestão buscou acionar pesquisadores da universidade para trabalhar e analisar a água das terras indígenas. E foi assim que um conjunto de colegas do Instituto de Ciências Ambientais Químicas e Farmacêuticas, campus Diadema, com seus pouco mais de 10 anos de existência, iniciaria um trabalho de monitoramento da poluição da água, causada pelo garimpo e pelas plantações com uso irregular do solo. Desse trabalho, resultaram teses e o conhecimento sobre o grau de contaminação das cabeceiras dos rios, especialmente pelo despejo de agrotóxicos.
A ligação da Unifesp com terras indígenas não era nova, pois há muitas décadas a Escola Paulista de Medicina já realizava um trabalho que era relacionado à Saúde Indígena, iniciado pelo Dr. Roberto Baruzzi, médico sanitarista e professor , em colaboração com os irmãos Villas Boas. Não foram poucos os trabalhos realizados no Xingu ao longo de 60 anos, onde estiveram inúmeros estudantes de medicina e enfermagem, que viveram a formação profissional e o trabalho acurado e dedicado continuado pelo Dr. Douglas Rodrigues e toda Equipe que coordena o Projeto Xingu da Unifesp. Assim, como Douglas pode atestar, o trabalho de Baruzzi influenciou gerações de professores e pesquisadores da EPM e do Hospital São Paulo.
Foi esse trabalho que possibilitou a realização de muitos programas pioneiros de saúde indígena junto ao Ministério da Saúde. Também como parte dessa história, a Unifesp guarda um acervo que faz parte do Museu do Xingu. Lamentavelmente, tanto os programas de Saúde Indígena conveniados com o Ministério da Saúde, quanto o Museu do Xingu, sofreram fortemente com o corte de verbas e tentativas de destruição de nossas universidades, perpetradas nos anos Bolsonaro. Sem recursos para os projetos e para montar e preservar o museu, trabalhamos para resistir.
O legado de Baruzzi extrapolou a saúde e certamente influenciou as ações de Educação que iniciaram também em nosso período de reitoria. Além do trabalho com a água e com a saúde indígena, a Unifesp tratou de se dedicar em criar também a Educação Indígena, com programas de extensão, com o reconhecimento de saberes e mais recentemente com a licenciatura indígena, feita pelos povos indígenas.
Da mesma forma que a Unifesp, diversas universidades federais atuaram e atuam no apoio e na assistência, especialmente em áreas que foram devastadas ou exploradas pela chamada “civilização”. Como já sabemos, a crise com os Yanomami, que ora estamos assistindo horrorizados, não começou hoje. Ela decorre da ação exploratória e predadora, ocorrida especialmente nos últimos quatro anos. O governo Bolsonaro abriu a crise que se aprofundou e inviabilizou que muitas ações das universidades, e que estavam em andamento, pudessem continuar. A destruição perpetrada por Bolsonaro e o garimpo ilegal está em todos os níveis, o que dificulta hoje, inclusive o trabalho e a atuação dos setores de saúde e de educação. Levará anos até que possamos retomar e sanar essa imensa dor.
A Região Norte do Brasil possui atualmente 11 universidades federais, dentre as quais a Universidade Federal de Roraima (UFRR), que possui diversas ações junto à região Yanomami, bem como para garantir o acesso aos povos indígenas da região à Educação Superior. Destacam-se os programas de Educação Superior Indígena, bem como as atividades dos pesquisadores da área de Antropologia.
Da mesma forma, outras universidades federais de outras regiões desempenham ações e pesquisas para o combate à devastação e para a preservação dos povos indígenas. A Universidade de Brasília (UnB) possui pesquisadores que têm contribuído com a rede Pró-Yanomami e Y’ecuana, inclusive encaminhando denúncias de lideranças ao Ministério Público Federal da ação genocida que estava em curso contra esses povos. Durante a pandemia, realizou estudos e publicou artigos no Brasil e no exterior sobre a grave situação de saúde dos Yanomami.
Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o trabalho com os Yanomami, entre outros, começou em 2013, ano em que Davi Kopenawa Yanomami esteve na UFMG como catedrático do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT). Desde então, foram muitas colaborações Hutukara Associação Yanomami (HAY), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). Porém, tudo foi interrompido entre 2019 e 2022, quando foram descontinuados os recursos do Ministério da Educação (MEC) que eram destinados a estes projetos.
De lá para cá, Davi Kopenawa tem denunciado em diversas ocasiões o descaso, a falta de estrutura e a gravidade da situação de saúde em aldeias Yanomami, como ocorrido na cerimônia de 95 anos de celebração da UFMG, quando também solicitou proteção e formação aos jovens indígenas para enfrentar o quadro de violência e desorganização social que havia se instalado com a invasão de garimpeiros. O reconhecimento a Kopenawa e seus importantes escritos vem de diversas universidades, como a Unifesp que recentemente lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa.
São muitas as universidades federais, com seus docentes e estudantes das Faculdades de Educação e das áreas de Antropologia, que buscam estruturar agora novas ações de forma a retomar a formação de jovens, bem como o apoio ao atendimento em saúde por meio do DSEI local em articulação com a Secretaria de Saúde Indígena, para a formação de agentes indígenas de saúde (AIS). Serão ações que precisarão de tempo, estrutura e muita dedicação, além de um grande esforço nacional para que a assistência e as condições de vida cheguem de fato aos Yanomami.
Conjuntamente, as universidades e nossos estudantes e pesquisadores, certamente crescerão e aprenderão com o conhecimento dos povos originários, que sabem e conhecem a terra e os saberes que dela depreendem para uma vida sustentável, menos predatória e em harmonia com a natureza. E voltamos aos ensinamentos pioneiros de Baruzzi, que também aprendeu com os povos originários e que fez com que a experiência da saúde indígena fosse também uma experiência de vida e de formação que ficou marcada nas vidas e nas trajetórias dos que lá estiveram e estão.
Assim, as universidades continuarão seu trabalho de combate à fome e às doenças, bem como de educação. Mas, o mais importante, serão o lugar do encontro das experiências e dos saberes originais que finalmente farão parte da formação de novas gerações, inseridos no seu contexto e em busca de uma realidade de mais esperança.
* Soraya Smaili, farmacologista, professora titular da Escola Paulista de Medicina, Reitora da Unifesp (2013-2021). Atualmente é Coordenadora Adjunta do Centro de Saúde Global e Coordenadora Geral do SoU_Ciência;
*Maria Angélica Minhoto, pedagoga e economista, professora da EFLCH-Unifesp, Pró- Reitora de Graduação (2013-2017) e Coordenadora Adjunta do SoU_Ciência;
*Pedro Arantes, arquiteto e urbanista, professor da EFLCH-Unifesp, Pró-Reitor de Planejamento (2017-2021) e Coordenador Adjunto do SoU_Ciência.
*Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho