Os atos extremistas em Brasília, no último domingo (8), e a sucessão de falhas na defesa do Palácio do Planalto, do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional dão alguns alertas para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um deles é que o presidente não pode confiar no Batalhão da Guarda Presidencial e nos comandos militares, ainda contaminados pelo bolsonarismo, já que muitos nomes ainda não foram substituídos.
A outra constatação, também um alerta, é que há uma patente diferença sobre a percepção do ministro da Justiça, Flávio Dino, e o ministro da Defesa, José Múcio, tanto sobre os acampamentos, que só foram desmobilizados após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, quanto sobre as estratégias de ação do governo federal.
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Estas e outras análises foram feitas para o Brasil de Fato por Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor titular aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor visitante de Teoria Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor emérito do programa de pós-graduação em Ciências Militares da ECEME/Ministério da Defesa.
Na entrevista abaixo, o pesquisador aponta para o excesso de flexibilidade do Estado em relação aos acampamentos bolsonaristas quanto na demora das reações das polícias e das forças de defesa no domingo, o que culminou no ataque ostensivo aos símbolos da República. Ainda segundo Teixeira, na queda de braço entre Dino e Múcio, o primeiro demonstrou mais prudência.
"Dino agiu corretamente quando afastou a possibilidade de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou Estado de Sítio, e preferiu a intervenção no Governo do Distrito Federal (GDF). A GLO implicaria a chamada dos militares para resolver uma crise republicana", avalia.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual é a avaliação que o senhor faz do que ocorreu no último domingo, em Brasília?
Chico Teixeira: Tecnicamente, do ponto de vista da Ciência Política e da História Comparada, o que vimos no domingo foi uma insurreição. Não houve uma tentativa de golpe de Estado no sentido clássico, que é quando uma parte do próprio Estado - a magistratura ou os militares - tenta se apossar do conjunto do poder existente no Estado, destruindo a ordem legal, constitucional, estabelecida e aceita através de eleições e parlamento.
No domingo, não se viu nem militares nem a magistratura tentando derrubar o governo estabelecido. O que vimos foi uma massa muito grande de pessoas, organizadas por indivíduos de forma bastante descentralizada em termos de chamamento para paralisar o estado democrático de direito. Ter invadido os três palácios mostra bem que era um movimento contra a República, não é mais um movimento contra Lula, contra o PT, contra o bolivarianismo ou qualquer dessas fantasias que se queira criar.
Onde o senhor identifica as falhas que possibilitaram a invasão dos palácios?
Houve, de fato, várias falhas que vieram de locais os mais variados possíveis. O primeiro a se destacar é que o governo Lula estava fazendo uma semana de implantação, a grande maioria dos cargos de segundo escalão ainda não estão nomeados.
Como há um rompimento muito grande no sentido político, ideológico e de visão de mundo entre o governo que sai e o que entra, a manutenção de indivíduos nos cargos e a sua permanência na direção prática - já que é o segundo e o terceiro escalão que dirigem os órgãos e as instituições públicas -, paralisou largamente a capacidade de tomada de decisão no governo Lula.
Escolher uma data tão próxima da posse, quando o governo ainda não estava totalmente organizado, dificultou a reação.
O governo teve que contar com cadeias de comando que ele não tinha confiança, eivadas de elementos característicos do governo passado. Por isso, em princípio não há erro, mas dificuldade. Talvez esses mapas de nomeação a partir das conclusões do governo de transição pudessem ter sido feitos mais rapidamente.
De todos os temas organizados para discutir com ampla participação popular, de forma democrática, não houve entretanto nada sobre a defesa e assuntos militares. O novo governo optou claramente por retirar a área de defesa, assuntos militares e inteligência do debate democrático da transição.
Nesse sentido, o governo se privou daquilo que podemos dizer que se tornou nos últimos 20 anos o campo das ciências sociais que mais se desenvolveu no Brasil: o da defesa, soberania nacional e assuntos militares. Há trabalhos fundamentais de grandes pesquisadores e de programas de pós-graduação dedicados à área. Mas nenhum deles foi chamado pelo governo.
Qual foi a opção desde o governo de transição?
O governo optou por um conselheiro único, incapaz de dar conta de tudo isso, que foi o General Gonçalves Dias, indicado para ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Ele produz um documento que afirma não haver a existência de riscos maiores derivados do governo anterior. Para a Defesa, o governo indica um civil [José Múcio], e que bom que seja um civil, mas um civil sem tradição nesse campo.
Esse ministro, na mesma linha do GSI, sinaliza uma política gradualista em relação aos acampamentos e movimentos de contestação, fazendo afirmações extremamente graves, a de que os acampamentos e bloqueios de estradas, vias e aeroportos eram parte de democracia e que os critérios a serem aplicados aos militares, nomeações e promoções militares seriam o critério de antiguidade.
Trazer o bolsonarismo para o campo democrático e reafirmar uma cultura com base na antiguidade consolidaram largamente os bolsonaristas como parte do diálogo ainda em curso na República. Apenas o ministro da Justiça [Flávio Dino], pouco antes da posse, já havia sinalizado para as ameaças existentes. Por isso, criou-se uma tensão entre a Justiça e a Defesa, optando-se pelo gradualismo. Esse foi o erro capital.
Bem antes da campanha eleitoral, já se falava do problema de insubordinação da Polícia Militar a governadores em alguns estados. Temos problemas nas PMs, de um modo geral?
Tivemos, repito, um processo de insurreição e o que assistimos foi uma completa inação da Polícia Militar do Distrito Federal que, em alguns momentos, confraternizou com quem estava levando a cabo a destruição dos locais mais importantes da República. A questão que se coloca é a extensão e profundidade de responsabilidade em Brasília.
Aponta-se muito para o governo de Ibaneis Rocha, que nomeou Anderson Torres, o ministro da Justiça de Bolsonaro, para a Secretaria de Segurança, mesmo depois de alertas de Flávio Dino. E a responsabilidade de Anderson Torres de ter nomeado bolsonaristas e ter se ausentado do país logo em seguida.
Um terceiro ponto é o Batalhão da Guarda Presidencial ("Batalhão Duque de Caxias"), que não agiu em defesa do presidente da República, caso ele estivesse em Brasília naquele momento. Não precisava de ordem do ministro da Defesa nem do ministro da Justiça, que não poderia dar essa ordem, para proteger o Palácio do Planalto.
A Guarda Presidencial deveria ter se postado imediatamente em condições de defender o prédio e salvaguardar, se fosse o caso, o presidente da República.
Isso não aconteceu. É notório também que essa hierarquia do Duque de Caxias foi herdada do governo Bolsonaro e o ministro da Defesa nada fez para mudar esses comandos.
Do ponto de vista da segurança institucional, qual é sua avaliação a respeito dos acampamentos e da percepção do ministro Múcio sobre essas aglomerações serem “democráticas”?
Foi desde o início ilegal, não havia reivindicação a ser levada, uma pauta de direitos, só havia uma negação da Constituição, do STF e do resultado eleitoral. Isso não é fazer oposição, mas contestar a Constituição. A linha do ministro Flávio Dino era ter esvaziado esse movimento, mas o que ocorreu foi essa política de gradatividade.
Há uma base muito ampla do bolsonarismo e mesmo que nem todos estejam dispostos à destruição, depredação e ir para acampamentos, estes locais eram vistos com bastante simpatia pelos eleitores de Bolsonaro, inclusive com a participação de funcionários públicos e grande número de militares da reserva e, pior de tudo, com militares no Ministério da Defesa e no GSI. A política de gradualismo se mostrou totalmente equivocada.
O afastamento do governador do DF é legítimo? Ele tem responsabilidade no que aconteceu?
O afastamento é necessário. Na mesma noite, vista a derrota do movimento, Ibaneis tentou pedir desculpas e enfeitar um pouco o que havia acontecido. A presença dele no GDF iria atrapalhar as investigações, assim como o afastamento de Anderson Torres foi importante e fundamental. Resta também a questão dos comandos militares, principalmente do Batalhão Duque de Caxias, que não pode ser considerado mais confiável para a proteção do presidente da República.
Há divergências sobre como chamar os atos. O que vimos foi terrorismo?
Tecnicamente, utilizamos o termo terrorismo para atos de violência que querem obrigar o governo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa através da violência contra a sociedade. Normalmente, esses atos terroristas são chamados por organizações secretas, clandestinas, que vivem à margem da lei ou por indivíduos conectados física ou digitalmente a movimentos clandestinos contra a ordem institucional estabelecida. Aplica-se mal o termo "terrorismo" a esse processo, como também se aplica mal o termo "golpe de Estado".
Não foi um setor do Exército ou da magistratura que tentou derrubar o presidente Lula, como aconteceu no Brasil de 1964, agora no Peru, com a ação da Suprema Corte daquele país.
Ou mesmo do Congresso contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016. Agora, tivemos um movimento de milhares de pessoas que queriam causar um estado de caos tamanho que exigiria intervenção militar e declaração do governo Lula da Silva como inviável.
Isso foi evitado. Nesse sentido, Dino agiu corretamente quando afastou a possibilidade de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou Estado de Sítio, e preferiu a intervenção no GDF. GLO implicaria a chamada dos militares para resolver uma crise republicana.
Edição: Mariana Pitasse