Rio Grande do Sul

Coluna

A explosão do mal-estar da cultura: bombas humanas

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"Tal qual um dique cujas comportas cedem, uma enxurrada de pulsão de morte tomou conta das instalações dos Três Poderes em Brasília, com uma desmedida fúria de destruição" - Porjetemos/Instagram
A pulsão de vida sempre fala mais alto, e com ela enxugaremos cada gota dessa terrível inundação

Os acontecimentos de Brasília, cujos desdobramentos estão longe de se encerrar, dispensam descrição, tamanha foi sua repercussão dentro e fora do Brasil. Para tentar lidar com os efeitos desta aberrante situação, vou propor aqui uma leitura psicanalítica.

Do ponto de vista freudiano e lacaniano, pelo qual a ética do meu trabalho se pauta, todos somos psiquicamente constituídos por uma dualidade pulsional: a pulsão de vida e a pulsão de morte. Trocando em muitos miúdos, a pulsão de vida seria tudo o que diz respeito ao nosso desejo, nossa constante tensão em buscar “outra coisa” que nos dê prazer e que nos mantenha ligados à realidade. Pois prazer e realidade são correlativos.

Já a pulsão de morte seria o que nos coloca em um menor nível possível de tensão, em relação à nossa satisfação, que seria instintual, apesar do fato de sermos animais falantes, seres de linguagem e, portanto, com realidade psíquica. Mesmo assim, um resto arcaico de nossa vida instintual sempre persiste e insiste, em nosso inconsciente, que nos desconecta da realidade e que é uma espécie de fermento para a pulsão de morte. É o que nos faz buscar sempre o grau zero da tensão na satisfação total, que é impossível.  

Lacan chama a isso de gozo, e insiste sobre a sua dimensão mórbida e arriscada, para nossa sobrevivência física e psíquica, pois o gozo nada quer saber da Lei do desejo, a mesma da linguagem, que por si só nos coloca interditos, limites e à qual somos todos, inexoravelmente, submetidos. Porém, temos essa dualidade em nossa constituição psíquica, uma espécie de conflito constante que se resolve segundo o que a história de cada um de nós nos legou como estrutura subjetiva, o que muitos chamam de índole.

O objeto do mal-estar, que escuto todos os dias no sofrimento de pacientes, é precisamente a pulsão de morte. Há sempre um outro que persegue ferozmente um gozo do qual o sujeito sobre o divã se sente o instrumento de acesso. Aliás, as mulheres em situação de violência são o paradigma desse mal-estar. Não vou me estender aqui sobre isso, mas quero insistir sobre o fato de que o inconsciente é nossa relação com o outro, com os outros, atravessada por um Outro que nada mais é do que a linguagem. Este é o mundo das palavras.

Ora, nossa sociedade, regida pelo gozo que nada quer saber da Lei, tal qual o neoliberalismo, essa forma tardia, extrema e nefasta do capitalismo propõe, e na qual se fomenta a ilusão de que tudo é possível, abomina e tritura qualquer forma de frustração ou privação. Afinal, na cultura do “ter para ser” nada deve fazer entrave à satisfação imediata e total de cada indivíduo. Neste contexto, qualquer vitória da pulsão de vida que, conectada com a realidade (com a Lei), leva em conta o outro e seu desejo, é ameaçadora e deve ser destruída.

É isso, no meu entendimento, o que desde 2014 temos vivenciado em nosso país, e que nos últimos quatro anos tomou proporções absurdas. E nesta espécie de império do gozo, nossos laços sociais, e mesmo familiares, em muitos casos, se deterioraram radicalmente. A violência ganhou uma roupagem de legitimidade. O pesadelo da pandemia nos escancarou o que a Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”. A morte do outro, por fome, frio, covid, bala perdida ou assassinato, é uma obviedade. O outro é apenas um artefato, na lógica da economia e da política perversa, que, promete gozo absoluto para todos, pelo menos todos que se identifiquem ao ideal de sujeito bem-sucedido que o capitalismo neoliberal produziu.


Representantes do povo brasileiro subiram a rampa com Lula no dia da posse / Foto: Ricardo Stuckert

O conflito mais exemplar entre pulsão de vida e pulsão de morte que pudemos assistir até hoje, foi o das últimas eleições. A cada minuto, parecia que nos faltaria fôlego para suportar a angústia do resultado das urnas. Até que, para nosso alívio, a pulsão de vida venceu. Um projeto de governo pluralista, igualitário, salvaguarda da democracia e se propondo a ser reparador, finalmente se instalava. E no primeiro dia deste ano, vivemos um momento de prazer imenso, pelo qual havíamos pagado um altíssimo preço, com tantas lutas enfrentadas. Finalmente os efeitos devastadores do capitalismo neoliberal, que coloniza, corrói e destrói tudo, começariam a ser reduzidos. As comunidades voltaram a ser levadas em conta, e as minorias retomaram a palavra, com o novo ciclo de governo que se reinaugurou no país.


Desenho a nanquim sobre papel, representando "Praça dos Três Poderes", de Oscar Niemeyer (Rio de Janeiro. 1907 - 2012) / Reprodução

Como vimos, a reação dos “bem-sucedidos” foi uma explosão de barbárie, pois a frustração e a privação que uma sociedade justa exige, não participam do ideal de uma sociedade perversa. E tal qual um dique cujas comportas cedem, uma enxurrada de pulsão de morte tomou conta das instalações dos Três Poderes em Brasília, com uma desmedida fúria de destruição. Os resultados da invasão terrorista mostraram um cenário de bombardeios. E eles aconteceram, só que eram bombas humanas, carregadas de furor de gozo. Mas o prazer, o desejo, e a alegria não se submetem a nenhuma lógica perversa. A pulsão de vida, que também conhecemos como resistência, sempre fala mais alto, e com ela enxugaremos cada gota dessa terrível inundação. Este é nosso trabalho civilizatório.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, autora de "Mulheres Esquecidas" (editora Bestiario, 2022), é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - Appoa e presidente da Associação Projeto Gradiva - Atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko