Passados pouco mais de vinte dias da posse de Lula na Presidência da República, os mais importantes desafios encarados pelo governo, aqueles que determinarão os destinos do governo e dos embates políticos travados nesse período de nossa história, parecem se apresentar, principalmente, em duas frentes.
A primeira é a frente da resistência contra o persistente golpismo do campo bolsonarista, que articula elementos do mundo político, um movimento de massas relativamente numeroso e parcelas das Forças Armadas e das forças estaduais de segurança de diferentes regiões. A segunda é a frente da disputa em torno da orientação da política econômica e contra as pressões do capital financeiro e seus porta-vozes nos grandes meios de comunicação para manter o governo preso à pauta fiscalista.
A primeira frente é a mais barulhenta. Mas é na segunda que a guerra deve ser decidida.
Que Bolsonaro e seu núcleo pessoal e político mais próximo sempre tiveram como objetivo, em caso de derrota eleitoral, a manutenção do poder pela via da força é algo que esteve claro desde que essa possibilidade se apresentou de forma mais consistente, com a entrada de Lula na disputa. O que os acontecimentos do dia 8 de janeiro tornaram explícito, para quem ainda tinha alguma dúvida, é que, para além desse núcleo mais próximo, a disposição golpista encontra eco em setores das Forças Armadas e do aparato de segurança pública. Ficou evidente, ainda, que a extensão e a profundidade do apoio desses setores ao golpismo não são suficientemente claras, nesse momento.
A persistência do golpismo e a existência de ramificações importantes entre militares e policiais é, evidentemente, um motivo para preocupação dos segmentos democráticos e populares. A própria existência dessa questão como um tema recorrente do debate público, nos últimos anos, mostra que as famosas “instituições democráticas” não constituem uma barreira intransponível para a sabotagem da vontade popular. Esse é um desafio que terá que ser enfrentado, necessariamente, independente do desenlace das lutas que se travam nesse momento. A força do golpismo, no entanto, deve ser relativizada, no curto prazo.
O golpismo bolsonarista se assenta, principalmente, na negação completa das instituições estabelecidas pela Constituição de 1988 e o roteiro adotado pelo ato golpista do 8 de janeiro explicita de maneira clara essa negação. Os prédios invadidos são a encarnação simbólica dos três poderes da República. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e movimento de massas, é herdeiro direto dos segmentos militares que resistiram à transição da ditadura para uma ordem liberal-democrática, no final dos anos 70, e do campo político, Bolsonaro incluído, que, após o fim da ditadura, adotaram um discurso de negação da nova ordem constitucional e de saudosismo do regime ditatorial.
Ao negar o conjunto das instituições da democracia liberal estabelecida em 1988, o bolsonarismo golpista faz com que todos os principais atores políticos envolvidos com essas instituições se tornem aliados, contra o golpe. Isso vale, inclusive, para o “Centrão”. O bolsonarismo tem como objetivo tornar o controle do Executivo por Bolsonaro permanente, por um lado, e livre de restrições institucionais, por outro.
O Judiciário, que foi a instituição mais diretamente agredida por Bolsonaro, durante seu mandato, é um inimigo inevitável desse projeto.
A função primeira desse poder, no ordenamento liberal, é justamente estabelecer limites aos outros dois: o Legislativo e o Executivo. Para Bolsonaro, isso sempre foi inaceitável.
O Legislativo, encarnado nas lideranças do Congresso e, nesse momento, no “Centrão”, não teve problemas em conviver com um Bolsonaro controlado pela Constituição de 88 e fortemente limitado pelos poderes que ela conferiu aos líderes partidários e das duas casas congressuais. Coisa totalmente diferente ocorreria com um Bolsonaro empoderado, não mais pela Constituição, mas por militares e paramilitares. Essa situação esvaziaria o poder do Congresso e, portanto, não interessa aos seus líderes. A invasão do Congresso, no 8 de janeiro, mostra que não existe equação capaz de preservar o Legislativo da fúria fascista do bolsonarismo.
O Executivo, que é o mais poderoso entre os poderes, esteve nas mãos de Bolsonaro por quatro anos e foi por ele utilizado como instrumento de construção de uma ordem autoritária. Sem sucesso. Nesse momento, esse poder está nas mãos de Lula. E Lula começa a dar mostras de que tem a disposição de usá-lo para desarticular o golpismo e reduzir a politização das Forças Armadas. A demissão do ex-comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, é um exemplo inequívoco dessa disposição.
A unidade dos três poderes contra o golpismo o enfraquece.
Assim como a ausência de apoio externo e mesmo entre o empresariado. Nesse momento, as forças golpistas estão isoladas e suas cartas são ruins. No médio prazo, a tendência é que esse isolamento se amplie. Bolsonaro, sem a caneta na mão, deve ser severamente enfraquecido. Eventuais derrotas judiciais devem aprofundar essa situação. Além disso, ele quase certamente enfrentará alguma disputa dentro do próprio campo da extrema-direita, uma vez que já não reúne condições para exercer de forma inconteste a liderança desse campo.
Tarcísio de Freitas é um rival muito provável, tendo sob seu comando a segunda maior máquina administrativa do país. Zema, governador reeleito do segundo maior estado, é outro. Mesmo no que diz respeito ao segmento mais ideológico e radicalizado desse campo, aquele que se manifesta como um movimento de massas de natureza tipicamente fascista, é possível que novas lideranças venham a surgir. Mas isso é incerto.
Após a derrota acachapante do bolsonarismo nas eleições (acachapante não pela margem, claro, mas pelo fato de que a colossal instrumentalização do Estado para fins eleitorais particulares não foi suficiente para reeleger Bolsonaro), as chances do golpismo estão severamente reduzidas... por enquanto. O que poderia mudar esse quadro seria um fracasso retumbante do Governo Lula. O que nos leva à segunda frente.
Lula precisa imprimir uma clara dinâmica de crescimento econômico, geração de emprego e distribuição de renda, para que seu governo seja visto positivamente pela maioria da população. Caso seja bem-sucedido em relação a esses aspectos, Lula neutralizará a capacidade do fascismo de retomar a ofensiva política e ideológica. Manterá o golpismo isolado.
Mas esses objetivos não serão atingidos sem que o Estado atue como estimulador do crescimento e da geração de empregos. A situação econômica do mundo, hoje, não é mais a dos tempos dos primeiros mandatos de Lula. Já não vivemos sob o impacto positivo do boom das commodities. Os instrumentos do Estado serão muito mais decisivos para gerar crescimento do que foram naquele momento.
Existem duas vantagens, no que diz respeito às expectativas do campo popular em relação à orientação do governo, quando comparamos a situação de hoje com a de 2003. A primeira é o tamanho da tragédia social produzida pelos governos de Temer e Bolsonaro e pela pandemia. Assim como nos EUA da Era Roosevelt, a catástrofe social torna praticamente inevitável a adoção de uma postura ativa, em termos econômicos, por parte do Estado, para gerar crescimento e atender demandas sociais. Isso, por si só, cria uma brecha no paredão fiscalista. A segunda é a postura do próprio Lula, que parece, hoje, ter muito mais clareza da centralidade do papel do Estado no desenvolvimento econômico em uma economia periférica.
Contra essas vantagens, temos a dura resistência dos interesses do “mercado” e de seus porta-vozes oficiosos, que buscam limitar as possibilidades de ação do governo, seja em virtude de seus interesses econômicos, seja justamente por saber que o sucesso econômico de Lula fortalecerá a esquerda para as disputas futuras. A resistência neoliberal se manifesta cotidianamente nos mais diversos segmentos da imprensa. Mas é importante registrar que essa resistência não parece mais tão uniforme quanto já foi. Isso se deve precisamente ao medo que parte dessa imprensa tem do retorno de Bolsonaro.
Lula começou o governo com alguns sinais positivos: a luta pela PEC da Transição, a crítica duríssima ao Teto de Gastos, a recusa a eliminar (a princípio, pelo menos) os mecanismos que permitem segurar os preços dos combustíveis. Mais recentemente, a reafirmação do compromisso com a elevação do limite de isenção do IRPF para R$ 5 mil. Essa última medida, inclusive, além de ter um evidente impacto na capacidade de consumo da população, contribui para reduzir as resistências a Lula junto a parte das camadas médias, que na última década se constituíram no mais importante foco de oposição ao PT.
A capacidade de Lula de imprimir uma dinâmica positiva ao Governo dependerá, com certeza, de muita negociação.
Tanto na frente da luta contra o golpismo como na busca por uma orientação econômica anti-neoliberal. A correlação de forças não está pra peixe. E é justamente quanto a esse aspecto, o da correlação de forças, que as forças populares organizadas podem mostrar sua capacidade de pressionar por um desenlace que favoreça os interesses do povo. A construção de um poderoso movimento de massas em apoio a essa orientação e em defesa da democracia será, com certeza, um fator decisivo para que as forças progressistas saiam vitoriosas. Nas duas frentes.
*Darlan Montenegro é cientista político e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
**Este é um artigo de opinião. A opinião do autor não necessariamente corresponde a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse