Depois que os gastos do Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPFG) de todos os presidentes da República a partir de 2003 foram divulgados, algumas informações incorretas circularam nas redes sociais na tentativa de amenizar o gasto excessivo praticado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Algumas publicações diziam equivocamente, por exemplo, que nos gastos praticados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010, constam apenas os valores utilizados pelo chefe do Executivo, diferente do que teria sido publicado do governo de Jair Bolsonaro (com gastos do presidente e dos ministérios). Nesse sentido, a interpretação errônea seria a de que Lula teria um gasto expressivamente maior do que Bolsonaro, dado que os gastos dos ministérios não teriam sido contabilizados na lista publicada.
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Nas palavras de Felipe Tirado, doutorando em Direito no King’s College London e pesquisador associado do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a relação de gastos que foi disponibilizada diz respeito a gastos dos cartões diretamente ligados ao presidente da República.
“Todos os órgãos da administração pública federal, ligados ao Executivo, têm um cartão corporativo. A gente tem gastos relacionados, por exemplo, ao Ministério da Defesa. Não sei o número de cartões que têm na administração pública, mas são muitos”, afirma Tirado.
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“Esse cartão cujos gastos foram disponibilizados, especificamente, é referente somente aos gastos do presidente, do cartão específico do presidente. A gente pode nem falar que são os cartões da Presidência da República, porque na Presidência da República se tem uma série de funcionários que podem também fazer uso desse cartão.”
Os dados divulgados pelo governo atual, depois que a agência Fiquem Sabendo entrou com o pedido pela Lei de Acesso à Informação, mostram que Bolsonaro gastou R$27.621.657,23 em quatro anos no CPFG. Se corrigido pela inflação, o valor chegou ao final de dezembro como R$ 32.659.369,02. Levando em consideração a inflação entre 2003 e 2022, o valor é maior do que Lula gastou em seus dois primeiros mandatos.
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Ainda assim vale ressaltar que os dados disponibilizados são diferentes dos que estão no Portal da Transparência. Neste último, há o indicativo de valores superiores aos divulgados, segundo o jornalista Luiz Fernando Toledo, cofundador da agência Fiquem Sabendo. "Os dados divulgados na semana passada pelo governo federal falam em R$ 4 milhões gastos no cartão corporativo da Presidência em 2022, enquanto os que estão no Portal da Transparência falam em R$ 22 milhões", afirmou ao G1.
Tal discrepância aponta para alguns questionamentos. "Se a gente não tiver os dados completos, a comparação fica equivocada. A gente sabe, por exemplo, que está faltando divulgar os gastos com o exterior. Muitas viagens para o exterior não aparecem na planilha."
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Entre os gastos do ex-presidente Jair Bolsonaro estão R$ 1,46 milhão em um único hotel, R$ 362 mil em uma padaria, R$ 8,6 mil em sorveterias e R$ 3,39 mil em compras no McDonalds. A maior parte dos gastos é referente a hospedagens durante viagens nacionais e internacionais (R$ 13,7 milhões) e a alimentação e supermercado (R$ 10,2 milhões).
Para Felipe Tirado, os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro extrapolam em diversas vezes os limites estabelecidos pelas legislações, além de conterem transações suspeitas, e, por isso, precisam ser investigados.
Mas o que é o cartão corporativo?
O cartão corporativo foi criado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso para substituir a utilização de cheques. Seu uso foi regulamentado por uma portaria do Ministério da Fazenda em 2002.
Segundo o próprio governo federal, o CPGF “é um meio de pagamento utilizado pelo governo que funciona de forma similar ao cartão de crédito que utilizamos em nossas vidas, porém dentro de limites e regras específicas”.
O cartão é utilizado para as despesas próprias que podem ser classificadas como suprimento de fundos, ou seja, “um adiantamento concedido ao servidor para pagamento de despesas, com prazo certo para utilização e comprovação de gastos”.
“Nesse caso, embora não exista a obrigatoriedade de licitação, devem ser observados os mesmos princípios que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, bem como o princípio da isonomia e da aquisição mais vantajosa”, informa o governo federal.
A utilização do Cartão de Pagamento do Governo Federal pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, para pagamento de despesas realizadas é regida pelo decreto nº 5.355, de 2005, e pelo decreto 6.370, de 2008, entre outros regulamentos.
De acordo com os decretos, o cartão pode ser “utilizado exclusivamente pelo portador nele identificado, nos casos indicados em ato próprio da autoridade competente”. Nesse sentido, o presidente “é o titular daquele cartão”. Ainda assim, “outras pessoas podem usar o cartão do presidente para fazer uma compra para o presidente. "Por exemplo, o ajudante de ordem do presidente pode pegar o cartão e vai fazer uma compra”, explica Tirado.
Quais despesas são enquadradas como suprimento de fundos?
Ainda segundo o governo federal, as despesas classificadas como suprimento de fundos somente podem ser realizadas para “atender a despesas de pequeno vulto, assim entendidas aquelas cujo valor, em cada caso, não ultrapasse o limite estabelecido na Portaria do Ministério da Fazenda nº 95/2002; atender a despesas eventuais, inclusive em viagens e com serviços especiais, que exijam pronto pagamento; e quando a despesa deve ser feita em caráter sigiloso, conforme regulamento”.
De acordo com a portaria daquele ano, a concessão de suprimento de fundos fica limitada a percentuais que têm como referência outra legislação: a Lei 8.666, de 1986, conhecida como Lei das Licitações.
Segundo a portaria, o limite da concessão é de 10% do valor estabelecido pela Lei das Licitações para gastos com obras e serviços de engenharia, na alínea "a" do inciso "I" do artigo 23 da legislação. De acordo com o decreto nº 9.412, assinado em 2018, no governo de Michel Temer, que atualiza a Lei das Licitações, o valor estabelecido é de R$ 330 mil. Nestes termos, 10% representa apenas R$ 33 mil. O mesmo percentual (10%) é para outros serviços e compras em geral, cujo limite está descrito na alínea "a" do inciso "II" do mesmo artigo. Segundo o decreto, o valor é de R$ 176 mil.
Entretanto, os ministérios responsáveis pelo Planejamento, Fazenda, Orçamento e Gestão poderão autorizar outros tipos de despesas mediante ato conjunto.
Conforme a cartilha “Suprimento de fundos e cartão de pagamento: perguntas e respostas”, elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU), o suprimento de fundos deve ser entendido como a exceção, e não a regra.
Edição: Vivian Virissimo