Era madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 quando as sirenes do Corpo de Bombeiros tomaram os ouvidos da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Não era uma noite qualquer. Por volta das 3:15 da manhã deu-se início ao incêndio na boate Kiss, localizada no centro da cidade universitária, que marcaria uma história repleta de traumas, lutas e impunidades.
Boate superlotada sem saída de emergência, extintores que não funcionavam, espumas de isolamento sonoro altamente tóxicas e inflamáveis. Uma banda que, para economizar, utilizou sinalizadores feitos para ambientes abertos, em um ambiente fechado. Seguranças que bloquearam a saída das pessoas pois as comandas ainda não haviam sido pagas. Uma boate com alvará de funcionamento vencido. O resultado: 242 vidas jovens perdidas em uma única noite de verão.
Os intensos processos de luta judicial e política pelos quais os familiares e sobreviventes da tragédia passaram - e ainda passam - resultaram inicialmente em 28 indiciados. Entretanto, após nove anos do crime, quatro responsáveis foram julgados em júri popular, e foram condenados a penas entre 19 e 22 anos de prisão.
Mas o julgamento foi anulado no ano passado. Após recurso do advogado de defesa aceito pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) os quatro réus seguem em liberdade. Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate e Marcelo de Jesus, vocalista e Luciano Bonilha, auxiliar da banda Gurizada Fandangueira aguardam um novo julgamento que não tem data para acontecer.
“Quem foi punido até agora foram os pais, foram as famílias. Punidos com a ausência, com a falta de justiça. A falta de justiça que dói tanto quanto a morte”, afirmou a jornalista Daniela Arbex, autora do livro Todo Dia a Mesma Noite, em entrevista ao Brasil de Fato.
Dez anos se passaram desde a tragédia, mas até agora, nenhum desfecho foi dado ao caso que segue em aberto e ao sofrimento das centenas de familiares, sobreviventes e amigos das vítimas da boate Kiss, que convivem com as marcas daquela noite.
Enquanto isso, a cidade, que coletivamente teima em não esquecer o crime, realiza ano após ano, juntamente com a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), homenagens pela memória daqueles jovens que nunca mais serão esquecidos.
Na semana em que este caso completa aniversário, a Netflix lança a série “Todo Dia a Mesma Noite: O Incêndio da Boate Kiss”, baseado no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, que se dedica a recontar histórias em nome da memória, da justiça e para que nunca mais aconteça.
Confira na íntegra a entrevista de Daniela Arbex ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato: Daniela, como se deu a construção do teu livro Todo Dia a Mesma Noite, que foi lançado em 2018, mas que teve todo um processo anterior de escuta das histórias não contadas ocorridas naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013?
Daniela Arbex: Eu tenho quase 30 anos de carreira e em todo esse tempo eu venho me especializando na escuta do trauma. Todos os meus trabalhos investigativos são relacionados a temas densos, temas que remetem à violação de direitos e nunca é fácil falar sobre isso, mas é altamente necessário e urgente.
Na verdade, eu fui provocada por um colega de redação que tinha conhecido uma enfermeira de Santa Maria pelas redes sociais e ele estava muito impactado com o relato dela e disse 'Dani, você precisa contar essa história'.
Naquele momento eu reagi contrariamente à possibilidade de escrever sobre isso. Disse a ele que era uma história que todo mundo já tinha contado, porque de fato, é uma das histórias mais cobertas pela imprensa no mundo. E também falei pela distância de Minas Gerais pro Rio Grande do Sul. Mas ele insistiu: 'Não, você não tá entendendo, você tem que contar essa história'. E, realmente, a insistência dele mexeu comigo. Eu fiquei pensando o porquê dele estar falando aquilo comigo.
Naquele momento eu já estava caminhando em uma outra direção, na produção do meu terceiro livro, mas resolvi pesquisar nas redes sociais o que as famílias estavam falando.
Eu caí numa página em que um dos sócios da boate Kiss se lamentava pelo fato de não comemorar mais o aniversário dele. E uma mãe escreveu 'você não comemora mais o seu aniversário? E a minha filha que foi comemorar o aniversário dela de 22 anos com mais quatro amigas e nenhuma delas voltou pra casa?'. Eu fui atravessada por essa fala. Isso me tocou de uma forma tão intensa que eu entrei em contato com essa mãe e fui pra Santa Maria.
Quando eu cheguei lá comecei a perceber que as pessoas não tinham contado todas as suas experiências sobre o que foi aquela noite. Por exemplo, os profissionais da área da saúde nunca tinham falado sobre o que aconteceu. Numa entrevista coletiva que eu fiz com alguns deles eu levei um susto porque eles começaram a falar e eles iam chorando e se consolando e aí eu percebi que eles nunca tinham falado sobre isso. Então eu falei 'eu acho que eu posso sim dar a minha contribuição'.
Mas ao mesmo tempo era muito "estranho", porque eu sou uma jornalista de Minas Gerais. Era como se eu fosse uma jornalista estrangeira para eles. Então, vencida essa primeira barreira, eu acabei ficando dois anos no Rio Grande do Sul. Quando passou da vigésima vez que eu voltei a Santa Maria eu parei de contar as idas. Eu tô voltando lá até hoje, nunca mais me afastei dessa história.
Então comecei a oferecer essa escuta qualificada e fui recebendo relatos muito potentes e muito importantes que me fizeram entender a necessidade da urgência de se construir a memória coletiva do Brasil. Porque esquecer é negar a história e, quando a gente esquece, repete os erros do passado. Tudo começou assim.
Você fala em 'escuta do trauma' e esse foi um trauma que abalou uma cidade inteira. Falo como alguém que é de Santa Maria, e esse é um trauma que reverbera forte no imaginário coletivo mesmo 10 anos depois. E dar lugar para essa escuta é importante para que as pessoas também saibam identificar o lugar que elas estão dentro da história, né?
Sabe, Mariana, eu penso muito sobre a necessidade de a gente estabelecer empatia. Porque a gente escuta muitas vezes as pessoas falarem em superação. E eu venho defendendo ao longo destes 10 anos que pedir superação para alguém que perdeu um filho é uma completa falta de empatia com a dor do outro. O livro Todo o dia a mesma noite tem 60 mil palavras e nenhuma que faça referência à superação. Tô arrepiada falando isso pra você.
Então eu acho que esse cuidado e um pouco de delicadeza, pra falar de algo que é tão brutal, é altamente necessário para que a gente consiga fazer a ponte para o coração do outro. Porque esse é um dos papéis do jornalismo. Porque a gente não pode continuar olhando pro que aconteceu na Kiss como algo isolado, que aconteceu lá numa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Não. Podia ter acontecido em qualquer lugar. E se a gente continuar se omitindo e se a gente não construir memória deste fato, vai acontecer em outros lugares.
É óbvio que não vamos trazer esses meninos e meninas de volta, mas nós vamos permitir que outros filhos possam voltar para casa em segurança. O que foi roubado desses 242 jovens, foi o direito de voltar para casa.
E essa história é marcada por uma sucessão de erros, de crimes que foram construindo aquela noite, né?
Eu acho que uma tragédia coletiva como essa só se constrói como uma sucessão de omissões, de equívocos, de decisões erradas, de irresponsabilidades. Então, ali é um conjunto de coisas que fez com que a gente tivesse esse desfecho tão trágico.
Mas ao mesmo tempo eu penso como que o massacre de 242 meninos e meninas continua sem resposta? Isso é algo inimaginável. Jamais pensei que a gente chegaria neste momento sem uma resposta para o que aconteceu e sem a responsabilização das pessoas que contribuíram para que essa noite não terminasse para 242 pessoas.
Esse é um ponto específico muito importante. A gente tá falando de direitos humanos e responsabilizações. Por exemplo, o prefeito Cezar Schirmer foi nomeado secretário da Segurança Pública do estado do Rio Grande do Sul um ano depois do ocorrido...
Sim e eu entrevistei ele como secretário, inclusive dentro da Secretaria. E aí impressiona né? Eu conversei com a assessoria dele, disse que era uma oportunidade: 'Como ele quer ser conhecido na história', foi o argumento que eu usei. E aí quando a gente fez a entrevista eu falei 'olha, as famílias se ressentem muito pelo fato de o senhor nunca ter feito um pedido de desculpas' e ele me disse assim 'eu até podia pedir desculpas, mas desculpas pelo que?' [silêncio].
E aí eu fiquei muito impactada com esse encontro, com esse olhar, enfim. Não que ele não tenha sofrido, acho que a gente pode humanizar um pouco o Schirmer neste livro, mostrando como foi pra ele receber isso. Mas solidarizar-se e se desculpar como responsável por aquela cidade é o que a gente espera dos homens públicos, né?
Mas Daniela, agora sobre a série baseada no teu livro, que também se chama Todo Dia a Mesma Noite, que foi lançada pela Netflix no dia 25 de janeiro. Qual a tua opinião sobre essa produção que vai ao público pelo streaming e que tende a romper bolhas?
Ela vai reverberar, vai muito mais longe do que o próprio livro. Pra você ver quanto tempo tem de maturação e de discussão, a gente começou esse processo em 2019. E eu sempre pensei na possibilidade de adaptação do meu livro pra TV como algo que seria importante para a gente contar essa história para além do nosso universo, do nosso país. E eu tinha certeza de que quando a gente fizesse isso, da maneira como foi feito, ia conseguir furar essa bolha a qual você se referiu.
Eu participei de tudo, acompanhando toda a gravação e também como consultora criativa da série. E a maior preocupação que eu tinha era que a série retratasse a história com delicadeza e respeito, acima de tudo, com o mesmo respeito e delicadeza que eu tive ao escrever o livro. Isso pra mim era primordial.
E a Julia Rezende, que é a diretora e o Gustavo Lipsztein, que é o roteirista, conseguiram fazer isso de maneira muito brilhante, admirável. Ela com o olhar feminino muito sensível, um olhar de mãe também, isso foi muito importante. Ele muito tocado também pela leitura do livro "Todo Dia a Mesma Noite" e entendendo que ele podia ser uma daquelas vítimas.
E aí o resultado é uma minissérie de ficção muito potente. A gente chega no dia 25 de janeiro com cinco capítulos e eu posso te dizer que são absolutamente tocantes. Eu tenho certeza que, quem assistir aos cinco capítulos, não vai conseguir terminar de assistir da mesma forma como começou. É muito potente esse mergulho.
E uma coisa que é um lema da série, é um lema do livro, um lema de todo mundo que contou essa história é o seguinte: a gente tá contando por memória, por justiça e para que não se repita. Eu vejo como algo positivo. Que a gente possa contar para milhões de pessoas. E é tão impressionante, porque embora tenha sido uma história muito coberta pela mídia internacional, a mídia fora do Brasil não acompanhou os desdobramentos.
As pessoas estão muito impressionadas com o desfecho, aliás, com a falta de desfecho. E a gente tá vendo matérias imensas na Itália falando da série, recebemos matéria da Polônia, da Holanda. Na verdade, eu acho que essa série vai poder proporcionar uma reflexão sobre a necessidade da cultura de prevenção, que apesar de tudo isso, a gente ainda não tem. Além disso, precisamos repensar enquanto sociedade para entender que a cultura da impunidade fez com que a gente chegasse até aqui: 10 anos depois sem uma resposta para essas famílias. Então passa por isso tudo.
Passa também pelo longo caminho em busca de justiça no Brasil. Na verdade, quem foi punido até agora foram os pais, foram as famílias. Punidos com a ausência, com a falta de justiça e eu digo sempre que a falta de justiça dói tanto quanto a morte.
Então quando houve o julgamento em júri popular com uma decisão condenatória o que eu senti é que esses pais voltaram a viver. Isso foi unânime. Pais que estavam sem trabalhar havia uma década, dedicados a essa luta, estavam voltando a trabalhar. Pais que emocionalmente estavam separados, se reuniram.
E aí, oito meses depois, essa sensação de justiça é arrancada dos pais. É muito dramático que isso tenha sido imposto para eles de novo. É como se a sociedade dissesse 'tudo o que vocês fizeram até aqui não valeu a pena, não deu em nada, foi em vão'. E não pode ter sido em vão. A série vai mostrar que não foi em vão. Que eles foram grandes protagonistas para que esse júri popular acontecesse. Para que a inversão de valores do Ministério Público virasse contra o Ministério Público quando eles processam os pais e os pais não abriram mão, não recuaram que esse processo fosse até o fim. Então eles foram muito corajosos, eles são muito corajosos, eles têm a minha admiração.
E a pauta da memória, da verdade e pra que nunca mais aconteça, que é o mesmo lema dos mortos e desaparecidos das ditaduras militares e de tantos outros crimes ocorridos tá aí para que a gente possa reescrever essas histórias, né?
É isso. Esquecer é negar a história. Eu tenho escutado algumas críticas, poucas perto de mim, obviamente, mas tenho certeza que devem ter muitas aí pelo país que vão na ideia de 'o que adianta contar essa história? Isso não vai trazer esses meninos de volta'. Como eu falei, esses meninos não vão voltar, mas nós vamos tentar, com essa série, com que outros meninos cheguem em segurança em casa.
Mas é muito mais do que isso. É você eternizar, construir memória do que aconteceu pra aprender alguma coisa com tudo isso. Eu acho que a gente precisa olhar para o passado, não pra ficar preso no passado, mas que a gente possa repensar o presente para transformar o futuro.
Então não dá pra a gente continuar fingindo que nada aconteceu. O silenciamento só beneficia os réus e a impunidade. Eu acho que a gente precisa pensar que o silêncio não é a solução. O silêncio não minimiza a dor dos pais.
Você já protagonizou a produção de outros livros que também remontam histórias e memórias coletivas com a temática de direitos humanos, como é o exemplo de Arrastados, que conta o crime do rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais, que inclusive está fazendo quatro anos nessa semana também. E o livro Holocausto Brasileiro, que conta a história do Hospital Colônia de Barbacena, também em Minas Gerais, que foi responsável por um genocídio de mais de 60 mil pessoas.
Então frente a essas três histórias, eu queria saber como tu enxerga que o teu trabalho possibilita que essas histórias sejam mais conhecidas e mais do que isso, que versões dessas histórias fossem ouvidas e levadas ao conhecimento público. Como tu enxerga o papel social do teu trabalho?
Na verdade, pra começar, esses livros são uma recusa ao esquecimento. E eles também são um sopro de humanidade a partir do momento em que a gente não permite que essas histórias sejam narradas por um único olhar, por uma voz oficial, que tende sempre a minimizar o que aconteceu.
Então quando, no Holocausto Brasileiro a gente dá voz aos sobreviventes que nunca tinham sido procurados e que nunca tinham falado sobre o que passaram depois de década de institucionalização, a gente tem um outro olhar do que aconteceu lá dentro. Porque essa história já tinha sido denunciada na década de 1960 e 70, mas sempre pelo olhar do jornalista e não pela voz das vítimas. Até porque naquela época eles não tinham voz, era uma massa silenciada. E aí, quando eles puderam falar, não tem como esquecer. Você para pra ouvir e você fica marcado, atravessado por aquilo.
E aí vem Cova 312, que é um livro que muda uma versão oficial, que devolve a dignidade que foi roubada, confiscada de um militante político que teve o corpo desaparecido por 35 anos enquanto ele era considerado pela história oficial como um suicida. A gente resgata essa história, mexe nos arquivos e prova que ele foi assassinado pelo Exército. E aí promove também um reencontro com essas famílias, com a família desse militante que não pôde se despedir do seu amor. Só o jornalismo faz isso né? Um desconhecido me leva à presença dos amores dele, dos quais ele não pôde se despedir.
Eu vejo o impacto de Arrastados sobretudo pras pessoas que foram invisibilizadas e que foram grandes heróis nessa história. Nesse caso, o Instituto Médico Legal (IML), que ficou completamente invisibilizado na cobertura do rompimento da barragem e que fez um trabalho inacreditável de identificação de 272 vítimas. E é importante dizer que ainda faltam quatro para serem encontradas. E assim a gente vai poder mostrar que tipo de trabalho foi feito, quem são esses servidores que são tão estigmatizados. É comum pensar o trabalho da Polícia Civil como uma polícia ineficaz e lá gente viu eles fazendo um trabalho fora da curva.
E aí vem o Todo o Dia a Mesma Noite com toda essa potência. A gente nacionalizando essa tragédia porque não dá pra olhar pra isso e pensar que é um caso isolado. Não é. Enfim, todas essas vozes e essas escutas precisam ser feitas.
Então eu acho que meu trabalho é isso, é construir essas memórias, é mudar os olhares, é tirar a gente do nosso lugar para que em algum momento da nossa história a gente se coloque no lugar daquele outro. E aí as coisas acontecem, a gente se transforma e quem sabe, com isso, a gente transforma também o país. Esse é o sonho.
Edição: Rodrigo Durão Coelho